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Aos 72 anos, a brasileira  Susana Maciel, moradora do Repartimento do Tuiué, Manacapuru (AM), voltou a costurar à noite depois de receber os óculos do OneDollarGlasses. | Martin Aufmuth/OneDollarGlasses
Aos 72 anos, a brasileira Susana Maciel, moradora do Repartimento do Tuiué, Manacapuru (AM), voltou a costurar à noite depois de receber os óculos do OneDollarGlasses.| Foto: Martin Aufmuth/OneDollarGlasses

Aos 80 anos, Simon obteve seu primeiro par de óculos. Agricultor no Malawi, ele sustenta os 18 netos com a subsistência do campo, o que rende comida para dez meses do ano. Nos outros dois meses, precisam optar entre comer uma vez por dia, a cada dois dias ou mesmo não comer.

Com uma renda limitada, é de se espantar que Simon tenha destinado dinheiro para melhorar a visão, um problema aparentemente pequeno diante da fome.

O que permitiu, no entanto, ao agricultor não só descobrir a deficiência na visão, como comprar um óculos de alta qualidade a um custo de produção de US$ 1 foi o negócio social criado a partir do projeto OneDollarGlasses.

Hoje em oito países, inclusive no Brasil, a iniciativa começou em 2012 com o físico e matemático alemão Martin Aufmuth, 43, e já distribuiu 100 mil pares. Seu primeiro contato com o problema da falta de acesso a óculos foi ao “Out of Poverty” (Para Sair da Pobreza, em tradução livre), do empreendedor social tcheco Paul Polak.

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“É um problema não solucionado pela OMS [Organização Mundial da Saúde] ou pela ONU [Organização das Nações Unidas], e ninguém ligava muito para isso”, explica o alemão sobre a estimativa de 700 milhões de pessoas no mundo que precisam de óculos, mas não podem pagar.

“No dia seguinte, acidentalmente, vi óculos de leitura, chineses e baratos, por um euro na Alemanha, onde as pessoas têm muito dinheiro. Em outro países, como na África e na Ásia, não está disponível. Comecei a pensar em como poderia contribuir para a solução desse problema.”

Mão na massa para criar os protótipos

A partir disso, Aufmuth começou a desenvolver em casa protótipos de armações com diferentes materiais até chegar à solução de baixo custo. Na sequência, iniciou a produção da máquina para a montagem dos pares.

“Não é possível construí-los com um alicate, [esse material] é muito resistente, normalmente usado em carros. É barato e muito robusto. Poderia vendê-los na Alemanha por 300 euros sem problema algum.”

Ao contrário disso, o alemão partiu para o empreendedorismo social, fundando a OneDollarGlasses. “O nome veio porque o material custa aproximadamente um dólar, e milhares de pessoas também vivem com menos de um dólar por dia.”

Martin Aufmuth/OneDollarGlasses

A atuação com essa população que vive abaixo da linha da pobreza trouxe diferentes desafios para o estabelecimento do projeto. Por um lado, não há como manter a sustentabilidade da iniciativa doando os milhões de pares necessários para solucionar o problema.

“Quando se olha para os 700 milhões de pessoas que precisam de óculos, não é possível fazer doações até que se acabem seus problemas. Não de maneira sustentável”, afirma Aufmuth. “As armações e as lentes podem quebrar, então manter isso para tantas pessoas precisa ser com negócios sociais.”

Vender algo onde as pessoas passam fome, no entanto, também não é possível. “No Malawi, houve dois períodos de fome, não havia nenhum dinheiro disponível”, lembra o empreendedor. “Não é possível vender em alguns períodos porque acaba a comida e as pessoas não têm nada, comida, dinheiro. Não se compra óculos se está passando fome.”

Outro ponto é o desconhecimento do problema na visão. “É muito importante trazer as pessoas para dar os óculos a elas para realmente enxergarem seu entorno, a casa do vizinho, pássaros nas árvores. De repente, eles veem a diferença.”

Isso é o que move o empreendedor: “Mudar a vida de uma pessoa com um instrumento tão simples, como um par de óculos”. “Existem tantos problemas na vida dessas pessoas associados à falta de visão. Acho que é uma alegria na vida poder enxergar bem, não é só sobrevivência.”

Foi assim com Simon, que em relato para Aufmuth deu uma noção da dimensão do problema da visão, que pode levar a perdas significativas na lavoura. “Ele me falou que, se um décimo das sementes não forem colocadas no lugar certo, ele perde 10% da renda. Isso é mais um mês sem comida, ou seja, não dois, mas três meses sem se alimentar. Uma mudança tão pequena como essa pode significar a morte para eles.”

No Brasil

Casos como o do agricultor africano se repetem em solo brasileiro, como o da matriarca Susana Maciel, 72. Moradora do Repartimento do Tuiué, Manacapuru (AM), ela tira o sustento da pesca e da costura feita à noite. Com o tempo, a visão ficou mais fraca, e ela teve que abrir mão do ofício noturno.

“Aproveitava até as 11 horas da noite para costurar e fui acabando a vista. Foi quando calhou de chegar um povo que veio lá da Alemanha fazer exame de vista aqui perto. Eles me deram os primeiros óculos”, lembra.

Quando o atendimento chegou à comunidade, foi a primeira vez que alguns moradores fizeram um exame oftalmológico. “Foi uma bênção. Aqui não tem médico de vista”, conta Maciel, que levou o marido, a filha e o genro para fazerem os exames. Todos agora usam óculos.

No Brasil, levar os médicos às comunidades faz parte do trabalho da Renovatio, do empreendedor social Ralf Toenjes, vencedor do Prêmio Empreendedor Social de Futuro que trouxe. Esse tipo de consulta não está presente de forma regular em 85% dos municípios.

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Para o alemão, a causa disso é um atraso na legislação brasileira. “Oftalmologistas têm um treinamento longo, de três ou quatro anos, têm que investir dinheiro próprio, e acabam ficando onde óculos caros são vendidos, normalmente, nas cidades, não nas áreas rurais.”

Ele usa como exemplo o Malawi, onde a OneDollarGlasses é reconhecida pelo Ministério da Saúde do país. “Podemos treinar nossos oculistas para fazerem os exames e fornecer os óculos”, explica Aufmuth. “Isso é ótimo porque podemos treinar as pessoas mais pobres, que são das comunidades, para ter a certeza de que eles podem fornecer um serviço de qualidade e dar os óculos.”

Essa atuação no Brasil, que fornece o atendimento médico e os óculos gratuitamente, diverge da metodologia empregada em outros países. Mas o tamanho do problema – 42 milhões de brasileiros precisam de óculos, mas não sabem disso, aliado ao objetivo de Toenjes de atingir 1 milhão de beneficiários até 2021– levaram o brasileiro a criar o negócio social VerBem.

“Precisaríamos de R$ 150 milhões em doações em cinco anos. Seria praticamente impossível”, afirma ele. A VerBem tem a estrutura de óticas populares, com produtos que variam de R$ 39 a R$ 79. O lucro de cada par de óculos vendido, que tem custo de produção no Brasil de aproximadamente R$ 25, vai ajudar a financiar um segundo, a ser doado nos mutirões.

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