A crise provocada pela pandemia do novo coronavírus atingiu todas as economias do globo em maior ou menor escala. Da mesma forma, a retomada tem gerado uma pressão inflacionária generalizada em razão de uma recomposição na demanda por commodities, de um lado, e das restrições na oferta, de outro. Mas a situação do Brasil é pior que a da média mundial, apontam indicadores de preços, juros, variação do PIB e desvalorização da moeda.
Fatores como a crise hídrica, a instabilidade política e, mais recentemente, a mudança de regime fiscal contribuem para agravar o contexto doméstico, dizem economistas. Recentemente, o anúncio do governo sobre a intenção de alterar na regra do teto de gastos fez bancos e corretoras revisarem para baixo suas expectativas de crescimento do PIB para 2021 e para cima as projeções de inflação, juros e câmbio.
“Temos um governo que tem percalços para governar já desde 2019, com atritos com o Congresso, e uma dificuldade da área econômica de apresentar reformas importantes, sustentáveis, coerentes e com apoio do Legislativo”, diz Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados. “Vimos isso se agravar em 2021, especialmente em relação à questão fiscal, logo no início do ano, com a questão do Orçamento, em que as estimativas tinham sido totalmente equivocadas.”
Segundo Vale, a saída da pandemia colocou o governo na tentativa de fazer novamente as reformas, mas elas saíram do Ministério da Economia sem qualquer interlocução com o Congresso. "Um exemplo é a reforma do Imposto de Renda, que já era ruim e foi piorada na Câmara. Aí a situação foi se agravando ainda mais, com o movimento de 7 de setembro, e culminando com a mudança no regime fiscal, com a tentativa do governo de burlar a regra do teto”, diz.
Silvio Campos Neto, sócio e economista sênior da Tendências Consultoria, explica que um dos efeitos da instabilidade política é a retirada de divisas do país e, consequentemente, a desvalorização da moeda local.
Como o real, outras moedas também tiveram perdas em relação ao dólar durante a pandemia, mas, com a retomada da economia, muitas retornaram a patamares anteriores à crise. “Isso não aconteceu aqui, onde o câmbio está em nível próximo ao pico do período inicial da pandemia”, diz Campos Neto.
Em uma cesta de 24 moedas de países desenvolvidos e emergentes, o real foi a quinta que mais se desvalorizou desde o início do ano até o fim de outubro, mostram dados do Federal Reserve (Fed), o equivalente ao Banco Central norte-americano.
“Isso faz com que haja aumento de preços em um conjunto amplo de produtos, com destaque para os combustíveis”, diz o economista da Tendências. A questão cambial e a alta nos derivados do petróleo afetam ainda produtos nacionais voltados à exportação, como grãos, carnes e demais alimentos.
“Vários outros países têm mostrado pressões inflacionárias nessa retomada da atividade econômica. É fato”, diz. “Os Estados Unidos, por exemplo, embora não sejam o melhor comparativo, mas sendo sempre um parâmetro, estão com uma inflação de 5,4%, o maior patamar desde 2008 e bem acima da meta do Fed [Federal Reserve], que é de 2%.”
Além do real desvalorizado, Campos Neto chama a atenção para outro fator que têm ajudado a impulsionar ainda mais o índice de preços: a crise hídrica, que tem levado a medidas como o acionamento de termelétricas e reajuste no valor dos adicionais tarifários, conhecidos como bandeiras.
O resultado é que no Brasil a alta de preços está bem acima da média global. Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) referentes a 44 países mostram que o Brasil é o terceiro com a maior taxa de inflação em 12 meses. No ranking, com atualização mais recente em setembro, o país fica atrás apenas de Argentina e Turquia.
Naquele mês, o IPCA – principal índice de inflação do país – teve o pior resultado para setembro desde 1994, o que levou o acumulado de 12 meses a 10,25%, segundo o IBGE. E a tendência é que o indicador cresça ainda mais. O IPCA-15 de outubro, considerado uma prévia da inflação oficial, chegou a 10,34%.
Campos Neto avalia que o componente global, de desequilíbrio entre oferta e demanda, deve ceder lentamente, perdurando por boa parte de 2022. “Internamente, ficamos na dependência do ambiente institucional local, mas como é ano eleitoral, deve ser um período de muita instabilidade, polarização, preços de ativos pressionados”, prevê.
Em relação ao câmbio e à crise hídrica, há uma expectativa de melhora no cenário, e com uma tendência de elevação da taxa básica de juros para dois dígitos, o índice inflacionário deve ficar próximo de 4,5% no ano que vem, em sua opinião.
A inflação nas alturas já fez o Banco Central (BC) elevar a taxa básica de juros seis vezes neste ano. A medida torna o crédito mais caro, desestimulando o consumo e, portanto, a elevação de preços. Por outro lado, juros mais altos reduzem também a atividade econômica e encarecem a dívida pública, piorando ainda mais a situação fiscal do país.
Na quinta-feira passada (27), o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC decidiu elevar a taxa em 1,5 ponto porcentual – a maior alta desde o fim do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
“Apesar do desempenho mais positivo das contas públicas, o Comitê avalia que recentes questionamentos em relação ao arcabouço fiscal elevaram o risco de desancoragem das expectativas de inflação, aumentando a assimetria altista no balanço de riscos. Isso implica maior probabilidade de trajetórias para inflação acima do projetado de acordo com o cenário básico”, justificou o Copom em comunicado em que anunciou a decisão.
Com a mudança, a Selic, que até meados de março estava em 2% ao ano, chegou a 7,75%. O Brasil se tornou, assim, o país com a maior taxa de juros reais entre 40 economias, de acordo com relatório do site MoneYou e da consultoria Infinity Asset.
O ranking leva em consideração os juros de cada país, descontada a inflação projetada para os próximos 12 meses. A taxa que a Infinity usa para calcular o juro real é o Swap DI Pré de um ano, e não a Selic nominal. O objetivo, segundo a gestora, é "explicitar uma taxa 'a mercado', ou seja, um referencial do que seriam os juros dados ou tomados numa operação real e não o referencial das taxas nominais aplicadas pela Selic".
A tendência é de que o país se isole na liderança nos próximos meses. Para a próxima reunião, em dezembro, o Copom avisou que "antevê outro ajuste da mesma magnitude", que levaria a taxa a 9,25% ao ano. E boa parte do mercado espera mais dois aumentos – possivelmente mais suaves – no começo de 2022.
Em termos nominais, sem descontar a inflação, o Brasil fica na 3.ª colocação do ranking dos juros, atrás apenas de Argentina e Turquia.
As expectativas do mercado para a economia brasileira, que já não eram as melhores, pioraram com a proposta do governo de alterar as regras do teto de gastos. “O primeiro efeito será um ciclo de o aumento de juros em um grau muito maior do que se esperava a princípio, com um cenário de taxa básica de dois dígitos no próximo ano”, diz Sérgio Vale, da MB Associados. A consultoria, que antes projetava uma alta de 0,4% no PIB em 2022, alterou a previsão para crescimento zero.
Outros economistas se mostram mais pessimistas. A equipe do Itaú, por exemplo, revisou sua estimativa de crescimento de 0,5% do PIB no ano que vem para uma retração de 0,5%. A Tendências Consultoria ainda vê cenário para variação positiva de 1,8% em 2022, porém com viés de baixa.
Um relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgado no início de outubro, antes da onda de revisões de consultorias, bancos e corretoras nacionais, já colocava o Brasil como o país com a menor perspectiva de crescimento em 2022 entre todas as economias listadas. Para o órgão, o PIB brasileiro deve subir 1,5% no próximo ano.
Em 2021, o Brasil já tem dado mostras de dificuldade na retomada da atividade econômica. No segundo trimestre, o PIB do país encolheu 0,1%, o sexto pior resultado entre 50 países, de acordo com dados da OCDE.
“O mundo está passando por um processo inflacionário? Está. Mas aqui é maior, e a gente tem um processo mais complicado para lidar com essa situação”, diz Vale. O governo não demonstra perceber o quão ruim tem sido a condução da política econômica, afirma Vale. “A percepção é de que está tudo bem e que o mercado é que está exagerando.”
A versão original desta reportagem, publicada em 30 de outubro, foi afetada por um problema técnico que impediu a visualização dos infográficos com dados de indicadores como PIB, câmbio, inflação e juros. A versão atual corrige esse problema.
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