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Eli Martins, proprietária da fábrica de confecções Miss Peck.
Eli Martins, proprietária da fábrica de confecções Miss Peck.| Foto: Divulgação

Perder todas as economias, morar de favor, recomeçar do zero. Esse roteiro foi vivenciado duas décadas atrás pela empresária Eli Martins, de 64 anos, que não pretendia repetir a dose durante a pandemia de coronavírus.

Para manter de pé a Miss Peck Indústria Têxtil e Confecções, de Blumenau (SC), ela apostou em decisões rápidas e no apoio contínuo a dezenas de lojistas – seus clientes – para que eles aprimorassem as vendas on-line durante o período de restrições ao atendimento presencial. E a fábrica, que demitiu um terço dos funcionários logo no começo da pandemia, hoje é maior e emprega mais gente que antes da chegada do vírus.

A diretoria da Miss Peck decidiu reduzir o quadro de pessoal logo nos primeiros dias de lockdown, em março de 2020. Dos 35 funcionários, 12 foram embora nessa primeira leva e outros três nos meses seguintes.

“Mandamos logo, enquanto tinha dinheiro para pagar. A gente não sabia o que iria acontecer. Enquanto tínhamos caixa, pagamos o pessoal, que foi escolhido a dedo. Vi quem já era aposentado e quem tinha condições de receber seguro-desemprego. Os novos, que teriam dificuldade de conseguir alguma renda, permaneceram. Foi uma preocupação de proteger as pessoas. A gente não tinha ideia de como seria, se voltaríamos a produzir”, conta Eli.

No fim de agosto de 2021, quando concedeu entrevista à Gazeta do Povo, a Miss Peck empregava 50 pessoas, parte delas admitida após a expansão do parque fabril, no começo do ano – e ainda há vagas.

Os detalhes desta trajetória de superação você conhece a seguir, nesta primeira reportagem da série O Brasil que inspira, que ao longo das próximas semanas trará histórias de coragem, criatividade e perseverança, de brasileiras e brasileiros que encontraram novas formas de trabalhar e empreender em meio à pandemia.

Antes de ser empresária, Eli Martins teve de reconstruir a vida

“Vivi uma ‘crise pandêmica’ muito antes. Vivi de favor, de cesta básica. E quem já teve alguma coisa na vida faz de tudo para conquistar de novo”, diz Eli.

Ela, que trabalhava em um escritório de contabilidade em Barretos (SP), passou por uma crise familiar e perdeu tudo. Em 2003, com três filhos adolescentes, voltou para a terra natal, em Santa Catarina, perto de familiares. Decidiu batalhar por conta própria para mostrar que conseguia garantir o próprio sustento e das duas filhas, na época com 19 e 13 anos, e do filho, então com 17.

No início, Eli trabalhou com limpeza de casas, onde aproveitava para mostrar produtos de limpeza que revendia. À noite, trabalhava como garçonete em uma lanchonete. Apresentou uma torta gelada que havia aprendido em São Paulo e passou a revendê-la ali e em outros pontos. Sete meses depois surgiu a oportunidade de trabalhar com resíduos de tecido, a partir de uma carga doada pela cunhada. Ela e o filho, Carlos Alves Junior, faziam a separação do material por cor, para vender a fabricantes de fios e de panos de estopa.

Em novembro de 2004, ainda no ramo de venda de resíduos, Eli registrou a marca Miss Peck, referência a um apelido carinhoso de uma das filhas. No ano seguinte, uma sobrinha que era representante comercial em São Paulo deu a ideia para a fabricação de peças femininas para a Copa do Mundo de 2006. As amostras, feitas com resíduos e pedaços de malha, foram aprovadas, e Eli teve de contratar costureiras para ajudar. A seleção brasileira, que tinha sido campeã na edição anterior, avançou apenas até as quartas-de-final. Mas as vendas da Miss Peck foram um sucesso: cerca de 250 mil camisetas no estilo “baby look”.

Com o know-how adquirido, a indústria mudou a estampa e se manteve no negócio. Outro salto se deu com uma nova linha “plus size”. A partir de 2013, com uma consultoria do Sebrae – “um divisor de águas”, segundo Eli –, a empresa aperfeiçoou processos e estratégias, e criou uma nova marca para os tamanhos maiores: Dona Peck.

Após o baque inicial, a solução: ensinar os lojistas a vender on-line

No início de 2020, a indústria estava bem estabelecida, ainda no embalo das vendas de alto verão. Mas em março, com a pandemia, tudo parou. “Foi muito impactante no início. Todo mundo cancelou pedido, ninguém vendia mais nada para ninguém. Na minha empresa não cabia mais nada, as costureiras traziam produto, eu tinha que pagar e eu e meu filho fomos recolhendo delas. No começo todo mundo chorava”, relembra a empresária.

O ânimo de Eli logo foi restabelecido: “Já passei por situação pior, então passei a proferir uma palavra de fé para quem estava aqui: tinha que levantar a cabeça”.

A filha Ana Carolina Alves produziu tutoriais para que donos de lojas de todo o país – que compram as peças da empresa e as revendem para os consumidores finais – pudessem vender on-line, usando as redes sociais.

“Os lojistas estavam cheio de produtos, precisavam vender o que tinham recebido, para fazer novos pedidos. As lojas fecharam 100% e aí começamos a dar ideias, buscar parceiros, canais de venda ou formas de vendermos diretamente”, conta Eli.

Foi necessário buscar um empréstimo para honrar todos os compromissos em 2020, diz a empresária. “Fomos a um banco comercial mesmo. As linhas do governo eram para empresas bem pequenas ou muito grandes. Ou tinha outra opção, mas era preciso ter muitos bens para dar em garantia. Para a gente, de porte médio, não houve apoio”, conta ela.

Não é "vender roupa": "Estou vendendo uma série de coisas, é um carinho, um aconchego"

Além da dificuldade de virar a chave e passar das vendas presenciais para o modelo on-line, os lojistas passaram a enfrentar uma grande concorrência na internet. Foi para ela, afinal, que todo mundo correu durante a pandemia.

Para destacar os produtos, a Miss Peck sugeria textos mais sentimentais, com apelo de venda. “Nossas roupas são de linhas confortáveis, o que foi importante nesse momento de home office. Pelo conforto, pelas ideias de apelo e por ações de baixar o preço dos produtos, fomos vendendo”, relata a empresária.

“Não dá para só fornecer produto, tem que entregar condições de venda, emoção, apelo de venda, entregar sentimento, entregar conforto. Já foi esse tempo de vender 'roupa'. Estou vendendo uma série de coisas, é um carinho, um aconchego. Assim muitos lojistas conseguiram até superar as vendas que tinham presencialmente”, completa.

Uma conquista e tanto, em meio à forte retração do setor, um dos mais prejudicados pela pandemia. De 13 atividades de comércio pesquisadas pelo IBGE, cinco tiveram queda nas vendas no acumulado de 2020. O varejo de tecidos, vestuário e calçados teve o segundo pior desempenho, com queda de 22,5% no volume de vendas, atrás apenas de livros, jornais, revistas e papelaria (-30,6%). A pesquisa do IBGE contabiliza o resultado de empresas com CNPJ e mais de 20 funcionários e não inclui, portanto, as pequenas lojas; mesmo assim, é um indicativo da tremenda dificuldade dos comerciantes.

Foi o fechamento de uma outra confecção que permitiu à Miss Peck ampliar suas atividades. “Aumentei em 300 metros quadrados. Comprei de uma fábrica que fechou durante a pandemia”, diz Eli.

A empresa até pretende contratar mais funcionários, mas Eli diz que falta mão de obra qualificada. Segundo dados do Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), a atividade de confecção de artigos do vestuário e acessórios fechou o primeiro semestre de 2021 com 529.739 empregados, quase 8% a mais que em dezembro de 2020 (492.256).

Grandes redes reduziram importações e passaram a comprar mais de fabricantes nacionais

A demanda também cresceu na linha private label – peças fabricadas sob encomenda para redes de varejo. Segundo Eli, esse movimento é reflexo das restrições logísticas nos portos internacionais por causa da pandemia e pela alta do dólar: as redes reduziram as compras de roupas produzidas no exterior e passaram a comprar mais de fabricantes nacionais.

Os registros da balança comercial brasileira comprovam isso: as importações de peças de vestuário e seus acessórios somaram US$ 572,2 milhões entre janeiro e junho de 2021, 35% abaixo do registrado no mesmo período de 2019 (US$ 888,9 milhões), antes da pandemia. As importações diminuíram até mesmo na comparação com o primeiro semestre de 2020 (US$ 652,2 milhões), quando o cenário já era de retração.

A recuperação das vendas nos últimos meses pode ser observada nos dados do IBGE: o varejo de tecidos, vestuário e calçados cresceu 32,6% entre janeiro e junho de 2021, na comparação com o primeiro semestre do ano passado. Entretanto, o volume de vendas no setor ainda está baixo, próximo dos patamares de 2016, período de recessão econômica.

A movimentação do comércio internacional também pode criar novos desafios: Eli Martins conta que já fez encomendas de matérias-primas para garantir a produção de inverno de 2022, em um cenário de escassez de produtos e dificuldades logísticas.

Seja qual for o obstáculo, Eli diz que está disposta a enfrentar, e sugere o mesmo a outros empreendedores. “Vá em frente, nunca desanime, não reclame. Se você começar a murmurar, você vai encontrar muito mais motivos para murmura e reclamar. Muitos dizem que o universo conspira em seu favor. Se você é grato, então o universo te dará muito mais motivos para você agradecer. Da minha parte prefiro já falar com o dono do universo, criador do Universo”, brinca a empresária.

Esta é a primeira reportagem da série O Brasil que inspira, que conta histórias de brasileiras e brasileiros que encontraram novas formas de trabalhar e empreender durante a pandemia de coronavírus. Acompanhe:

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