Um estudo divulgado pela consultoria KPMG aponta que a aviação comercial é um dos cinco segmentos de atividade, entre 40 analisados, que vai ter de “reiniciar” seu modelo de negócios para se adequar à realidade do pós-Covid. Os outros são aeroportos, ensino superior, indústria e alguns ramos do varejo.
“[São] indústrias/empresas que lutam para se recuperar da Covid devido a demanda ‘permanentemente’ reduzida por ofertas, capital insuficiente para evitar recessão prolongada e/ou má execução da transformação digital”, aponta relatório do estudo “Tendências e Nova Realidade: 1 ano de Covid-19”.
A aviação comercial brasileira passa por um momento turbulento. No pior momento da crise, em abril do ano passado, aeroportos ficaram às moscas e aviões, parados. Dados da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear) apontam que naquele mês, o setor operou apenas 6,8% de sua malha de voos.
No comparativo entre os terceiros trimestres de 2019 e 2020, a demanda doméstica caiu 57% e a internacional, 93%. A perda de receita chegou a 77%, o equivalente a R$ 9,5 bilhões.
Não bastasse isso, o câmbio subiu 35%, causando mais impactos aos balanços das empresas. “O ramo não gosta de desvalorizações acentuadas”, diz Eduardo Sanovicz, presidente da entidade. Mais da metade dos custos e despesas das empresas aéreas brasileiras são dolarizadas, aponta levantamento da Abear. São gastos com combustíveis e lubrificantes; depreciação, amortização e exaustão; e arrendamento, seguro e manutenção de aeronaves.
O problema não é de hoje, aponta o analista Ilan Arbetman, da Ativa Investimentos. Segundo ele, desde 2019, com a falência da Avianca, o setor vive um momento de disfuncionalidade.
Ele aponta que várias medidas foram adotadas para diminuir os impactos da crise na aviação. Segundo ele, as empresas partiram para a redução de custos, reviram contratos com arrendadores de avião e outros credores e realizaram acordos trabalhistas com os funcionários. “Basicamente, o objetivo foi o de preservar a liquidez das empresas, diz Arbetman, da Ativa Investimentos.
Medidas regulatórias e setoriais também foram tomadas. Entre elas:
- adoção de uma nova política de reembolso de passagens aéreas;
- definição de uma malha essencial;
- autorização para o uso menos frequente dos slots (posições de pouso e decolagem) sem punição da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac);
- o uso de pátios militares e da Infraero para estocagem de aeronaves;
- diferimento no pagamento das tarifas de navegação aérea; e
- medidas de segurança sanitária.
As duas empresas aéreas de capital aberto listadas na B3 – Azul e Gol – tiveram uma receita conjunta de R$ 3,93 bilhões no primeiro trimestre deste ano, 43% menos que em igual período de 2020. E o prejuízo foi de R$ 5,3 bilhões.
A Latam está em recuperação judicial nos Estados Unidos, junto com outras divisões do grupo. “Tivemos de tomar decisões duras, como redefinir o tamanho da empresa”, diz o diretor de vendas e marketing da companhia, Diogo Elias. O grupo fechou a filial argentina, devolveu aviões e renegociou dívidas.
O setor da aviação ensaiava uma reação no fim do ano passado quando se viu atingido pela segunda onda da pandemia. Os números despencaram nos primeiros meses deste ano: a quantidade de partidas em relação ao pré-crise caiu de 74,9% em janeiro para 35,6% em abril, segundo dados consolidados pela Abear.
Expectativa de retomada no mercado doméstico
A expectativa é de que o avanço da vacinação possibilite uma retomada da aviação nos próximos meses, principalmente no mercado doméstico. Sanovicz, da Abear, diz que os números tiveram uma melhora em maio e avançaram em junho. “Trabalhamos com uma tendência de alta.”
“Há uma luz no fim do túnel”, enfatiza Elias, da Latam. No mercado doméstico, a companhia já está operando com 63% da capacidade registrada em junho de 2019 – o equivalente a 310 voos/dia – e espera elevar esse percentual para 87%, em setembro. Novos destinos foram agregados à malha: Comandatuba (BA) e Cancun (México).
A empresa já está atuando com 100 jatos narrow bodies (fuselagem estreita) e espera a chegada de mais sete para as próximas semanas – dois Airbus 320, com capacidade para 174 passageiros, e cinco Airbus 321, para 220 passageiros. E desde o quarto trimestre do ano passado, já está atuando em todas as cidades para as quais voava antes da pandemia.
A Azul opera com quase 70% da capacidade. Dos 116 destinos que eram atendidos no pré-pandemia, a empresa aérea já voltou para 109. “Nós não queremos apenas recuperar esse número como também ultrapassá-lo”, diz o diretor de relações institucionais, Marcelo Bento Ribeiro.
O executivo diz que a empresa planeja acrescentar, no futuro, muitos outros destinos à malha, principalmente com os aviões Cessna Gran Caravan, com capacidade para nove passageiros e que pertencem à divisão sub-regional do grupo, a Azul Conecta.
O grupo espera, durante a alta temporada de julho, ter 50 novas rotas em todo o país. Segundo o executivo, as conexões com o Nordeste serão reforçadas e os aeroportos de Campinas, Belo Horizonte, Rio/Santos Dumont, Recife, Salvador e Porto Seguro contarão com o maior volume de operações adicionais.
Mercado internacional é desafio
Um dos principais desafios do setor, segundo o presidente da Abear, é a retomada dos voos internacionais. Destinos como a Europa ainda restringem voos do Brasil por questões sanitárias. Segundo a Anac, nos 12 meses encerrados em maio, a oferta de assentos caiu 69,1%, em relação ao período anterior e a demanda, 85,4%.
Com isso, os aviões estão operando mais vazios. A taxa de ocupação média nos últimos 12 meses foi de 39,4%, contra 81,9% nos 12 meses encerrados em maio de 2019, antes da pandemia.
“O cenário para os voos internacionais é mais incerto por causa das barreiras sanitárias. Voaremos assim que pudermos", afirma Elias, da Latam. Ao longo da crise, a empresa manteve as operações para Miami, Nova York, Frankfurt e Madrid, mesmo sendo com carga. Recentemente, retomou os voos para Lisboa e espera, em julho, retomar as operações para Paris.
Ele também vê oportunidades para o mercado norte-americano. “Há uma grande demanda reprimida para lá.”
Busca por consolidação na aviação
As movimentações não param por aí. A Azul estaria interessada na aquisição das operações da Latam Brasil, que tem uma fatia de 30,3% do mercado, segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Mas, no dia 18, o presidente da Latam, Jerome Cadier, disse à “IstoÉ Dinheiro” que a operação brasileira não está à venda e que, caso ocorra a transação, a Azul seria a única beneficiada.
Outro entrave à operação passaria pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Uma eventual operação entre Latam Brasil e Azul deixaria as empresas com uma participação de 66,9% do mercado doméstico.
O que é certo, segundo Arbetman, é que a Azul está em uma posição mais favorável. “Ela construiu um modelo vencedor, com pouca sobreposição (30%) de rota em relação às concorrentes.” E tem menor dependência do triângulo São Paulo-Rio-Brasília. O presidente da empresa, John Rodgerson, disse à “Veja” que apenas 37% dos assentos vendidos pela Azul correspondem a esses trechos. Nas rivais, chegaria a 92%.
O analista aponta que do ponto de vista concorrencial faz mais sentido uma operação envolvendo Latam e Azul do que Gol e Azul. A Latam tem mais uma estratégia nacional e internacional, enquanto a Azul tem uma operação mais regionalizada. “E haveria mais resistências a uma transação que envolvesse a Gol.”
A Azul estaria negociando com credores da Latam Airlines, o grupo dono da Latam Brasil, e com empresas de arrendamento de aviões.
Outros movimentos no mercado
A Gol mostrou que está com apetite de crescimento no começo de junho, ao adquirir a MAP Linhas Aéreas, uma pequena empresa regional especializada em voos a partir de Congonhas e de Manaus. Com a aquisição, ela se torna a maior operadora no segundo maior aeroporto em movimento no país e reforça sua presença na capital do Amazonas.
O Amazonas também é um mercado cobiçado pela Azul que anunciou neste mês o reforço de suas operações na região, com aumento de frequências, de oferta de assentos e início de voos para novas cidades.
Outro movimento é a entrada em operação da ITA (Itapemirim Transportes Aéreos), que começa a operar regularmente a partir do dia 1.° de julho. Inicialmente serão oito destinos e a empresa espera atingir 35 cidades até junho de 2022, quando prevê uma frota de 50 aeronaves.
O CEO da ITA, Adalberto Bogsan, está otimista com o início das operações. “Acreditamos que, como o progresso da vacinação no Brasil, a retomada da economia é iminente e, com isso, a procura pelo turismo voltará, mesmo que de forma paulatina. Entendemos que com a imunização o passageiro tende a voltar a planejar novos roteiros, principalmente visando o lazer com a família.”
Arbetman, da Ativa Investimentos, não acredita que a entrada da Itapemirim no mercado aéreo mude muito o cenário. “É mais uma entrada simbólica em um segmento que não oferece facilidades para os novos entrantes, que exige complexidade operacional forte e tem boa parte de seus custos em dólares.”
O movimento do grupo da Itapemirim, ao entrar no mercado da aviação, é similar ao que os controladores da Gol, com forte presença no setor rodoviário, fizeram há cerca de 20 anos. “E o grupo Itapemirim está passando por um processo de recuperação judicial”, lembra o analista.
Bogsan, da ITA, destaca que a companhia aérea não faz parte do processo de recuperação judicial. “Os investimentos do grupo foram autorizados pelo juiz responsável pelo processo. Além disso, o lançamento do modal aéreo conta com um robusto aporte financeiro.” Os nomes dos investidores não foram revelados pela ITA por questões de confidencialidade.
O executivo aponta outro trunfo que beneficia a ITA em um cenário em que as três principais concorrentes, individualmente, têm participações superiores a 30%: “Enquanto as companhias aéreas em atividade e já consolidadas sofreram com a pandemia e atingiram um alto nível de endividamento, a ITA entra no mercado sem dívidas. Acreditamos que o mercado brasileiro tem espaço para a chegada de novas empresas e a concorrência só tende a beneficiar os passageiros”, diz.
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