Em meio às variações do preço do minério de ferro no mercado internacional, à crise humanitária na Venezuela e aos projetos de proteção aos ecossistemas da Amazônia, a Região Norte do Brasil é palco de intensos fluxos migratórios que geram picos, ora de crise, ora de bem-aventurança. Mas microempresas da região estão conseguindo aproveitar as situações favoráveis para ampliar o nível de emprego e contribuir para um crescimento mais sustentável da região.
Um levantamento exclusivo feito pela Gazeta do Povo com base na Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de municípios com mais de 50 mil habitantes mostra os municípios que criaram mais vagas com carteira assinada em microempresas – estabelecimentos de comércio ou serviços com até nove empregados ou indústrias de até 19 funcionários. E a série "Onde empreender tem vez", publicada ao longo desta semana, mostra as boas práticas implantadas nos locais que conseguiram alavancar o emprego.
Na Região Norte, tema desta reportagem, o empreendedorismo encontrou vantagens e obstáculos para prosperar em áreas de boom populacional. Boa Vista, por exemplo, foi a capital brasileira que mais cresceu na última década. Sua população passou de 290,7 mil para 436,5 mil entre 2011 e 2021, um crescimento de 50%, muito superior à média das capitais (11%), conforme as projeções do IBGE. O número de vagas de emprego em microempresas aumentou de 8.354 para 11.824 no mesmo período, alta de 41,5%, conforme os dados da Rais.
O crescimento populacional decorreu principalmente da crise humanitária na Venezuela, que ocasionou uma das maiores migrações internacionais da história recente e afetou Roraima a partir de 2015.
“Para dar conta dessa crise, recebemos grande aporte de recursos financeiros para garantir segurança pública, atendimento hospitalar e educação. Isso se somou aos valores que o estado recebia da União por ser antigo território, o que contribuiu para que muitas atividades eclodissem na última década. Além disso, estudos mostram que onde há mão de obra imigrante, desperta o empreendedorismo”, explica a economista Meire Joisy Almeida Pereira, professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR).
Meire destaca que o estado e a Região Norte como um todo são formados por imigrantes, mas o cenário tem mudado nos últimos anos. “Como é um estado de fronteira, temos aqui um grande volume de militares. As pessoas historicamente vêm e vão de Boa Vista. Mas, pela qualidade de vida que começou a ganhar força, as pessoas começaram a se fixar aqui”. Outro ponto é que a migração em massa levou pessoas mais jovens para o estado, que partem para o empreendedorismo ao não encontrar vagas de emprego.
Boa Vista tem características bem distintas das demais capitais. A economista, que atua com consultoria de microempresas e é doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia, citou dados da junta comercial (Jucerr) que mostram que 99,6% das empresas do estado estão em Boa Vista, e que destas, 99% são microempresas e de pequeno porte.
Onde o emprego em microempresas mais cresceu no Norte (cidades com mais de 50 mil habitantes; fonte: Rais/MTE e IBGE)
Município | População | Empregados em 2011 | Empregados em 2021 | Variação (%) |
Itaituba (PA) | 101.541 | 1.871 | 3.529 | 88,6 |
Itupiranga (PA) | 53.439 | 239 | 439 | 83,7 |
Marituba (PA) | 135.812 | 1.040 | 1.883 | 81,1 |
Benevides (PA) | 64.780 | 733 | 1.297 | 76,9 |
Igarape-Miri (PA) | 63.367 | 232 | 395 | 70,3 |
Acara (PA) | 55.744 | 131 | 221 | 68,7 |
Parauapebas (PA) | 218.787 | 3.960 | 6.633 | 67,5 |
Tefé (AM) | 59.250 | 532 | 888 | 66,9 |
Manicore (AM) | 57.405 | 181 | 294 | 62,4 |
Novo Repartimento (AM) | 78.488 | 473 | 767 | 62,2 |
Extração de ferro no Pará atrai investimentos
No Norte do Pará fica a terceira cidade que mais exporta no Brasil. Parauapebas, com o minério de ferro extraído da Vale, movimentou US$ 87 bilhões entre 2011 e 2021, equivalente a 6% de todas as receitas de exportação do país, segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. No mesmo período, o número de empregados em microempresas do município aumentou de 3.960 para 6.633, um aumento de 68%.
"Estamos aqui em uma cidade mineradora e por isso há grandes bolhas de consumo. A renda per capita fica acima da média, tanto regional quanto nacional, e o crescimento populacional também é fora do normal. Em 1990 havia 53 mil habitantes, as previsões do novo Censo indicam para algo em torno de 270 mil", conta João Paulo Borges de Loureiro, professor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e coordenador do Projeto Mineração e Sustentabilidade em Carajás (Misuc).
"São 270 mil pessoas que precisam comer, se vestir, se locomover, precisam de uma série de serviços relacionados à saúde e à educação. A cidade se tornou grande polo de imigração e abertura de novas empresas, e a maioria é de pequeno porte ou de microempreendedores", diz Loureiro.
As mineradoras pagam a Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM), que é de 4% da receita bruta, e 60% do valor arrecadado fica com o município. Esses recursos ajudam a prefeitura a dar conta dos investimentos necessários para atender a população, e o dinheiro que circula na cidade estimula as pessoas a empreender e investir. Um dos problemas, aponta Loureiro, é que o minério de ferro é uma commodity sujeita à variação das cotações internacionais, e quedas no preço prejudicam muito o município.
Outra preocupação é que a extração de ferro é finita. “Se a gente não se preparar para ter economia mais sólida, teremos de pensar seriamente o que fazer com 300 mil pessoas que estão dentro de uma cidade no meio da floresta amazônica”, ressalta.
Por isso, diz ele, as lideranças locais estão mobilizadas para diversificar a atividade econômica com opções turísticas e utilização sustentável de produtos naturais não madeireiros. Loureiro cita a necessidade de investimento em pesquisa e ensino superior, como a vizinha Canaã dos Carajás está fazendo, para ampliar as opções de formação, trabalho e difusão do conhecimento.
Tefé, no Amazonas, cresce com base no manejo de um dos maiores peixes do mundo
Situada nas margens de um afluente do Rio Amazonas, a cidade de Tefé (AM), com 264 anos, sempre teve a economia atrelada à pesca e ao extrativismo vegetal. Mas nas últimas décadas, o trabalho conjunto de ONGs, poder público e Sebrae com microempreendedores promoveu práticas sustentáveis que deram novo dinamismo para toda a região do entorno e ajudam a vencer obstáculos logísticos, como falta de transporte, estradas ou mesmo telefonia e internet.
“Desde que a pessoa tenha documentos do Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar], carteira de produtor ou de pescador, tratamos como um empreendedor. Nossa agricultura familiar é de pequena escala, pois as distâncias encarecem o produto, há uma dificuldade com comunicação, o transporte é feito de barco. O importante é ajudar para agregar valor”, explica o analista técnico do Sebrae Amazonas José Antônio Cardoso Fonseca.
Uma importante ferramenta para isso é o selo de Indicação Geográfica (IG), concedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) aos produtos que apresentam uma qualidade particular decorrente de recursos naturais ou de know-how específico.
Tefé abriga a Federação dos Manejadores e Manejadoras de Pirarucu de Mamirauá, que em 2021 recebeu o selo IG. Nativo da Amazônia, o pirarucu é um dos maiores peixes de água doce do planeta.
“A ciência comprovou que uma técnica ancestral de manejo é eficiente para preservar a espécie. Respeitado o ciclo, os pescadores cuidam do pirarucu e do lago, das margens, e isso acaba preservando o ecossistema em cadeia. Isso é fruto de um cuidado grande, esforço de muitas instituições. Os pescadores se tornam vigilantes de que as regras são cumpridas. Isso é importante para a qualidade dos produtos e sustentabilidade”, diz Fonseca.
A 64 quilômetros de distância fica o pequeno município de Uarini, com 13,8 mil habitantes, que também conquistou um selo IG pela farinha local, de mesmo nome. O desenvolvimento das pequenas cidades nessa região beneficiou Tefé, que tem 59 mil habitantes e recebe o fluxo de moradores de cidades próximas, que chegam em barcos para usar o aeroporto e buscar atendimento em serviços públicos, como agências do INSS e da Polícia Federal. A movimentação e formalização de empresas ajudou a ampliar o número de vagas em microempresas no município, que passou de 532 para 888 entre 2011 e 2021, um crescimento de 67%.
O crescimento da cidade onde nasceu favoreceu os planos da empresária Elaine Costa, 27 anos, que em 2021 abriu uma escola de dança em Tefé. Quando criança, sempre quis aprender a dançar, mas não havia essa opção na cidade. Alimentou o sonho até se mudar para Manaus, onde fez faculdade de Dança e outros cursos profissionalizantes. Aos 20 anos, ela abriu um estúdio em sociedade na capital amazonense.
“Veio a pandemia e tudo fechou. Vi a oportunidade de começar de novo. Como sempre quis voltar para cá, foi a chance que tive de abrir a primeira escola da cidade”, conta Elaine. Por enquanto, o espaço conta com outras professoras auxiliares em caráter de estágio e uma funcionária. “Meu pai abriu negócio aqui ainda antes de eu nascer, então me espelhei muito nele para empreender. Mas a escola tem dois anos apenas, ainda estou na fase de ir descobrindo os desafios”, compartilha.
Segundo Elaine, Tefé está cheia de oportunidades. “É uma cidade que está crescendo muito e aqui é um polo para as cidades vizinhas. A logística é complicada, não há estradas. Estamos no meio da selva e do rio. Mas ao mesmo tempo consumimos tudo que é daqui, então o comércio gira bastante e um compra do outro, o dinheiro circula por aqui”, resume. Um negócio recente na cidade é o aluguel de casas flutuantes para turismo, pelo atrativo de se banhar no Rio Tefé em meio à floresta.
Esta é a quarta reportagem da série "Onde empreender tem vez", que mostra as boas práticas dos municípios onde o emprego em microempresas mais cresceu na última década. Clique aqui para ler a série completa.
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