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O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes: governo quer parcelar pagamento de precatórios para ampliar Bolsa Família.
O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes: governo quer parcelar pagamento de precatórios para ampliar Bolsa Família.| Foto: Edu Andrade/Ascom/ME

O governo federal tem corrido contra o tempo em busca de uma solução para lidar com os quase R$ 90 bilhões de precatórios a serem pagos pela União no ano eleitoral. A estratégia mais cogitada é propor uma PEC que permita o parcelamento dos débitos. Isso não apenas aliviaria o Orçamento, mas permitiria ao governo "turbinar" o substituto do Bolsa Família, garantindo ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) esteio político nas eleições de 2022.

Na avaliação de especialistas, a medida estudada pelo governo, além de não ser uma "bala de prata" para resolver os problemas fiscais, pode gerar gargalos econômicos quase "insuperáveis" e sérios problemas agregados. Assim que o plano veio a público, foi recebido com expressões como "contabilidade criativa" e "pedalada fiscal" – prática de adiar pagamentos que resultou no impeachment de Dilma Rousseff (PT).

Com o pagamento em prestações dos precatórios, analistas afirmam que as despesas, embora menores num primeiro momento, depois crescerão consideravelmente com as correções monetárias. A postergação, assim, pode atrapalhar o planejamento e a execução das contas públicas no futuro. Em 2023, por exemplo, o governo terá de lidar com os precatórios daquele ano mais remanescentes de 2022, corrigidos. Em 2024, vai arcar com saldos dos dois anos anteriores, mais os novos pagamentos. E assim por diante.

Outra fonte de preocupação é a possibilidade – cogitada por aliados do governo – de retirar o pagamento de precatórios do teto de gastos. No mercado financeiro, a percepção de que a principal regra das contas públicas pode ser novamente relaxada tem levado a um aumento das taxas de juros. "Todo tipo de contorno ao teto de gastos, ainda mais nesse momento, é um retrocesso no arcabouço fiscal brasileiro, que gerou tantos benefícios em passado recente", disse o economista-chefe da Ativa Investimentos, Étore Sanchez, em relatório a clientes.

Mas também há quem considere que, mesmo não sendo a saída ideal, não se deve descartar inteiramente a possibilidade de parcelamento, dada a necessidade de acomodar esse tipo de gasto ao longo do tempo.

O valor estimado para o pagamento de precatórios em 2022 é o maior da história, mais de 60% superior ao previsto para este ano (cerca de R$ 55 bilhões). O cobertor é tão curto que a situação é tida por alguns especialistas como praticamente "impagável".

"O governo já tem muita dívida, além da evidente necessidade de se atualizar o sistema tributário. A questão dos precatórios é mais uma pedra no caminho da União. A grande pergunta é: de onde ele vai tirar o dinheiro para pagar as dívidas?", questiona Juliana Inhasz, doutora em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e professora no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).

A especialista lembra que o Orçamento é extremamente engessado, com mais de 90% de despesas obrigatórias, o que limita a margem de manobra. "O espaço vai ser muito pequeno para remanejar recursos, e os que conseguir não vão ser suficientes para pagar a conta", diz. "O dilema pode inclusive gerar um atraso para aprovar o Orçamento do próximo ano, em uma repetição do que aconteceu em 2021."

Governo não contava com o salto dos gastos com precatórios em 2022

O ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que os precatórios pegaram o governo "dormindo no ponto". De fato, pouco tempo atrás, a União comemorava um aparente espaço no teto de gastos de cerca de R$ 20 bilhões no ano que vem. Essa margem decorreria de uma espécie de "bônus inflacionário", já que o fator de correção do teto de 2022 é a inflação acumulada em 12 meses até o último mês de junho, que foi bastante elevada – de 8,35% pela medição do IPCA.

O governo apostava nessa margem no Orçamento a fim de que, entre outras coisas, pudesse turbinar o novo programa de transferência de renda que vai substituir o Bolsa Família – iniciativa que tem sido chamada de "Auxílio Brasil". O atual valor médio do benefício é de R$ 193, mas o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) afirmou que quer elevar o montante para R$ 300, no mínimo – mudança que deve gerar uma conta da ordem de pelo menos R$ 50 bilhões para os cofres do governo. Em 2021, o orçamento do Bolsa Família é de R$ 35,4 bilhões.

Mas o governo comemorou cedo demais: além de a margem sob o teto estar sujeita a variações nos próximos meses, pois depende de como a inflação vai se comportar até dezembro (e, consequentemente, como ela influenciará o valor do salário mínimo e de uma série de despesas obrigatórias), os precatórios caíram como uma "bomba" fiscal no colo da União. A Economia não contava com o salto das dívidas decorrentes de sentenças judiciais.

Embora se trate de um montante variável, o argumento de que não era possível prevê-lo não se sustenta. Em especial, porque se tratam de processos que costumam tramitar por anos no Poder Judiciário. Para além disso, o próprio Balanço Geral da União, por exemplo, prevê um valor significativo de potencial "perda". No balanço de 2021, o risco fiscal foi estimado em mais de R$ 1 trilhão, considerando-se todos os possíveis revezes neste e nos próximos anos.

Economista vê problemas de prevenção e gestão

Para o economista Josué Pellegrini, a situação revela problemas de caráter preventivo e de gestão, no sentido de o governo se antecipar aos acontecimentos, uma vez que cabe à Advocacia-Geral da União (AGU) acompanhar todas as ações que tramitam contra a União.

"A AGU está, por exemplo, se empenhando em colocar a posição da União nos vários processos? Houve alguma mudança de propensão do Judiciário, de forma geral, uma vez que os precatórios vêm de vários tribunais? Houve uma predisposição geral do Judiciário de votar contra a União? Ou a AGU não está trabalhando adequadamente no acompanhamento dessas matérias?", questiona o especialista.

Na perspectiva de Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da Associação Contas Abertas, "os governos vem dormindo no ponto há alguns anos", mas poderiam, e deveriam, ter se preparado para lidar com os desafios fiscais. "O governo não pode alegar que está despreparado", diz o analista.

O Judiciário costuma encaminhar em julho o montante das dívidas ao Planejamento, que inclui os valores ao endereçar a proposta orçamentária do exercício seguinte, até 31 de agosto, para o Legislativo. Quando analisada a série histórica, o montante de precatórios a serem pagos pelos governo vem crescendo ano a ano.

Em 2022, a cifra deve aumentar especialmente por conta de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) relacionadas ao Fundef, hoje transformado em Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). A Corte obrigou a União a ressarcir estados e municípios pelo cálculo incorreto do Fundef, e será preciso desembolsar mais de R$ 15 bilhões do Orçamento.

Estados e municípios já parcelam dívidas. União também pode, mas só em alguns casos

Apesar de muitos analistas considerarem a intenção do governo de parcelar as dívidas como "calote" nos credores, essa medida já é prevista na Constituição – embora não de forma tão abrangente. O artigo 100 da Constituição permite, no parágrafo 20, o parcelamento de precatórios de valor elevado. Pode ser parcelado aquele que, sozinho, ultrapasse 15% do montante total previsto para o ano. Em casos assim, 15% do valor deve ser pago até o fim do exercício seguinte e o restante nos cinco anos subsequentes, com juros e correção, ou mediante acordos diretos.

O parcelamento é usado com frequência nos governos regionais. Por emenda constitucional, estados, Distrito Federal e municípios conseguiram alterar o artigo 101 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, permitindo "pedalar" os precatórios até 2024.

A nova redação estabeleceu que os entes que, em 25 de março de 2015, se encontravam em mora no pagamento de seus precatórios, poderiam quitar as dívidas até 31 de dezembro de 2024, com correção monetária.

A ideia de parcelar os débitos, contudo, tende a gerar incertezas no mercado financeiro. "Não é calote no stricto senso. Mas o governo quer renegociar uma dívida sem que o credor tenha parte na escolha, ele simplesmente terá que aceitar a nova condição. É uma relação unilateral muito desigual", avalia Juliana, do Insper. "Nesse aspecto, não é um calote, mas trata-se de uma manobra utilizada pelo governo."

"O grande problema é que parcelar a dívida em dez anos, de alguma forma, atrapalha o planejamento econômico daqui pra frente, porque o governo vai arcar com uma dívida ainda maior. Haverá outros governos que vão querer ficar dentro do teto, na medida do possível, e tentarão investir, crescer, mas haverá uma barreira", diz a economista.

Josué Pellegrini diz não ver a hipótese de parcelamento como "ideal". O parcelamento, segundo ele, seria mais uma saída devido à falta de outras alternativas, uma vez que "não se antecipou devidamente uma despesa muito alta". "E, ainda assim, uma parte relevante teria que ser paga normalmente, e dentro do teto de gastos", ressalta.

Embora o parcelamento pela União já esteja previsto na Constituição, para dívidas grandes, a situação atual é tão grave que o governo vê necessidade de promover novas mudanças no texto constitucional para ampliar as possibilidades de pagamento parcelado.

"O governo quer, na verdade, um maior horizonte de parcelamento, quer criar uma facilidade a mais do que aquela que a Constituição já lhe dá, pois, caso contrário, já teria essa possibilidade. E como os maiores precatórios foram do Supremo, seria possível negociar", diz Gil Castello Branco.

Apesar de reconhecer a previsão constitucional para a medida, o especialista a tem como uma afronta aos credores e, em última instância, ao próprio Poder Judiciário.

"Há pessoas físicas e jurídicas que estão há décadas esperando uma sentença que lhes seja favorável. É uma afronta, ainda mais em um país em que o Judiciário é tão lento. Muitas vezes o pagamento vem em uma situação completamente diferente do momento em que o beneficiário ingressou na Justiça", opina o fundador da Associação Contas Abertas.

Há ainda quem veja que esse tipo de medida possa ser enquadrada no artigo 12 da Lei Nº 1.079/50, que trata dos crimes contra o cumprimento das decisões judiciais.

O dispositivo estabelece como infração os atos de: "1 - impedir, por qualquer meio, o efeito dos atos, mandados ou decisões do Poder Judiciário; 2 - Recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do exercício das funções do Poder Executivo; 3 - deixar de atender a requisição de intervenção federal do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral; 4 - Impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária.

Fundo para pagar precatórios contradiz plano de Guedes

Na PEC, o governo também deve propor a criação de um fundo patrimonial com recursos provenientes de outras áreas, como privatizações, para bancar os precatórios fora do teto de gastos. A ideia, na prática, é criar uma proteção mais permanente contra os "meteoros" fiscais, como costuma chamar o titular da Economia.

Ao sugerir esse caminho, o governo se contradiz, avalia Juliana Inhasz, do Insper. Ela lembra que o próprio ministro da Economia já defendeu desvincular receitas e diminuir os mais de 285 fundos existentes – esse é o objetivo da PEC dos Fundos Públicos, apresentada com alarde por Guedes em novembro de 2019 e que ainda tramita no Congresso.

"A ideia do fundo pode ajudar em parte, mas até que ponto isso não é um esforço muito elevado para um resultado pequeno? Não deve resolver a situação", diz.

Sacrificar Orçamento pode gerar "bola de neve"

A ideia de "sacrificar" o Orçamento e aprovar uma PEC às pressas para melhorar o novo Bolsa Família pode gerar gargalos quase insuperáveis.

Para Étore Sanchez, economista-chefe da Ativa Investimentos, a questão dos precatórios é utilizada pelo governo para a promoção de dicotomias. Trata-se, segundo ele, de uma tática retórica. "A oposição entre Bolsa Família e precatórios, por exemplo, não existe", afirma.

"Se existe dicotomia entre precatório e Bolsa Família, existe, também, uma dicotomia entre salário de político, investimento em educação. É algo que não poderia ter sido deixado em branco", diz Sanchez. Ele observa que, inevitavelmente, a economia é sensível a ciclos políticos.

Valer-se dessa situação como medida populista para ganhar público para a eleição em 2022 pode gerar um problema agregado muito grande, avalia Juliana. "O governo vai ter que se endividar, e a pergunta que fica, e que ninguém sabe responder, é: como vamos lidar com isso em 2023, com o passivo que fica?", questiona.

Para a economista, a atenção que será dada à PEC do parcelamento de precatórios pode prejudicar a discussão de outros assuntos relevantes. O governo ainda nem apresentou o texto inicial e tem pressa para aprovar a proposta – pretende o aval do Congresso até o fim deste mês, para que possa apresentar o Orçamento de 2022 já na nova realidade.

"Dentre as alternativas, pagar parcelado gera, de fato, um impacto fiscal menor. Mas isso vai ter que ser votado, vai tramitar nas Casas e tem muita gente que vai acabar se opondo por conta de oposição política. Isso também deve travar outras discussões, como a reforma tributária, reforma administrativa, e outras coisas que precisam sair do papel", avalia.

STF obrigou governo a pagar renda básica a partir de 2022

Embora seja tido por muitos interlocutores como uma estratégia do governo do presidente Jair Bolsonaro com vistas às eleições de 2022, o novo programa também deve ajudar a cumprir uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em abril deste ano, a Corte apertou o cerco contra o governo federal para que cumpra a partir de 2022 a lei 10.835/2004, aprovada há 17 anos, mas nunca regulamentada. A decisão do STF determina uma política de transferência incondicional de renda básica para o estrato da população brasileira em situação de vulnerabilidade (extrema pobreza e pobreza). A lei é de autoria do ex-senador e atual vereador de São Paulo Eduardo Suplicy (PT).

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