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Investir no desenvolvimento da primeira infância em ações de transferência de renda, como o Renda Brasil, traria melhores resultados futuros para economia.
Investir no desenvolvimento da primeira infância em ações de transferência de renda, como o Renda Brasil, traria melhores resultados futuros para economia.| Foto: Henry Milleo/Arquivo/Gazeta do Povo

Entre os detalhes que vazaram antes da suspensão do Renda Brasil, sucessor do Bolsa Família, pouco se falou sobre o público-alvo e ações específicas para crianças, porque a discussão se concentrou sobre o valor do benefício médio mensal.

O programa, que pretende imprimir a marca social da gestão de Jair Bolsonaro, obviamente visaria os mais pobres e poderia até premiar, com valores extras, os pequenos que tiverem bom desempenho na escola. Mas não é de hoje que economistas discutem o reforço das medidas de assistência social voltadas à primeira infância, principalmente pelo retorno que elas oferecem à sociedade e economia.

Uma dessas proposições, elaborada pelos pesquisadores Naercio Menezes Filho e Bruno Komatsu, professores do Insper, defende a distribuição de um valor maior, priorizando as famílias pobres com crianças, em vez de repartir pequenos valores para um público mais amplo. “Apesar de o PBF [programa Bolsa Família] ter uma focalização bem melhor do que a do auxílio emergencial em relação ao pagamento do benefício de pessoas não elegíveis, ele não é suficiente para tirar as crianças da pobreza. Apenas evita a pobreza extrema”, observam.

Nesse sentido, o desafio da reformulação do programa de transferência de renda é combinar as boas partes do que já existe e eliminar as ruins. É isso que permitiria ampliar o valor de transferências para famílias com crianças.

Para Naercio Menezes Filho, investir na primeira infância agora ajudaria a resolver muitos problemas crônicos do país, como a baixa produtividade, alta informalidade e elevado porcentual de jovens que não trabalham e não estudam. Essas condições são reflexos da falta de oportunidades a que estão submetidas as crianças mais pobres.

"As crianças de famílias pobres vão ter muita dificuldade na vida e acabamos as perdendo. Aí gasta com construção de cadeia, hospital e poderíamos evitar isso. Se a gente quiser melhorar o país, temos que, a partir desta geração, dar condições de vida para as crianças", argumentou em entrevista à Gazeta do Povo.

Só que esse é um trabalho de construção demorado e os efeitos serão sentidos dali a pelo menos duas décadas, quando as crianças de hoje terão acesso a educação continuada e emprego formal.

"O Bolsa Família não é suficiente. Você tem que transferir renda para a família pelo menos comprar comida, transporte, alimentação, para a criança se desenvolver com tranquilidade em um ambiente estável", diz o pesquisador.

Alternativas para um benefício voltado à primeira infância

Para avaliar as melhores alternativas para criação de um benefício voltado à primeira infância, os pesquisadores levaram em conta que o Brasil tem 12,8% de famílias pobres e que, entre as famílias com crianças de até seis anos, a proporção de pobres sobe a 24,5%. A partir daí, simularam diferentes hipóteses para reduzir esses percentuais.

Foram avaliados três cenários de distribuição de renda (R$ 400, R$ 800 e R$ 1.200 por mês), simulando benefício por família ou por criança, considerando diferentes abrangências do programa (universal ou focalizado em quem já recebe ou não o Bolsa Família) e ainda se esse auxílio substituiria o Bolsa Família ou não.

Dentre todas as simulações, a que mostrou melhor relação entre custo total do programa e efetividade para redução de pobreza geral e infantil foi o pagamento de uma bolsa mensal de R$ 800 por criança de até 6 anos de famílias pobres que já estão na base de cadastro do Bolsa Família. “Se o PBF fosse aperfeiçoado, chegando a todas as famílias pobres e retirando do programa as que não o são, (…) o gasto se torna mais eficiente no sentido de reduzir a pobreza”, observam.

As projeções apontam que a transferência mensal de R$ 800 por criança reduziria a pobreza infantil para 5% e a geral para 9% ao custo de R$ 48 bilhões por ano – ou R$ 77 bilhões de custo total, o que inclui as novas transferências e a manutenção do Bolsa Família, que continuaria sendo pago às famílias pobres sem filhos.

“Assim, com esse valor poderíamos praticamente eliminar a pobreza infantil no Brasil e manter as condicionalidades existentes no PBF, que se mostraram importantes para melhorar a educação e saúde dos mais pobres”, escreveu Menezes Filho em artigo no "Valor Econômico".

Embora tenham simulado transferências com valores muito elevados, os pesquisadores ponderam que um custo muito alto poderia inviabilizar o programa. "Você pode acabar gastando muito com famílias que não são pobres. O auxílio emergencial tem uma proporção alta de família não pobres que recebem ajuda", avalia Menezes Filho. Além disso, nem sempre o valor mais elevado é o mais eficaz para a redução da pobreza.

Para bancar os custos, eles sugerem o fim de abatimentos do Imposto de Renda para gastos com educação e saúde e a tributação da renda independentemente de fonte – o que inclui lucros e dividendos, juros sobre capital próprio, renda de trabalho e rendimento de empresas que estão no Simples. Algumas dessas propostas, como o fim das deduções de despesas médicas e educacionais, já foram consideradas pelo próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, ao comentar as fontes de recursos para o Renda Brasil.

Renda básica para primeira infância virou projeto de lei no Senado

A ideia dos professores chamou a atenção da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), que transformou o tema em projeto de lei.

O PLP 213/2020 estabelece que famílias vulneráveis com crianças de até seis anos receberão um auxílio mensal de R$ 800 durante os três primeiros anos, com reduções progressivas de R$ 100 até a criança completar seis anos. A proposta limita o número de benefícios que podem ser acumulados por família (até três) e prevê gatilhos para redução do benefício, caso essa família ultrapasse o limite de renda mensal per capita.

A sugestão é que a renda básica da primeira infância alcance os mesmos beneficiários do Bolsa Família que já recebiam a parcela variável concedida para quem tem filhos nessa faixa etária. Por isso, as condicionalidades para concessão do auxílio seriam mantidas: frequência escolar mínima, acompanhamento de saúde e acompanhamento nutricional.

“Sabemos que a pobreza afeta desproporcionalmente as crianças. E sabemos também que os primeiros anos de vida são cruciais para a formação de um indivíduo”, escreveu a senadora na justificativa da proposta.

Ela cita pesquisas conduzidas pelo economista James Heckman, ganhador de um Nobel de Economia, que mencionam o retorno para a sociedade de investimentos na primeira infância. Em um desses modelos, a cada dólar investido na primeira infância há um retorno anual de 8% a 10% no futuro, já descontada a inflação, contra 5% de aplicações no mercado financeiro. A senadora afirma que essa taxa de retorno pode chegar a 14% ao ano.

Para viabilizar a proposta, Eliziane propõe a criação ou modificação de normas tributárias para a parcela mais rica da população. A primeira é a cobrança de um Imposto sobre Grandes Fortunas, que teria uma alíquota de 2% incidindo sobre patrimônios líquidos superiores a R$ 20 milhões.

Na sequência, viria a tributação sobre distribuição de lucros e dividendos a acionistas de empresas, com alíquota de 15%. Para compensar, seriam reduzidas as alíquotas da tabela de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) – a alíquota-base passaria de 15% para 12,5% e a adicional, de 10% para 7,5%.

Por fim, estados e Distrito Federal poderiam aumentar as alíquotas do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), que incide sobre heranças. O Senado revisaria o valor máximo, que hoje é de 8%, em até 18 meses.

Investimento em infância gera resultados

Hoje as ações de assistência social promovidas pela União são mais voltadas para os idosos – basta mencionar a Previdência e o Benefício de Prestação Continuada, que representam gastos públicos mais elevados – e há uma discussão crescente sobre a melhor forma de alocar esses recursos.

Os pesquisadores Naercio Menezes Filho e Bruno Komatsu defendem quatro pontos para justificar a focalização da transferência de renda para famílias com crianças pequenas:

  • Habilidades cognitivas e aprendizado são fatores que influenciam o crescimento econômico no longo prazo. Países de renda média e baixa que falham no desenvolvimento das crianças geram déficits anuais de renda para elas na fase adulta de 19,8%. “Não investir em ações para lidar com problemas de desenvolvimento infantil representa uma perda de renda anual relevante e um obstáculo ao desenvolvimento do país.”
  • A primeira infância é a fase em que investimentos para aumento de capital humano trazem mais retorno. “Os primeiros 1.000 dias de vida de uma criança constituem um período particularmente sensível no seu desenvolvimento, no qual as crianças são especialmente vulneráveis em relação a condições de vida precárias e estressantes”, argumentam. O desenvolvimento das crianças pode ser afetado por uma série de fatores de risco, desde a desnutrição até a exposição a doenças e violência, que influenciarão a vida adulta e podem culminar em menores níveis de educação e salário e maiores índices de violência e criminalidade, se não forem revertidas ao longo do processo de crescimento.
  • O investimento na primeira infância pode interromper o ciclo de transmissão de pobreza para a próxima geração. “Transferir recursos nos primeiros anos de vida pode fazer com que as crianças tenham melhores condições para o seu desenvolvimento, especialmente entre as famílias mais pobres”, observam os pesquisadores.
  • A situação de vulnerabilidade das crianças brasileiras já era grave mesmo antes da pandemia. “Em 2018, transferências de programas sociais não alcançavam 23% das crianças com menos de 5 anos, e cerca de 43% delas viviam em casas sem infraestrutura adequada”, apontam.

Ipea e Câmara já propuseram ações para a primeira infância

No ano passado, o Ipea propôs a criação de um sistema de proteção social, partindo da fusão de programas que já existem, para incluir 17 milhões de crianças em situação de vulnerabilidade e que não recebem auxílios do governo federal. A proposta traz algumas semelhanças com o Renda Brasil, já que prevê a integração do Bolsa Família, o salário-família, o abono salarial e a dedução por dependente no Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Os pesquisadores Sergei Soares, Leticia Bartholo e Rafael Guerreiro Osório sugerem a junção dessas políticas por avaliar que o sistema de proteção atual é uma “colcha de retalhos”, com muitos buracos e sobreposições.

A integração desses programas possibilitaria um orçamento de R$ 52,8 bilhões para ações de proteção à infância e enfrentamento da pobreza. Seriam pagos três tipos de benefícios:

  • Benefício de R$ 45 por criança e jovem com menos de 18 anos. Universal e independente de renda.
  • Benefício de R$ 90 por criança de até quatro anos, pago integralmente para as famílias que se enquadrem na linha de pobreza sugerida (renda per capita de R$ 250) e com redução regressiva na medida em que a renda familiar seja maior.
  • Benefício de R$ 44 focalizado na pobreza extrema, pago a todas as famílias nesta condição, com ou sem filhos.

Também em 2019, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), anunciou que os parlamentares trabalhariam em uma agenda social. Um dos projetos, o PL 6072/2019, abraçado por Tabata Amaral (PDT-SP), previa uma atualização do Bolsa Família, com a criação de um referencial de pobreza com programação de atualização monetária e correção automática do valor do benefício.

A proposta privilegia a primeira infância, já que famílias com crianças pequenas receberiam um benefício maior. Para isso, a previsão é de um incremento de até R$ 10 bilhões ao ano no orçamento do programa. O PL foi remetido a uma comissão especial que discutiria o Bolsa Família em fevereiro deste ano e está parado.

Criado em 2017, Criança Feliz é elogiado

O Brasil já tem uma ação voltada à primeira infância: o Criança Feliz é considerado o maior programa de acompanhamento familiar para desenvolvimento infantil do mundo. Seu foco está justamente nas crianças de até 6 anos, que recebem visitas para acompanhamento. Aos pais são oferecidos instrumentos para que estimulem o desenvolvimento cognitivo, emocional e psicossocial dos filhos.

A ação começou em 2017, a um custo anual de R$ 207 milhões. Em 2019, o recurso para o programa era de R$ 377 milhões, e já havia possibilitado o atendimento a mais de 800 mil crianças. A meta do Ministério da Cidadania era de chegar a 2022 com 3 milhões de beneficiários. Até março de 2020, 2.927 cidades faziam parte do programa e outras 1,2 mil eram consideradas aptas. A metodologia da ação, que consistia em visitas, precisou ser adaptada por causada pandemia da Covid-19.

Naercio Menezes Filho, do Insper, avalia que o Criança Feliz é uma excelente iniciativa, alinhada com os programas mais modernos da área, porque combina visitas domiciliares e capacitação dos pais para interagirem com as crianças. Mas pode melhorar, combinando outras ações em um só pacote, como ações de transferência de renda e de saúde, a exemplo do que já é feito no programa Saúde da Família. "São várias políticas separadas, com públicos diferentes. Precisamos fazer algo coordenado", diz o especialista.

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