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Níveis dos reservatórios de água que produzem energia estão em níveis críticos.| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo

Afetados pela menor afluência de água em mais de 90 anos, os reservatórios de hidrelétricas do país regrediram a níveis comparáveis aos que provocaram o racionamento de energia de 2001. A falta de chuvas levanta novo alerta para o consumidor, já afetado pelos efeitos da crise sanitária.

Apesar de o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, negar que a adoção de medidas de racionamento estejam no radar em meio à crise hídrica, especialistas no setor elétrico afirmam que medidas pontuais de economia de energia e de água devem surgir no curto prazo para evitar riscos de desabastecimento. Além disso, é considerado certo que as contas de luz continuarão no patamar mais caro até o final do ano – a bandeira vermelha 2 entrou em vigor neste mês de junho.

A seca histórica que pressiona o setor elétrico brasileiro joga luz sobre aspectos que vão além do conjuntural, na avaliação de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo. A percepção é de que o baixo nível de água nos reservatórios, problemático por si só, é agravado por ao menos três importantes questões estruturais que cobram uma conta alta no cenário nacional.

Térmicas muito caras e com capacidade instalada pouco aproveitada

Na avaliação de Roberto Pereira D'Araújo, do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), o setor elétrico brasileiro é prejudicado por térmicas muito caras e que, na prática, colaboram para o uso dos reservatórios mesmo em momentos nos quais eles deveriam ser poupados para garantir segurança energética.

Segundo o especialista, as usinas movidas a gás, óleo diesel, carvão e outros combustíveis são pesadas demais do ponto de vista financeiro, provocando demora no seu acionamento em substituição à geração hidrelétrica, que representam 65% da geração nacional.

“Os níveis dos reservatórios estão se reduzindo há mais de quatro anos. Não há como descartar o desmatamento da Amazônia que ocorre nos últimos anos. Entretanto, é preciso lembrar que, desde a adoção desse modelo mercantil, multiplicamos a nossa capacidade de térmicas por seis. Como grande parte delas são muito caras, não são usadas para preservar os níveis das usinas”, completa D’Araújo. O resultado é o contínuo esvaziamento dos reservatórios mesmo em períodos críticos.

Dados revelados em maio pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) corroboram com essa tese. Levantamento da EPE mostra que desde 2015 vem aumentando a taxa de indisponibilidade das termelétricas, apesar de elas seguirem recebendo receitas fixas para entregar energia quando acionadas pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

A indisponibilidade ocorre quando as usinas estão paradas para manutenção, por problema em equipamento ou falta de combustível. Em 2020, ano que também foi marcado pela seca, as térmicas a diesel, por exemplo, ficaram indisponíveis durante mais da metade do ano (53%), um enorme salto se comparado à taxa de 2011, quando a indisponibilidade se resumiu a 4%.

Conforme o mesmo estudo, de 2011 para 2020 a indisponibilidade de termelétricas a óleo combustível aumentou de 3% para 26%. Nas de carvão, a taxa foi de 12% para 19% e, nas usinas a gás, de 14% para 19%. Segundo o Idec, isso significa que o brasileiro banca usinas que entregam menos energia do que deveriam ou simplesmente não operam.

O estudo calcula que R$ 8,7 bilhões são gastos a cada ano com projetos que já poderiam ter o contrato rompido por passarem mais tempo que o permitido sem gerar energia. Por trás desse aumento na indisponibilidade, podem estar fatores como o envelhecimento das máquinas, falhas de manutenção e falta de investimento em melhorias.

Uma estratégia mais interessante para preservar os níveis de armazenamento estaria numa matriz elétrica mais variada e que possa se fiar especialmente em fontes renováveis para distensionar o sistema durante períodos prolongados de estiagem ou baixa afluência.

D'Araújo dá destaque para a solar e a eólica, que em geral entregam energia mais barata do que aquela disponibilizada pelo parque térmico nacional. Embora sol e vento sejam abundantes no país, essas fontes ainda representam fatias pequenas da geração brasileira, com 1% e 8,6% respectivamente, segundo dados da EPE.

Uma dificuldade relativa a essas fontes é a intermitência natural na geração de energia, provocada por dias nublados ou sem vento, o que acaba limitando a potência "garantida" das usinas.

Limitação de intercâmbio e o risco de estrangulamento da oferta

Países tão extensos quanto o Brasil experimentam no dia a dia do setor elétrico dificuldades para fazer a energia produzida em uma ponta do território chegar a regiões deficitárias. São as chamadas limitações de intercâmbio – quando falta capacidade de transmitir a energia de uma região para outra, conforme a demanda.

Por aqui isso significa não só a necessidade de mais investimentos, para fazer com que a energia disponível alcance os locais de consumo, mas também a ocorrência de desperdícios enquanto essas ampliações e melhorias de rede não são concluídas.

Hoje, por exemplo, o subsistema Centro-Oeste/Sudeste (o mais atingido pela seca) gera 52% da energia produzida no Brasil, mas é responsável por 58% do consumo nacional. Nesse cenário, os 6% extras precisam ser mandados para a região por geradores que tenham capacidade para suprir o déficit. O funcionamento dessa distribuição, entretanto, está sujeito a falhas. Foi o que ocorreu na última sexta-feira (28), quando problemas na linha de transmissão de Belo Monte, no Pará, desligaram sete turbinas da usina e interromperam temporariamente o fornecimento em ao menos seis estados, segundo a Aneel.

Com as dificuldades para transmitir energia de um subsistema para o outro, é comum que, ao atingir o topo de consumo, uma região superavitária desligue a geração, liberando as comportas dos reservatórios sem acionar turbinas e deixando escoar potencial energético que falta em outro ponto do país.

Na contramão, a demanda de regiões deficitárias acaba suprida por energia mais cara (como a das termelétricas) e até importada (com compra de geração argentina e uruguaia, a exemplo do que já ocorre em 2021).

Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), reforça que a necessidade de investimentos vai além da transmissão, com especial importância para a inovação da política energética do país.

“Usinas reversíveis, com custo compensado pelo benefício posterior, poderiam funcionar como uma bateria no armazenamento. Bombeiam a água de volta para o reservatório depois de ela cair para as turbinas”, explica. Soluções como essa, em paralelo ao aumento da capacidade instalada de fontes não dependentes da chuva, poderiam ajudar na superação dos entraves.

Crise hídrica ou novo regime de chuvas?

Não há consenso, mas a tese de que a redução no volume de chuvas seria uma tendência permanente é considerada por parte dos especialistas, justamente por causa dos repetidos invernos mais secos do que o padrão histórico, conforme observado em anos recentes. O motivador dessa alteração seria o desmatamento.

Roberto D’Araújo, do Coppe/UFRJ, não crava a existência de uma relação, mas afirma que o problema pode, sim, perdurar e se aprofundar caso ela se comprove.

O coordenador da Gesel/UFRJ, Nivalde de Castro, avalia que a hipótese é “muito forte”. “Se estamos perdendo verde na Amazônia, temos menos umidade e consequentemente menos chuva”, diz. "Provavelmente esse decréscimo, que não permite que [os reservatórios] voltem aos seus níveis históricos, se deve ao aquecimento e, em particular, a inoperância do governo no ambiental.”

Em avaliação similar, Sérgio Leitão, diretor-executivo do Instituto Escolhas, especializado em estudos sobre sustentabilidade, defende que o que se tem chamado de crise hídrica é, na verdade, uma alteração no regime de chuvas, relacionado ao desmatamento.

“Isso tem um efeito sistêmico”, pondera. “Você tem um conjunto de órgãos que não se falam, não dialogam, não se reúnem a não ser quando acontece uma crise tremenda, como foi o caso de 2014 e nesse período todo de secas do Nordeste. Mas depois eles se esquecem de voltar a conversar, não entendendo que aquilo que está se chamando de mudança climática é exatamente o que se chama aqui no Brasil de crise hidrológica”, afirma.

Segundo ele, reservatórios mais esvaziados já eram uma realidade e o problema deveria ter sido atacado mais cedo. “Essa crise já estava programada. No fim do ano passado, em dezembro, os reservatórios já estavam com nível baixíssimo. Ali já deveria ter soado, há muito mais tempo, o alerta do governo”, critica. Até o momento, o governo federal criou comitês para o monitoramento dos reservatórios e acompanhamento da crise, mas poucas medidas práticas foram tomadas para além do alerta de crise hídrica na bacia do rio Paraná.

Nesta terça-feira (1) o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, afirmou que a atual crise hídrica é decorrente de mudanças climáticas, mas que existe governança e organização no setor elétrico para passar pelo momento com serenidade.

Albuquerque disse ainda que evitar ou mitigar efeitos da crise depende de equilíbrio e da complementaridade entre as diferentes fontes de energia que compõem a matriz elétrica brasileira.

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