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Hospital do Subúrbio, em Salvador, é exemplo de modelo de PPP no SUS. Equipe da Secretaria de PPI fez visita técnica ao local
Hospital do Subúrbio, em Salvador, é exemplo de modelo de PPP no SUS. Equipe da Secretaria de PPI fez visita técnica ao local| Foto: Reprodução / PPI / Facebook

No início da semana, o governo publicou um decreto que incluiu unidades básicas de saúde (UBS) no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI). O texto curto e vago deu margem a vários tipos de interpretação, inclusive de que se tratava de uma “privatização” do Sistema Único de Saúde (SUS). Incomodado com a repercussão, o presidente Jair Bolsonaro revogou o decreto 24 horas após a publicação. Mas, na última quinta-feira (29), ele anunciou que pretende reeditá-lo em breve.

“O decreto sobre o SUS não tinha nada a ver com privatização. Grande parte da mídia fez um carnaval sobre isso”, declarou o presidente em sua live nas redes sociais. Ele não foi o único que se manifestou sobre o tema. O ministro da Economia, Paulo Guedes, também aproveitou a participação em um comitê do Congresso para frisar que o governo não cogitou a privatização do SUS. “Jamais esteve sob análise privatizar o SUS. Seria uma insanidade”, declarou.

Ainda há muitas dúvidas em relação ao que o governo de fato quer com a proposta e muitas dúvidas sobre o alcance e legalidade da proposta surgiram. Esse acabou sendo mais um exemplo de como há falhas na gestão da comunicação, que não explicou detalhadamente a proposta, que se mostrou muito polêmica, antes de sugeri-la.

Para esclarecer algumas dúvidas sobre a proposta, a Gazeta do Povo separou seis perguntas para explicar o que o governo queria e o que ainda não está claro.

1. O que o decreto original do governo dizia sobre as unidades de saúde?

O decreto tinha como função informar que a “política de fomento ao setor de atenção primária à saúde” fora qualificada, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), para a elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada. De acordo com o texto, a autorização valia para “elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

Esses estudos seriam usados para a estruturação de projetos pilotos, cuja seleção seria estabelecida posteriormente por meio da Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos do Ministério da Economia.

A secretária especial do PPI, Martha Seillier, declarou que os trabalhos estavam sendo feitos em conjunto com o Ministério da Saúde e BNDES. “Sabemos do desafio de levar mais infraestrutura e serviços de qualidade a diversos municípios do Brasil e acreditamos que o modelo de PPPs será chave para alcançarmos os resultados que a população tanto merece”, disse, em registro feito por sua própria pasta.

Segundo a pasta, o objetivo do decreto era de permitir um arranjo institucional para a estruturação desse tipo de projeto, que envolve a iniciativa privada como parceira de ações voltada aos entes federados. O foco estaria na conclusão de Unidades Básicas de Saúde (UBS), cujas obras ficaram inacabadas, ou naquelas que não entraram em operação, em um trabalho conjunto com o poder concedente municipal.

“As PPPs na área de saúde já existem no Brasil e são referência no atendimento de qualidade à população. A gratuidade será mantida, o Decreto 10.530/2020 apenas prevê que o Governo Federal estude alternativas para apoiar estados e municípios a multiplicar os bons exemplos que hoje ainda são poucos no país”, disse a secretária.

2. Por que o decreto foi revogado?

A decisão de revogar o decreto ocorreu após forte pressão e mobilização de alguns setores da sociedade nas redes sociais e também da manifestação de parlamentares e secretários de Saúde, que se opuseram ao documento. O termo #DefendaOSUS ocupou as primeiras posições entre os assuntos mais comentados no Twitter logo após a divulgação do decreto.

O que pesou mais foram as dúvidas geradas pelo curto decreto e a surpresa, já que entidades como o Conselho Nacional de Saúde (CNS), a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) e o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) avaliaram que havia riscos para a manutenção da gratuidade do SUS e que a decisão não poderia ser tomada de forma unilateral, mas em consenso entre União, estados e municípios.

Em post no Facebook, Bolsonaro anunciou a revogação defendendo a proposta. “Temos atualmente mais de 4.000 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 168 Unidades de Pronto Atendimento (UPA) inacabadas. Faltam recursos financeiros para conclusão das obras, aquisição de equipamentos e contratação de pessoal”, destacou

3. Como é gerido o SUS e as UBSs hoje?

O Sistema Único de Saúde (SUS) tal qual existe hoje foi instituído pela Constituição de 1988 para garantir o acesso universal à saúde no país. O sistema público oferece desde atendimentos primários, como as consultas rotineiras no postinho de saúde, até procedimentos complexos, como tratamentos oncológicos, além de atendimento via Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). Outras frentes de atuação são a vigilância sanitária (por meio da Anvisa), pesquisas epidemiológicas, hemocentros e fornecimento de vacinas e remédios gratuitos (para diabetes, HIV, alzheimer, etc).

O sistema é financiado com recursos provenientes da União, estados e Distrito Federal, e municípios. Ou seja: parte da arrecadação com impostos é destinada para a Saúde e há definição de valores mínimos para investimento determinados pela Constituição. A União deve destinar 18% dos recursos para a Saúde, municípios ficam com 15% e estados, 12%.

A gestão do sistema é tripartite. Em geral, a União é responsável por determinar as diretrizes e estados e municípios a executam. No caso das UBSs, que foram alvos do decreto revogado, a administração é feita pelas prefeituras. Os postinhos de saúde são a porta de entrada do SUS, que vem focando em um modelo de Saúde da Família nos últimos anos. Ainda que as prefeituras recebam repasses do governo federal para a saúde, a gestão e administração das UBSs é de responsabilidade delas.

É por causa desse modelo descentralizado de gestão que alguns especialistas alertaram para a possibilidade de inconstitucionalidade da medida. “Pela lei orgânica de saúde, a Comissão Intergestores Tripartite é o espaço de negociação e pactuação dos gestores quanto a aspectos operacionais, administrativos e financeiros do SUS. Os gestores não foram consultados e o ministro da Saúde nem sequer assina o ato. A Constituição prevê direção única do SUS em cada esfera de governo”, avaliou o especialista em orçamento público e assessor técnico do Senado, o economista Bruno Moretti, em entrevista ao jornal Valor Econômico.

4. Por que o governo quer fazer parceria do SUS com o setor privado?

De acordo com o Ministério da economia, a decisão de incluir as UBSs no PPI foi tomada em conjunto com a Saúde. “A avaliação conjunta é de que é preciso incentivar a participação da iniciativa privada no sistema para elevar a qualidade do serviço prestado ao cidadão, racionalizar custos, introduzir mecanismos de remuneração por desempenho, novos critérios de escala e redes integradas de atenção à saúde em um novo modelo de atendimento”, diz nota à imprensa divulgada pela pasta na quarta-feira (28).

O mesmo texto afirma que, para o Ministério da Saúde, “a participação privada no setor é importante diante das restrições fiscais e das dificuldades de aperfeiçoar o modelo de governança por meio de contratações tradicionais”. Segundo o governo, há mais de 4 mil UBS com obras inacabadas que, de acordo com o Ministério da Saúde, já consumiram R$ 1,7 bilhão de recursos do SUS.

As parcerias com a iniciativa privada visam melhorar a estrutura e gestão dos postos de saúde. Os serviços permaneceriam gratuitos.

5. Já existem parcerias com a iniciativa privada pelo SUS?

Sim, já existem casos de parcerias entre o poder público e a iniciativa privada na área da saúde no Brasil. Ao jornal Valor Econômico, a consultoria Radar PPP informou que existem 11 parcerias público-privadas em hospitais e UBSs no país. Como comparação, no Reino Unido, onde a NHS – sistema público de saúde – é referência, são 127 unidades com PPPs. Ainda ao Valor, Guilherme Naves, sócio da Radar PPP, lembrou que em Belo Horizonte há uma UBS gerida pela iniciativa privada, que foi responsável pela construção e fornecerá serviços de manutenção, segurança e hotelaria por 20 anos. O atendimento é gratuito.

A Secretaria Especial de PPI cita como exemplo o Hospital do Subúrbio, em Salvador, primeira PPP do setor de saúde do Brasil. A unidade foi inaugurada em 2010, na gestão do petista Jacques Wagner no governo da Bahia. O Estado foi responsável pela construção da infraestrutura e um consórcio privado equipou e administra o hospital. Ele foi escolhido por meio de um leilão, realizado na Bolsa de Valores.

Esse modelo, considerado bem-sucedido e vencedor de prêmio internacionais, recebe críticas. Em entrevista à BBC Brasil, Ana Maria Malik, coordenadora do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão da Saúde da FGV-SP, ressaltou que foram necessários termos aditivos, que implicaram em mais gasto público, para cobrir custos que não foram previstos em contrato.

Em Curitiba, o Conselho Municipal de Saúde (CMS) permite o modelo de gerenciamento por Organização Social (OS) – que não tem fins lucrativos – para UBSs e UPAs. A UPA CIC, reaberta em agosto de 2018, foi a primeira unidade de saúde a funcionar neste modelo na capital paranaense. De acordo com a prefeitura, a gestão privada representa uma economia de R$ 408,7 mil aos cofres municipais, em relação ao modelo tradicional. O custo mensal é 19,5% menor, e os serviços e estrutura são os mesmos prestados nas demais unidades de mesmo porte.

6. O SUS pode ser privatizado?

Não. União, estados e municípios podem fazer essas parcerias com a iniciativa privada, mas o serviço não pode ser cobrado. O pesquisador em saúde e direito Daniel Dourado, da USP, explicou ao G1 que “privatizar” o SUS exigiria uma nova Constituição, porque o direito à saúde é cláusula pétrea da Carta de 1988 e não pode ser alterada via emenda.

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