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Marcelo Odebrecht, da família de fundadores da Odebrecht, empresa atingida pela Operação Lava Jato.
Marcelo Odebrecht na ocasião da prisão pela Operação Lava Jato, em 2015.| Foto: Antônio More/Arquivo/Gazeta do Povo

De empresa que usava codinomes para escamotear pagamento de propina a políticos para a transparência quase total. Esse é o caminho que a Odebrecht vai trilhar caso cumpra todas as etapas da recuperação judicial que teve início no último dia 17 de junho, quando o grupo fez o pedido para tentar se reerguer em meio a dívidas de R$ 98,5 bilhões – o maior valor já registrado na justiça brasileira.

As práticas do “Setor de Operações Estruturadas” da Odebrecht, que coordenava as negociatas desmontadas pela Operação Lava Jato, ficaram no passado. O acordo de leniência com o Ministério Público Federal e representantes dos governos dos Estados Unidos e Suíça, assinado em dezembro de 2016, já previa a cessão completa de atos de corrupção detectados ao longo da investigação, além da restituição de R$ 3,6 bilhões.

Nos últimos anos, a empresa afirmou ter vendido R$ 7,2 bilhões em ativos para fazer frente às suas obrigações. Mesmo assim, a empresa não conseguiu sobreviver à crise econômica brasileira e à dificuldade de obter créditos. Teve de recorrer à recuperação judicial como forma de evitar a falência.

O caminho a trilhar, porém, é longo. Não só pelo montante envolvido, mas pela complexidade inerente ao processo. O grupo Oi, por exemplo, que até então tinha o pedido de recuperação mais alto da história (R$ 65,3 bilhões), teve a solicitação deferida em junho de 2016, mas o plano só foi homologado em dezembro de 2017, um ano e meio depois. Brigas e desentendimentos entre credores contribuíram para essa demora.

Como vai funcionar a recuperação judicial da Odebrecht

Mesmo antes da execução do plano de recuperação – o qual deve ser apresentado em 60 dias – a Odebrecht terá de adotar práticas de transparência muito além do que já fez em toda sua história, que teve início em 1944 na Bahia, sob o comando de Norberto Odebrecht. No deferimento do pedido de recuperação judicial, o juiz da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, João de Oliveira Rodrigues Filho, nomeou como administrador judicial o escritório Alvarez & Marsal, que desde já fica responsável por produzir relatórios mensais sobre a situação do conglomerado.

“Quando a empresa pede recuperação judicial, todo mês precisa fazer a apresentação de balancetes, os quais obviamente são auditados, o que nos leva a acreditar que são mais transparentes”, explica o economista Luís Alberto de Paiva, presidente da Corporate Consulting, empresa de gestão de crise e reestruturação.

Além disso, é preciso apresentar um relatório mensal de atividades (RMA), com eventuais falhas na evolução do processo de recuperação judicial, explica. “Se a empresa passar informações contábeis erradas, convola para um processo falimentar”, acrescenta. O mesmo vale quando houver o plano de recuperação referendado em assembleia de credores.

Empresa X empresário

As regras de recuperação judicial, extrajudicial e falência constam da Lei nº 11.101/05. Quem acompanha o assunto reitera que o espírito da lei pretende proteger a empresa e os empregos, independentemente da situação que a levou a ter dificuldades financeiras. “A justificativa do projeto de lei mencionava inclusive que o objetivo é separar a sorte do empresário da empresa, considerando-a como fonte geradora de emprego e arrecadação tributária. Mas isso não afasta a possibilidade de os responsáveis responderem civilmente e penalmente. Há possibilidade ainda de credores aprovarem o plano de recuperação, mas com a condição de afastamento de diretores”, relata o advogado Carlos Alberto Farracha de Castro.

Desde que assinou o acordo de leniência, no fim de 2016, a Odebrecht adotou uma série de medidas para melhorar a governança. O comando oficial saiu das mãos da família, mas não sem resistência – e não de forma total, pelo que consta no noticiário econômico. Marcelo Odebrecht, que presidia a companhia da família desde 2008, foi preso em junho de 2015 em uma das fases da Lava Jato, e só em dezembro daquele ano decidiu se afastar definitivamente do comando. Em março do ano seguinte, foi condenado a 19 anos e quatro meses de prisão. Em dezembro de 2016, assinou acordo de delação premiada e desde dezembro de 2017 cumpre prisão domiciliar. Mas nos meses seguintes interferiu na escolha do presidente do Conselho de Administração que sucederia seu pai, Emilio.

A família Odebrecht, aliás, aparece como credora na lista de dívidas da empresa, além de cerca de 40 executivos e ex-executivos, entre os quais delatores e acusados do esquema de corrupção. Emílio aparece com créditos de R$ 69 milhões, e Marcelo, com R$ 16,2 milhões. São valores referentes a bônus e incentivos de longo prazo ofertados para melhorar a remuneração fixa e aparecem no terceiro grupo de prioridade a receber. Durante a negociação de credores, porém, os valores podem ser reduzidos.

No pedido de recuperação judicial, porém, a empresa reitera a importância social da medida, que atinge um total de 21 empresas, entre controladoras e controladas. Juntas, elas mantêm hoje cerca de 45 mil empregos diretos e indiretos. “As requerentes reúnem um feixe de diferentes interesses, que vão muito além daqueles de seus acionistas. Em torno das requerentes congregam-se interesses de empregados, fornecedores, clientes, parceiros comerciais e todas as comunidades afetadas e beneficiadas por sua atuação”, diz a petição inicial.

Em comunicado interno a funcionários, o diretor-presidente da Odebrecht, Luciano Guidolin, afirma que fizeram “a tarefa de casa” para enfrentar os desafios empresarias que surgiram a partir de 2016, mas ainda não houve o reconhecimento disso. “É claro que, durante esse tempo, a mais grave crise econômica em décadas impactou de forma significativa a recuperação dos negócios. Adicionalmente, ainda não recebemos pleno reconhecimento por termos nos transformado inteiramente e superado os erros cometidos no passado, o que nos traz mais dificuldades de acesso a novas fontes de crédito e liquidez”, pontuou.

Recuperação judicial é usada como remédio “tardio”

O pedido de recuperação judicial da Odebrecht no valor de R$ 98,5 bilhões é visto como única opção para a empresa sobreviver. Envolvida no esquema de corrupção deflagrado pela Operação Lava Jato, o grupo ficou sem crédito no mercado, dificultando a retomada, ainda que calcada em novos princípios de governança e conformidade.

“Vejo com bons olhos esse remédio de recuperação judicial para esse tipo de endividamento. Sem sombra de dúvida é o único caminho possível, pois o grande problema das empresas com grande endividamento é o fluxo de caixa. Como não é possível lidar com essa pluralidade de credores, busca-se a recuperação, para ter blindagem dos ativos e com eles voltar a produzir”, observa o advogado João Adalberto Medeiros Fernandes Junior, membro da Comissão Especial de Falências e Recuperação Judicial do Conselho Federal da OAB.

Há um consenso, porém, de que as empresas buscam a recuperação judicial tarde demais. “Muitas vezes, esse remédio é utilizado tardiamente, quando já há um comprometimento do caixa. A empresa que entra em default operacional tem mais dificuldades para ter sucesso”, diz Fernandes Junior. Segundo o advogado Carlos Alberto Farracha de Castro, que preside a Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB no Paraná, desde que a Lei nº 11.101 entrou em vigor, em 2005, as empresas se mostram resistência.

“Em relação à Odebrecht dá para se perguntar, porque é que demoraram tanto para buscar esse caminho”, afirma Luís Alberto de Paiva, presidente da Corporate Consulting, empresa de gestão de crise e reestruturação. Para ele, muitas empresas brasileiras terão que seguir esse caminho. “A situação do país não permite que empresas tenham linhas para investimento de longo prazo. Ele até pode usar capital de giro próprio no curto prazo para investir, mas estamos em uma crise econômica sem precedentes, que não permite a rentabilização do que foi aplicado”, avalia.

Legislação sobre recuperação judicial precisa ser modernizada

Quem atua com recuperação judicial defende a modernização da lei que está em vigor desde 2005, mas ressalta que a jurisprudência já criou novos entendimentos que facilitam o processo. “O prazo para a suspensão de ações contra as empresas é de 180 dias, improrrogável pelo texto da lei, mas a jurisprudência já permitiu essa proteção para além do prazo”, exemplifica Fernandes Junior.

Farracha de Castro destaca outras situações já pacificadas. Uma delas é a possibilidade de o credor comprar ativos da empresa em recuperação judicial: “Ele não se torna solidário com as outras obrigações, não será processado por elas”. A outra é a garantia de manter o bem essencial para a atividade produtiva. “O Superior Tribunal de Justiça consolidou esse entendimento. O Fisco, por exemplo, não se sujeita à RJ, mas a venda de bens só pode ser autorizada pelo juiz da recuperação, avaliando qual a chance de a empresa se recuperar e qual a importância social dela”, diz.

Uma alteração ainda necessária, defende Fernandes Junior, é facilitar o financiamento das empresas em dificuldades. “O que existe hoje na legislação dá um certo privilégio para credores que aportem dinheiro novo, mas isso só é exercido no caso de uma falência. Acaba não sendo um privilégio. A grande luta é para termos regras mais claras para que instituições financeiras se interessem em aplicar em empresas em recuperação, criando algum mecanismo de garantia”, observa. Outro entrave, aponta ele, é que os contratos de leasing não entram na recuperação judicial. Uma briga jurídica envolvendo aviões arrendados pela Avianca prejudicou as operações da empresa, que entrou em RJ em dezembro de 2018. Na terça-feira (18), um grupo de trabalho criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para sugerir mudanças na atuação do Judiciário nos processos de recuperação judicial e falência aprovou três propostas, que foram encaminhadas ao colegiado para apreciação. São elas: criação de varas especializadas nos tribunais de justiça (atualmente, há apenas varas de primeira instância); averiguação prévia a ser feita logo após o pedido inicial de recuperação, para verificar se a empresa preenche os requisitos para se submeter ao procedimento; e uso de mediação nos casos de recuperação judicial.

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