• Carregando...
A educação infantil prioriza o lúdico, mesmo nas atividades estruturadas. No ensino fundamental, há notas e avaliações. | Divulgação/SME.
A educação infantil prioriza o lúdico, mesmo nas atividades estruturadas. No ensino fundamental, há notas e avaliações.| Foto: Divulgação/SME.

A mudança da Educação Infantil para o Ensino Fundamental é drástica: a criança, que exercitava o lúdico durante todo o período que passava na escola, precisa se acostumar com muitas regras. Entre elas estão a permanência dentro de uma sala de aula por horas; carteiras, geralmente perfiladas; recreio de apenas 15 minutos, além de avaliações e pressão por resultados. Para especialistas, essa mudança deve ocorrer apenas depois dos 6 anos completos. Mas, no Brasil, um embate jurídico levou muitos estados a permitirem o ingresso no Ensino Fundamental (EF) ainda com 5 anos. O Supremo Tribunal Federal (STF) está julgando o caso para impor uma padronização nacional, mas o empate entre os votos já proferidos indica a dificuldade de um consenso sobre tema tão relevante para o futuro dos estudantes. 

O que está em discussão são duas resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE), que estabeleceram que a criança precisa ter 4 e 6 anos completos até 31 de março para ingressar no primeiro ano da Educação Infantil (EI) ou do EF, respectivamente. Oito ministros do STF já votaram no julgamento. Quatro deles dizem que a criança pode completar essa idade mínima ao longo do período letivo (Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Rosa Weber e Dias Toffoli); outros quatro votaram pela constitucionalidade das regras do CNE (Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes). Durante a sessão do julgamento, em 30 de maio, o ministro Marco Aurélio pediu vista, mas já liberou o processo para reinclusão na pauta, ainda sem data para ocorrer. Além dele, faltam os votos do decano Celso de Mello e da presidente, Cármen Lúcia.

LEIA MAIS: Pobres precisam de professores melhores. Mas quem quer essa carreira? 

Essa Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n.º 292) foi proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) em 2013. Outro processo analisado em conjunto é a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n.º 17, proposta pelo governo do Mato Grosso do Sul em 2009, para validar trechos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que tratam do assunto. Para o conselheiro Carlos Alberto Sanches, do Conselho Estadual de Educação do Paraná (CEE-PR), a lei é clara ao estipular a data de ingresso. “O corte etário vem organizar uma situação, mas o ingresso no ensino fundamental é aos 6 anos. Alguém consegue tirar a habilitação antes de completar 18 anos? Ou consegue votar antes de completar 16 anos? Você primeiro faz aniversário, e então se vale desses direitos”, observa. 

O conselheiro da Câmara de Educação Básica do CNE, Alessio Costa Lima, diz que o CNE ficou surpreso com o empate na votação, considerando que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já havia referendado as resoluções do conselho, em julgamento em 2013, mas com alcance apenas para o estado de Pernambuco. Na ocasião, o STJ concluiu que “não é dado ao Judiciário (...) substituir-se às autoridades públicas de educação para fixar ou suprimir requisitos para o ingresso de crianças no ensino fundamental, quando os atos normativos de regência não revelem traços de ilegalidade, abusividade ou ilegitimidade”. 

As resoluções do CNE tiveram também aval do Conselho Federal de Psicologia. “Essa interpretação de que a criança pode completar a idade ao longo do ano é extremamente prejudicial à criança. É como se tirasse um ano da vida dela para antecipar o ingresso em um sistema que segue normas de funcionamento e metodologias que fogem das necessidades peculiares para essa idade. Todos os movimentos que militam pelo direito da infância são muito fortes em dizer que a criança precisa viver bem cada etapa, sem um açodamento da vida escolar”, acrescenta Lima. 

“É uma escolha pragmática, mas quem tem que tomá-la não é o Judiciário, é o órgão colegiado especializado no assunto”. Alessandra Gotticonsultora da organização Todos pela Educação, da Unesco e da Câmara de Educação Básica do CNE

Apesar da LDB mencionar que é preciso ter 4 ou 6 anos completos, o CNE criou a data de corte até 31 de março. Segundo Lima, isso foi feito para normatizar a rede escolar brasileira. “Alguns estados iniciam o calendário em janeiro, outros em fevereiro ou ainda em março, por questões climáticas e culturais. Por isso foi estipulado como limite 31 de março”, explica. Ele, que também é presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), diz que os gestores precisam de uma padronização para organizar as redes, e que a antecipação da vida escolar não deve ser feita nem com o intuito de ajudar as crianças. “Os pais, em uma ânsia de querer ajudar, podem colocar o filho em uma situação para a qual ele não está devidamente maduro. Pode ser que a criança tenha uma ou outra habilidade, mas não tem todas as dimensões desenvolvidas. Na escola, isso acaba levando a criar uma rejeição à leitura ou matemática, por exemplo, ou ainda uma dificuldade de relacionamento”, acrescenta. 

LEIA TAMBÉM: Qualidade dos novos professores no Brasil é cada vez pior, revela estudo

A pedagoga Flavia Anastacio Paula, professora na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), diz que ainda torce para o STF confirmar a constitucionalidade das resoluções do CNE. “A questão é: se o fizer, quem será beneficiado? As crianças de 5 anos é que não o serão”, afirma ela, que pesquisou os impactos da escolarização precoce nessa faixa etária. Segundo ela, o tema de antecipação gera questões complexas. “Ela traz implicações até o fim do ensino fundamental nos aspectos do desenvolvimento infanto-juvenil, administrativos, familiares, curriculares e até sindicais”, observa. 

Divergências 

O imbróglio jurídico teve início em 2006, com a criação do EF com nove anos de duração. A alfabetização passou a ser feita nessa etapa, e as escolas “transferiram” as antigas turmas de pré-3 para o 1.º ano do EF. No mesmo ano, entrou em vigor a Emenda Constitucional n.º 53/2006, que garantiu o direito à “assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o nascimento até 5 anos de idade em creches e pré-escolas”, substituindo o texto anterior, que falava em 6 anos. 

Com esse argumento, promotores e procuradores em todo o Brasil questionaram leis estaduais que estabeleciam datas de corte. Em cada estado, o Judiciário teve um entendimento diferente. No Paraná, por exemplo, o Ministério Público Estadual ingressou em 2007 com uma ação civil pública contra a data de corte estipulada pelo CEE-PR, por afrontar o direito igualitário à educação. A decisão, de 2012, deu ganho ao MP, mas até o hoje não há uma padronização. Em 2014, o Congresso Federal aprovou o Plano Nacional de Educação, que prevê, na Meta 1, o ingresso de 6 anos de idade no EF. No ano seguinte, o Paraná aprovou o Plano Estadual de Educação, especificando que é preciso completar essa idade até 31 de março. O MP-PR, porém, defende que está vigente ainda a decisão judicial que proibiu o corte etário, ainda que previsto em lei estadual. Para o MP-PR, o Plano Estadual de Educação é inconstitucional. 

Nas creches, espaço para brincadeiras é amplo; em muitas escolas, crianças só contam com pátio de concreto para passar o recreio. Arquivo/Gazeta do Povo.

Mas o entendimento da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, é outro. Apesar de o próprio órgão ter proposto a ADPF n.º 292 contra as resoluções do CNE em 2013, a sustentação oral que a chefe da PGR fez no STF no mês passado, em sessão em 24 de maio, foi pela constitucionalidade das regras do conselho. Ela destacou ainda que a ADC n.º 17 foi proposta em 2009, antes da Emenda Constitucional n.º 59/09, que estabeleceu que o direito à educação vai desde o nascimento até os 17 anos – o que, em tese, derrubaria parte do argumento usado pelo MP-PR. Em 2014, o então procurador-geral, Rodrigo Janot, também havia se pronunciado pela improcedência da ADPF, assinada por Helenita Caiado de Acioli, que assumiu a PGR temporariamente por um mês em 2013, durante um vácuo de poder entre Roberto Gurgel e Janot. 

Diálogo 

A advogada Alessandra Gotti, consultora da organização Todos pela Educação, da Unesco e da Câmara de Educação Básica do CNE, lamenta a falta de diálogo especializado na discussão sobre o corte etário. “É uma escolha pragmática, mas quem tem que tomá-la não é o Judiciário, é o órgão colegiado especializado no assunto”, afirma. Segundo ela, o Estatuto da Criança e do Adolescente preconiza a proteção integral da criança. “Nessa era em que tudo é acelerado, é preciso muita cautela com a escolarização. A lógica do ensino fundamental é muito diferente da educação infantil”. 

Para Alessandra, seria necessária maior sintonia entre o Judiciário e o campo educacional brasileiro, nos mesmos moldes do que já ocorre com a área de saúde – nesse caso, decisões judiciais que obrigavam o poder público a arcar com tratamentos ou remédios caros começaram a ser balizadas por opiniões de especialistas. Mas, no caso do corte etário, não houve nem a realização de uma audiência pública para debater o assunto, como ocorrem em julgamentos relevantes no STF. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, cabe ao ministro relator convocar uma sessão pública, quando achar necessário. O responsável pela ADPF n.º 292 é Edson Fachin; pela ADC n.º 17, Luiz Fux.

“A escola tem que ter sabedoria para conduzir o 1.º ano” 

O Sindicato das Escolas Particulares do Paraná (Sinepe/PR) orienta aos associados a cumprir a decisão estadual que proibiu a data de corte no estado. A assessora pedagógica da organização, Fátima Chueire Hollanda, diz que, independentemente do resultado do julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), as escolas vão ofertar o melhor para os alunos, com continuidade do processo pedagógico já iniciado. “Cada criança é uma, tem que ter o olhar que cada criança é diferente, tem tempos diferentes, processos de desenvolvimento diferentes, e a escola precisa estar atenta”, observa. 

Segundo Fátima, com a implantação do Ensino Fundamental (EF) de 9 anos, o ciclo de alfabetização só é concluído ao final do segundo ano dessa etapa. Além disso, explica, o material didático e a capacitação dos professores tem como foco o atendimento das crianças com suas particularidades de idade e desenvolvimento. “E cada instituição tem autonomia para fazer seu sistema de avaliação. Ela pode continuar avaliando a criança de forma descritiva, para montar um parecer, mas sem a necessidade de se fazer uma prova formal. Há notas a se dar, mas a escola tem que ter sabedoria para conduzir esse 1.º ano”, destaca. 

A rede municipal de Curitiba também não adota o corte etário. Segundo Francielly da Silva Costa, do Sindicato dos Servidores do Magistério (Sismmac), a mudança da Educação Infantil (EI) para o EF é muito grande, e o ideal é que a criança tivesse 6 anos completos para isso. Ela, que trabalhou por dez anos com EI, avalia que as creches têm espaço específico para a criança se movimentar a cada momento. “Na escola, ela vai ter que ficar sentada em uma carteira, tendo que controlar sua energia”. Segundo ela, aos 5 anos a criança ainda está desenvolvendo habilidades motoras, que influenciam no processo de alfabetização. “Quando mais velhos, a diferença de idade não importa muito. Mas, na primeira infância, a cada mês a criança tem um salto no desenvolvimento”, relata. 

A Secretaria Municipal da Educação informou, por meio da assessoria de imprensa, que faz atividades de transição com as crianças que deixam a EI para ingressar no EF, como visitas às escolas próximas. “Além das visitas às escolas, há diferentes ações educativas para garantir um processo de transição da criança que assegure as peculiaridades do desenvolvimento infantil, em uma perspectiva de continuidade e não de ruptura na vida da criança. Uma das propostas é envolver crianças de diferentes faixas etárias em brincadeiras. Os CMEIs [Centros Municipais de Educação Infantil] e escolas planejam juntos propostas e promovem a integração e interação entre as crianças”, relatou, em nota.

“Atribuição legal cabe aos estados” 

Na opinião do filósofo Francisco José Carbonari, do Conselho Estadual de Educação (CEE-SP), uma questão fundamental que até agora ficou de fora do julgamento sobre corte etário no Supremo Tribunal Federal (STF) é a competência legal para regulamentar a educação básica. “A atribuição da organização das matrículas é uma competência do estado, não da União. A lei é muito clara ao dizer que o Conselho Nacional de Educação [CNE] legisla sobre o sistema federal de ensino e as diretrizes curriculares nacionais. A data de corte não se enquadra aí”, sustenta. 

Em São Paulo, a data de corte estipulada pelo CEE-SP é 30 de junho, diferentemente da resolução do CNE. Segundo Carbonari, o colegiado fez uma pesquisa e tanto o município como o estado de São Paulo usaram historicamente o corte etário na metade do ano letivo. “A manutenção da data foi a menos traumática na organização da rede. Era uma questão muito bem resolvida”, conta. Na opinião dele, outros conselhos têm autonomia para definir a data que melhor se aplica às suas redes de ensino. Ele lamenta a judicialização da educação. “De todas as políticas públicas, é um desastre. A Lei de Diretrizes e Bases é clara ao falar que o ensino fundamental é para crianças de 6 anos. Quando a criança tem 6 anos? Quando completa. Mas alguns juízes entenderam que poderia ser ainda no ano que vai completar. Temos tantos problemas, tantas questões importantes a tratar, e ficamos aí, discutindo sobre quando se tem 6 anos. É uma pena.” 

No Conselho Estadual de Educação do Paraná (CEE-PR), que estabeleceu o corte etário de 31 de março, a preocupação foi com o desenvolvimento do estudante, diz o conselheiro Carlos Alberto Sanches. “A intenção nunca foi polemizar, mas sim buscar o melhor para o estudante. Se formos ver o nível de reprovação nos anos iniciais, estamos estacionados. O número de estudantes que atinge um nível adequado de aprendizagem também revela que os problemas encontrados no ciclo de alfabetização estão perdurando durante a vida escolar”, observa. Segundo Sanches, a antecipação da vida escolar pode ser um dos fatores que explicam esse baixo desempenho. 

Acórdão 

Carbonari avalia que, caso o STF declare inconstitucionais as resoluções do CNE sobre corte etário, o alcance da decisão e os impactos nos sistemas de ensino só ficarão claros com a publicação do acórdão. Para a advogada Alessandra Gotti, consultora do Todos pela Educação e Unesco, se o acórdão não for bem escrito poderão surgir novos questionamentos judiciais. “Se for declarado inconstitucional, então, como operacionalizar? Qual vai ser a regra adotada? Não vai existir padronização? A intenção do CNE foi a de criar uma regra unificada para dar maior segurança jurídica em todo o território nacional”, alerta.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]