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 | Daniel CastellanoGazeta do Povo
| Foto: Daniel CastellanoGazeta do Povo

Na metade do mês passado, Gabriel de Arruda Castro publicou na Gazeta do Povo uma lista de dez monografias (dissertações de mestrado e teses de doutorado) “incomuns” apresentadas em universidades públicas – e, portanto, financiadas com dinheiro de impostos. Em breve introdução à lista, Castro caracterizou a universidade co-mo “um espaço aberto à criatividade e à inovação”, onde “toda forma de conhecimento é válida”, mas apontou que a “opção por temas pouco ortodoxos”, sobretudo na área de ciências humanas e sociais, gera trabalhos “difíceis de explicar ao contribuinte”, ou seja, cujo financiamento é de difícil justificativa. 

O texto gerou polêmica, provocando a resposta de uma pesquisadora cuja tese figurava na lista e levando Castro a explicar melhor o que pretenda dizer com a referida publicação. Para Castro, o Estado só deve financiar pesquisas que a) possibilitem a realização de empreitadas que não seriam viáveis com meios privados – “não se pode (...) construir um propulsor de foguetes no quintal de casa”, ou b) promovam “a elevação, não o rebaixamento moral”, uma das funções da universidade. 

Rogerio Waldrigues Galindo entrou no debate em seu blog nesta Gazeta, mostrando como a concepção de Castro evoca, para os leigos, a academia como “a torre de marfim onde se estudam os clássicos da antiguidade: a universidade seria o lugar de se estudar (...) o pensamento do homem europeu, branco e morto”. Galindo parece ver em Castro uma ideia de universidade vinculada à utilidade, especialmente às matemáticas e às ciências exatas, onde não haveria espaço para as humanidades, por assim dizer, desinteressadas.

Buscando articular a defesa de uma universidade mais inclusiva, do ponto de vista intelectual, ele monta o seguinte raciocínio: o objetivo principal das pesquisas acadêmicas é a formação, ou seja, importa mais adquirir ferramentas teórico-metodológicas de investigação (procedimento) do que o produto gerado ao final do pro-cesso (conteúdo); a utilidade é uma noção-fetiche, estreita demais para englobar a riqueza da universidade, “a ideia de que devemos estudar tudo o que houver”. 

O debate é controverso e multifacetado. Desde o final do ano passado, tenho escrito no Terraço Econômico sobre o tema, já havendo discutido alguns dos pontos que foram levantados no debate aqui na Gazeta, para os quais gostaria de chamar a atenção.

Autonomia e accountability 

O primeiro ponto a ser destacado no artigo de Castro é a exigência de que a comunidade acadêmica preste contas à sociedade que a financia. A indignação do autor com os temas de pesquisa listados e a preocupação com os recursos investidos e o potencial retorno gerado remetem sempre à pergunta: por que a sociedade deve pagar por isso? Castro clama por uma prestação de contas dos pesquisadores à sociedade, pela responsabilidade com o dinheiro aportado, por, numa palavra, accountability – termo inglês de difícil tradução, mas que engloba os dois conceitos anteriores e algo como responsividade. 

Galindo, por sua vez, enfatiza a liberdade de pesquisa constitucionalmente garantida à comunidade acadêmica. Trata-se de uma das facetas da autonomia universitária, expressa no artigo 207 da Constituição Federal. Galindo está certo ao afirmar que o objetivo principal de uma universidade de pesquisa é a formação de pesquisadores, à qual o tema das pesquisas está subordinado; a aquisição de habilidades é mais importante do que a aquisição de conteúdos determinados. 

Ambos os jornalistas têm razão na defesa que fazem, mas é preciso reconhecer que elas se complementam, necessitam uma da outra para não serem parciais. Por um lado, é verdade que as pesquisas universitárias não podem ser limitadas a conhecimentos consolidados, devendo ser livres para a construção de novos saberes, para a realização de novas descobertas, para a crítica do que é estabelecido e para a expansão e progresso do conhecimento humano, como quer Galindo. Por outro lado, é igualmente verdade que essa liberdade é situada: não se exerce no vazio, mas num contexto histórico-social específico, do qual depende e ao qual deve se reportar (embora não se deva por ele limitar), como quer Castro. 

Em suma, autonomia sem accountability é discricionariedade vazia, liberdade irresponsável, descolamento esnobe da realidade. Inversamente, accountability sem autonomia é engessamento, amputação da crítica e morte do progresso científico (em todas as áreas do conhecimento). No primeiro caso, temos uma universidade infantil, virada de costas para a sociedade; no segundo, uma universidade domesticada, amordaçada e anódina. É preciso equilibrar os dois polos, principalmente no financiamento das pesquisas: garantir a liberdade acadêmica na escolha dos temas e dos procedimentos metodológicos, mas também preservar os interesses da sociedade e receber algum retorno pelo investimento público

Isso nos leva a outro par conceitual.

Utilidade e relevância 

Galindo está certo, como já foi dito aqui, em enfatizar o aspecto formativo das pesquisas acadêmicas. No entanto, não se pode ignorar que delas resulta um trabalho, um produto final e concreto: uma dissertação ou uma tese. Além de avaliar se o pesquisador adquiriu as habilidades metodológicas e procedimentais requeridas, cabe também avaliar a qualidade desse resultado. Qual será o critério adequado para isso? Ambos os autores do nosso debate deixam suas pistas. 

Castro defende um critério de relevância como justificativa para o aporte de recursos, especialmente nos casos em que as pesquisas não possam ser bancadas por recursos próprios ou crowdfunding – vide exemplo do propulsor de foguetes no quintal, mencionado acima. Ele adiciona a isso uma dimensão moral: as pesquisas acadêmicas devem promover virtudes e combater vícios comportamentais. Por fim, Castro sustenta que as ciências exatas devem ser privilegiadas, em detrimento das humanidades, porque “gera[m] empregos de alta remuneração, fortalece[m] a indústria nacional e aumenta[m] o grau de inovação tecnológica, o que tem um efeito multiplicador sobre a economia”. 

Em contrapartida, Galindo é preciso ao apontar como seu interlocutor acaba caindo no fetiche da utilidade: segundo ele, Castro pretende que “a pesquisa universitária deve ter uma finalidade prática mediata ou um propósito tecnológico”, o que faria com que a universidade seja “transformada num grande Senac”. O resultado nefasto dessa postura seria relegar à iniciativa privada “qualquer atividade de reflexão sobre nossas vidas do ponto de vista histórico, sobre nossas relações sociais”.

Galindo identifica essa postura utilitarista a um “preconceito contra a atividade crítica que classifica de tolas as pretensões de estudar aquilo que não seja prático”, e mostra como, no fim das contas, não só é importante fomentar a criatividade e a imaginação de novas formas de vida e relações, como também é preciso reconhecer que qualquer pesquisa sobre qualquer tema (inclusive nas ciências naturais) é suscetível ao erro e a falhas – que, por vezes, demoram décadas ou mesmo séculos para serem diagnosticadas. 

Para além do clima de guerra cultural entre ciências humanas e ciências exatas e do debate sobre a distinção entre universidade e ensino técnico, é importante estabelecer, contra Castro, o que é consenso na comunidade acadêmica e científica: não se pode reduzir o critério de relevância das pesquisas ao de utilidade - anedota: Geraldo Alckmin, governador do estado de São Paulo, foi amplamente criticado por cientistas de todas as áreas do conhecimento ao exigir que as pesquisas financiadas pela Fapesp fossem exclusivamente aquelas de aplicação prática e imediata. 

Há (pelo menos) três sentidos possíveis de relevância: a) relevância cultural, nas pesquisas que contribuem para o arcabouço teórico de suas áreas de conhecimento e para a produção cultural presente e futura; b) relevância social, nas pesquisas que ajudam a explicar fenômenos sociais, avaliar políticas públicas e refletir sobre a organização da vida em sociedade; c) relevância intelectual ou acadêmica, nas pesquisas que impactam diretamente a comunidade científica, o conjunto de conhecimentos de um campo e sua extensão – com impacto local ou global. Esses sentidos não são mutuamente excludentes, ou seja: há pesquisas que são relevantes em mais de um e até nos três sentidos expostos. Nem são taxativos, podendo ser amplamente complementados.

Essa concepção de relevância não exclui o mérito de pesquisas voltadas para alguma utilidade, apenas ampliando o leque de reflexões válidas e desejáveis. 

Conclusão 

Como dito desde o início, esse debate é longo e complexo, e o maior mérito da Gazeta e dos dois autores – Castro e Galindo – é enfrentá-lo e desdobrá-lo. A comunidade acadêmica, como lembra Castro, não está imune a críticas. É importantíssimo manter o exercício constante de crítica e reavaliação, para que possamos entender o que não está dando certo nelas e aperfeiçoar suas atividades 

Isso só será possível reforçando os méritos dessas instituições, preservando suas riquezas e ampliando seu potencial, para que elas contribuam na plena medida de suas capacidades com a sociedade que lhes dá sustentação – cultural, legal, financeira, etc. Para isso, tanto o todo (sociedade) precisa parar de perseguir e demonizar a parte (universidade), como esta precisa parar de se isolar e se pretender superior àquele . 

Num cenário de crises, revoluções e mudanças em velocidade vertiginosa, todos temos a ganhar com isso.

*Rafael Barros de Oliveira é Mestrando em Filosofia pela USP e colunista do Terraço Econômico

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