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Enem 2020 será realizado nos dias 17 e 24 de janeiro
Para especialistas, modelo atual do Enem precisa mudar.| Foto: Marcelo Andrade / Gazeta do Povo / Arquivo

As denúncias de supostas irregularidades no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), embora graves, talvez escondam outra questão ainda mais séria: a atual qualidade do Exame Nacional do Médio (Enem) e sua relevância para a educação brasileira. Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo defendem que, ao longo dos anos, o exame tem se distanciado de seus objetivos iniciais, não dando conta mais, ao menos do jeito que está, de avaliar o ensino médio e funcionar como um substituto adequado dos vestibulares.

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Mesmo assim, às vésperas da realização de mais uma edição do Enem, as discussões predominantes se voltam para a possibilidade de interferências governamentais no conteúdo das provas. Jair Bolsonaro disse que o exame começava a “ter cara do governo”, embora tenha negado que acessou ou interferiu nas provas. No Inep, órgão do Ministério da Educação (MEC) responsável pela organização e aplicação do Enem, outro caos: dezenas de servidores pediram afastamento de seus cargos comissionados, alegando "fragilidade técnica e administrativa da atual gestão máxima" do órgão. Em resposta, o presidente do Inep, Danilo Dupas, disse que a motivação dos servidores seria o corte de gratificações trabalhistas. Diante desse cenário tumultuado, o Tribunal de Contas da União (TCU) abriu na quinta-feira (18), uma investigação para apurar irregularidades na elaboração do Enem.

Mas, com relação à qualidade do Enem, o que dizem os especialistas? Para a ex-secretária de Educação Básica do MEC, Ilona Becskehazy, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), ter uma prova como Enem é necessário, mas não nos moldes do exame atual. “É uma prova importante para distribuir melhor as vagas pelo país inteiro. Agora, a prova em si é muito ruim. A ideia de se ter uma prova é boa, mas o Enem não cumpre seu objetivo”, explica.

Segundo ela, as questões da prova são malfeitas e não estimulam os candidatos a estudarem o que deveriam. Além de mal redigidas e concebidas, as provas teriam sempre, segundo Ilona, um “componente lacração geral”, ou seja, questões ambíguas e carregadas de teor político ou ideológico. Para a especialista, para cumprir melhor seu objetivo, o Enem deveria, de fato, focar na avaliação de competências de interpretação/produção de texto e de matemática; e de conhecimentos em história e geografia.

Já Pedro Caldeira, professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e diretor do Núcleo de Educação Básica da associação Docentes Pela Liberdade, vê no caráter nacional uma das principais fragilidades da prova como requisito único para ingresso ao ensino superior. Ele explica que os problemas de se adotar uma mesma prova em todo país começam na segurança e confiabilidade do exame. “A centralização de processos os torna mais permeáveis a intervenções dúbias e com impactos mais extensos e eventualmente mais graves”, opina.

Ele defende que o ideal seria a descentralização de todo o processo, desde a criação do banco de questões, de validação e escolha dos itens que irão constar na avaliação, impressão, aplicação e respectiva correção da prova. Assim, diz Caldeira, haveria menos risco de problemas em termos de sigilo e segurança e, em caso de uma ocorrência, ela estaria circunscrita apenas à universidade ou ao conjunto de universidades que usou essa prova específica.

Custo

O Enem também é caro. Em 2019, quando a prova teve cerca de 5,1 milhões de inscritos, a prova custou R$ 537,6 milhões de reais (R$ 105,52 por aluno), R$ 52,1 milhões a menos que em 2018, quando o MEC desembolsou R$ 589,7 milhões (R$ 106,17 por aluno), com 5,5 milhões de participantes.

Em 2020, quando o ministro Milton Ribeiro voltou a imprimir as provas do Enem com a gráfica Plural, da editora e gráfica pertencente ao Grupo Folha, a mesma com problemas de fraude em 2009, com 4,8 milhões de participantes a prova custou R$ 682 milhões (R$ 117 por aluno).

O ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, chegou a anunciar, em julho de 2019, que, em 2026 o Enem seria 100% digital, com custo menor e uso de computadores já existentes em instituições de ensino e outros órgãos públicas. O projeto piloto do Enem Digital, em 2019, custou R$ 20 milhões. Na edição 2021 da prova, também haverá a modalidade digital, mas do total de mais de 3,1 milhões de inscrições confirmadas, menos de 70 mil optaram pela modalidade digital. E mesmo tendo optado pelo Enem Digital, os alunos terão de fazer a prova de redação em papel.

Necessidade ou opção?

Na avaliação do doutor em Filosofia, Ronai Pires da Rocha, autor dos livros "Quando ninguém educa - questionando Paulo Freire" e "Escola Partida - Ética e política na sala de aula", é difícil que o Enem deixe de ser a base para o ingresso nas universidades. “A tendência mundial é essa mesmo, e só nos resta aperfeiçoar o Enem. As universidades não me parecem mais dispostas a voltar atrás. No Rio Grande do Sul, apenas uma universidade, a UFRGS, ainda mantém o vestibular próprio. E isso é considerado um retrocesso pela maioria dos atuais reitores”, diz.

Para ele, o Enem nacionalizou o processo de ingresso ao ensino superior e a maioria das universidades achou esse sistema mais conveniente, principalmente porque economiza custos e trabalho local. Segundo ele, mesmo com eventuais problemas, pelo seu gigantismo, o Enem tem sido bem realizado tecnicamente. “Em um país com o tamanho do Brasil é uma proeza e tanto preparar uma prova para milhões de participantes, garantindo sigilo e uniformidade”, opina Rocha.

Para Caldeira, por outro lado, seria preciso pensar em alternativas ao exame. “O Enem, como prova nacional para seleção de candidatos ao ensino superior, não só não é imprescindível como me parece não cumpre bem esse objetivo”, defende. Para o professor, o Enem, trata as universidades públicas como “repartições ou fábricas” e os candidatos a estudantes como parafusos: se passarem no crivo mecânico da prova, os 'parafusos' tornam-se estudantes, caso contrário, podem tornar a tentar passar nesse mesmo crivo nos semestres e anos seguintes.

“É o tipo de processo ‘inclusivo’ que exclui aquilo que de fato e único e singular em cada candidato – e que em muitos casos os poderia tornar 'atraentes' para a universidade”, diz Caldeira. Ele defende que cada curso deveria ter exigências diferentes para ingresso dos estudantes.

Ele conta que há alguns anos participou de um processo de seleção de estudantes para um curso de Medicina em Portugal. Além de ser exigido que os candidatos tivessem uma graduação prévia, foram aplicados testes para avaliar a capacidade de lidar com imprevistos, as habilidades em termos de imaginação e criatividade e diversos outros critérios. Tudo para identificar quais candidatos teriam o perfil adequado ao curso. “E não foram necessariamente selecionados os candidatos com melhores classificações em provas objetivas ou com melhores históricos escolares”, resume.

Loteria

Outro problema essencial seria a verdadeira “loteria” de universidades criadas a partir de programas como Sisu. Devido às características do sistema, os candidatos podem acabar conseguindo vagas em universidades ou cursos que nunca seriam sua primeira escolha, simplesmente porque foram os únicos que “se encaixaram” nas suas notas do Enem.

Para participar do Sisu, inicialmente o candidato escolhe até duas opções de curso e universidades, indicando a ordem de preferência. Essas opções podem ser alteradas a qualquer momento enquanto o período de inscrições estiver aberto. A partir das notas dos candidatos inscritos, é gerada uma “nota de corte” ou nota mínima para ingresso. Se o candidato não conseguir a vaga em sua primeira ou segunda opção de curso, pode tentar se inscrever em outras universidades com nota de corte mais baixa.

Em artigo publicado pela Gazeta do Povo em 2018, o professor da Universidade Federal de Uberlândia, Dennys Garcia Xavier, já alertava para o problema. Para ele, o resultado dessa concorrência são alunos desinteressados, iludidos pela ideia de ingresso a qualquer custo na vida universitária. Isso, ressalta o professor, levaria a altas taxas de abandono dos egressos via Sisu em relação aos que ingressam na universidade por meio de outros processos seletivos, como os vestibulares tradicionais.

“Aparentemente, o Enem facilita a vida dos candidatos, pois uma única prova que pode ser feita na própria cidade dos candidatos lhes permite um alargado leque de opções de universidades e cursos”, explica Pedro Caldeira. Mas esse grande leque de opções tem como resultado o deslocamento de milhares de estudantes para outras cidades e estados. “Se em simultâneo é uma oportunidade de crescimento pessoal, o desenraizamento social tem os seus custos e alguns deles podem estar associados a taxas de evasão e de reprovação crescentes nas universidades públicas brasileiras”, avalia.

História

Criado em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio surgiu como uma forma de avaliar os estudantes que saíam do ensino médio. A ideia começou a ser debatida logo após a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em 1996 e foi inspirada em exames internacionais como o SAT americano. Na Portaria 438, de 28 de maio de 1998, que instituiu o Enem, foram colocados os objetivos da avaliação, sendo o primeiro deles “conferir ao cidadão parâmetro para autoavaliação, com vistas à continuidade de sua formação e à sua inserção no mercado de trabalho”. Para isso, nas primeiras edições do Enem, o candidato recebia um Boletim de Resultados, com informações sobre o seu desempenho individual e em relação ao resultado global. A ideia era que o próprio estudante usasse os resultados para direcionar sua carreira ou estudos.

Outros objetivos previstos para o Enem eram “criar referência nacional para os egressos de qualquer das modalidades do ensino médio”, “fornecer subsídios às diferentes modalidades de acesso à educação superior” e “constituir-se em modalidade de acesso a cursos profissionalizantes pós-médio”.

Em 2009, durante o governo Lula, dois outros objetivos foram incluídos no Enem: “promover a certificação no nível de conclusão do ensino médio, de acordo com a legislação vigente”, o que permitiria que mesmo quem não tivesse concluído o ensino médio conseguisse o diploma referente a essa etapa do ensino. Também foi incluído o item que previa “avaliar o desempenho escolar do ensino médio e o desempenho acadêmico dos ingressantes nos cursos de graduação”.

Se nos anos iniciais do Enem poucas universidades usavam a avaliação como parâmetro de seleção, tudo começou a mudar a partir da criação do Programa Universidade para Todos (ProUni). Criado em 2005, o programa previa a concessão de bolsas de graduação a estudantes de baixa renda em universidades privadas. A pré-seleção dos bolsistas era feita justamente a partir dos resultados e do perfil socioeconômico dos candidatos no Enem. Ainda assim, o programa ressaltava que a etapa final de seleção dos bolsistas seria de responsabilidade das próprias universidades, “segundo seus próprios critérios”.

Mas o ponto fundamental para transformar de vez o Enem em substituto do vestibular veio em 2010, com a criação do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Por meio do sistema, as universidades públicas podem preencher vagas na graduação usando apenas as notas do Enem. A partir daí, tornou-se praticamente obrigatório que os estudantes com interesse em cursar o ensino superior se inscrevessem no Enem.

Em outros países

Diversos países possuem sistemas de avaliação de estudantes que podem ser usados pelas universidades para seleção de egressos. Veja a seguir alguns deles:

SAT, ACT e AP Exams (Estados Unidos)

Os Estados Unidos possuem três tipos de exames de acesso ao ensino superior: SAT, ACT e AP. Esses exames podem ser utilizados isoladamente ou de forma combinada como forma de acesso ao ensino superior. A maioria das universidades não usa os testes isoladamente e os complementa com outros critérios, como entrevista, cartas de apresentação e análise de histórico escolar.

O Scholastic Aptitude Test (SAT), que em tese inspirou a criação do Enem no Brasil, foi criado em 1926 e possui dois formatos. O SAT Reasonable Test (SAT-I) avalia as habilidades em resolução de problemas matemáticos, interpretação e análise crítica de textos, gramática e uso da língua inglesa, além de uma redação opcional. Já o SAT Subject Test (SAT-II) avalia os conhecimentos em uma disciplina específica, à escolha dos próprios candidatos.

O American College Testing (ACT) é uma avaliação criada em 1959 para medir os conhecimentos dos estudantes nas áreas de matemática, literatura, ciências, língua inglesa e produção de texto. É aplicado em um único dia. Por fim, o Advanced Placement Examinations (AP Exams) foi criado em 1951 e consiste em avaliações de disciplinas específicas, como teoria musical, governo e políticas comparadas, geografia, macroeconomia, psicologia, entre outras. Poucas universidades ainda o utilizam como critério para ingresso.

Gaokai (China)

É considerado o maior vestibular do mundo em quantidade de participantes. Criada em 1952, é feito por estudantes que concluíram o ensino médio e desejam uma vaga nas universidades do país. Os alunos que não forem aprovados em nenhuma universidade são orientados a procurar os cursos técnicos. É aplicado uma vez ao ano, em dois dias, sendo o primeiro para resolução de três provas obrigatórias (literatura e gramática chinesa, matemática e língua estrangeira), e o segundo para as especialidades, definidas de acordo com o que cada estudante estudou no ensino médio. Pode ser feito mais de uma vez.

Abitur (Alemanha)

Usado na Alemanha desde 1871, o Abitur é uma prova nacional que certifica o fim do ensino secundário e é a principal forma de ingresso dos estudantes nas universidades alemãs. Diferentemente do Enem, cada candidato só pode fazer o exame uma única vez. A aplicação é feita pelos estados, que têm autonomia para definir a estrutura e as datas de realização da prova. A aplicação do Abitur pode durar até duas semanas, com cada uma das cinco provas que compõem o exame sendo aplicadas em dias diferentes. São três provas escritas e outras duas orais, sendo que os candidatos têm certo poder de escolha sobre os temas que serão abordados na prova.

Baccalauréat Général – BAC (França)

O Baccalauréat é uma avaliação que certifica o fim do ensino secundário francês. Foi criada em 1808, durante o governo de Napoleão Bonaparte. É a principal forma de acesso à universidade na França. Até 2020, os alunos realizavam provas para todas as disciplinas, sendo parte de conhecimentos comuns, como francês, filosofia e matemática, e parte referente às especialidades cursadas durante os dois últimos anos de ensino.

Em 2020, o exame foi reformado, com o fim das provas compartimentadas e adoção de um sistema de avaliação contínua. Com isso, atualmente os alunos só realizam um exame final de conhecimentos comuns, com provas orais e escritas. As demais áreas do conhecimento são avaliadas ao longo dos três anos do ensino secundário.

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