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Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash

A passagem "relâmpago" de Carlos Alberto Decotelli da Silva pelo Ministério da Educação (MEC) e as inconsistências curriculares por ele apresentadas, além de terem tumultuado a pasta, jogaram luz sobre dilemas envolvendo mestres e doutores Brasil afora. Como, por exemplo, a supervalorização de títulos e a dificuldade de absorção desses profissionais pelo mercado de trabalho.

O ex-ministro Abraham Weintraub, em sua gestão, já havia posto o tema na mesa: "O Brasil tem doutor demais", disse ele, à época. "Já batemos a meta do doutorado há tempos. Quando você bate uma meta, direciona as verbas para as outras que ainda estão aquém".

O mercado saturado não é o maior dos problemas, contudo. A supervalorização de diplomas em detrimento da capacidade de atuação, de fato, dos profissionais, revela uma cultura de "falsa promessa" de ascensão social. Por isso a corrida por títulos.

Somam-se a isso dois outros problemas: a incapacidade do mercado de absorver a mão de obra - pela saturação ou por falta de estrutura frente à "qualificação excessiva" - e a "fuga de cérebros".

A inconsistência curricular de Decotelli foi exposta em função do cargo de ministro. Mas, em 2018, quando esteve à frente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), importante autarquia ligada ao MEC, o professor não teve seu currículo contestado.

"Currículos acadêmicos podem ser usados como martelos por detratores políticos quando isso lhes convém. E, em um mundo informatizado, é bem mais fácil auditar a veracidade de informações curriculares", afirma Guilherme Wood, doutor em Psicologia pela Universidade de Aachen, na Alemanha.

Mas a que se deve a corrida por títulos?

Promessa de ascensão social para doutores

Especialistas avaliam que o problema da supervalorização dos diplomas no país decorre, em grande medida, de uma promessa ilusória de ascensão social garantida com a conclusão de um curso universitário.

"O brasileiro nunca deixará de amar títulos e honrarias, pois a sociologia da nossa intelectualidade é calcada na figura do medalhão e, lamentavelmente, entre eles sobejam os 'falantes de javanês'", afirma Wood, atualmente professor no Instituto de Psicologia da Universidade Karl-Franzens, na Áustria. "Fraudes envolvendo títulos e honrarias não são exclusividade brasileira e decorrem da fixação em sinais exteriores de status, poder e superioridade, todos eles emanados pela qualificação acadêmica."

Para além da busca pelo prestígio, é preciso considerar que, até recentemente, programas de pós-graduação de muitas universidades públicas não apenas isentavam estudantes de mensalidades bem como ofereciam remuneração a muitos dos pesquisadores. "É fácil de supor que a quase totalidade dos estudantes brasileiros de doutorado tinha uma não tão secreta esperança de um emprego público estável e bem remunerado", afirma Pedro Caldeira, doutor em Gestão da Informação pela Universidade Nova de Lisboa.

Soma-se a isso o incentivo dos últimos governos para aumentar as estatísticas do ensino superior no país. Isto é, uma preocupação com o aumento nos números de pós-graduados e uma busca desenfreada para publicar o maior número de artigos científicos possíveis.

Na visão do especialista, porém, há tempos a decisão pela pós-graduação deixou de ser uma boa investida. "Deixou de ser racional tomar essa decisão de prosseguir estudos de pós graduação de doutorado há 10 anos [...]. No entanto, muitos ainda seguem essa via na esperança de que ocorra milagrosamente a abertura de novas vagas ou a vacância de vagas já existentes", defende Caldeira.

"Essa esperança tem muito de ilógico, especialmente quando a União está em forte contenção de despesas com pessoal e após a aprovação da Reforma da Previdência nos moldes como ocorreu em 2019", afirma.

Na Áustria, bem como em muitos outros países industrializados, a empregabilidade tende a não melhorar com a aquisição de diplomas dessa natureza, diz Wood. "Em muitas disciplinas, piora. O doutoramento é, portanto, uma alternativa de risco, atrativa somente para uma minoria com muito talento, iniciativa e resiliência, e, decididamente, não um mecanismo de ascensão social", defende.

Revés na empregabilidade de mestres e doutores

Por razões dessa natureza, um diploma, embora louvável, pode acabar ocasionando dificuldades quanto à empregabilidade para os próprios mestres e doutores. Pelo menos 25% dos brasileiros com doutorado e 35% dos que têm mestrado estão desempregados, revelam dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações.

Em geral, os profissionais têm três principais mercados a suprir: as instituições de ensino, funções de consultoria especializada e a indústria voltada à tecnologia de ponta. Mas especialistas apontam para a dificuldade do mercado em absorver a mão de obra "superqualificada".

"No cenário econômico brasileiro, onde falta mão de obra técnica especializada como base de apoio à atividade artística, tecnológica e científica dos pós-graduados, a maioria dos doutores está irremediavelmente condenada ao subemprego", afirma Wood.

"Ao contrário do que muitos pensam, no front do desenvolvimento tecnológico estão micro e pequenas empresas", diz o especialista. "Essas só florescem num ambiente de liberdade econômica, abertura ao mercado internacional e transparência legal e fiscal: exatamente o contrário do que o Brasil oferece. Mas, no mercado brasileiro, as chances de sobrevivência de pequenas e médias empresas no ramo de alta tecnologia são muito ruins".

Caldeira alerta, por outro lado, para uma tentativa de distorcer o mercado. Ele afirma desconhecer "um único caso de profissional altamente capacitado para as vagas que o mercado oferta que esteja desempregado ou em subemprego". Por outro lado, tem ciência de profissionais altamente capacitados para vagas que o mercado não oferta. "As tentativas de distorcer o mercado para criar vagas que o mercado de fato não necessita, cedo ou tarde correm muito mal", diz.

"Os que se capacitaram do modo e no tempo certo, que aceitaram sair dos grandes centros urbanos ou que empreenderam baseados nas competências adquiridas e ou desenvolvidas em seus estudos pós graduados estão a ser, parece-me, adequadamente valorizados", defende. "Infelizmente essa valorização passa mais pelas redes públicas e privadas de ensino superior que por empresas privadas na indústria, na agropecuária ou na prestação de serviços".

Segundo Pablo Barboza Lollo, pós-doutor em Fisiologia e Biofísica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), uma das respostas para o dilema está no desequilíbrio entre o incentivo à formação de recursos humanos e ao desenvolvimento de ciência e tecnologia no Brasil.

"Provavelmente a melhor colocação para que eles possam ajudar efetivamente o país seja na iniciativa privada. Porém, para isso, acredito que devam existir políticas para o desenvolvimento de ciência e tecnologia nacionais nas empresas, para que haja um desenvolvimento econômico, social e educacional nacional e regionalmente", diz.

Fuga de cérebros

À medida em que o mercado não os abarca e a academia deixa de investir nesses profissionais, observamos um outro fenômeno: o êxodo de doutores. Há quem chame de "fuga de cérebros". A Gazeta do Povo falou recentemente sobre a experiência de profissionais cujo entendimento é o de que "fazer ciência no país é inviável".

Nas palavras de Wood, "a combinação funesta de economia restrita, excesso de doutores e carência de profissionais técnicos qualificados sela o destino de muitos desses doutores, que se vêm forçados a abandonar o país".

"Além disso, o pessoal não-acadêmico responde pouco pela qualidade de seu trabalho e desperdiça a força de trabalho caríssima de professores, e as importações de equipamentos podem levar anos e acarretam um ágio de até 300% sobre os preços originais. E por último, a estrutura coletivista dos departamentos universitários desmotiva o pensamento livre, privilegia o trabalho ideológico em detrimento do pensamento científico e mata o amor ao conhecimento. Esse foi, no meu caso, o motivo mais pungente para deixar o Brasil", afirma Wood.

Caldeira também considera estar entre cérebros que deixaram seu país de formação - embora não culpe o sistema por sua própria decisão. Mas, no seu caso, saiu de Portugal. "A decisão da minha 'fuga' foi exclusivamente minha, sabendo que teria de viver com as consequências da minha decisão, independentemente de elas serem boas ou más. E algumas foram boas e outras más, mas nunca me passaria pela cabeça responsabilizar entidades exteriores pelas consequências de uma decisão minha".

"Onde alguns veem histórias repletas de tristeza por muitos se terem visto obrigados e saírem do país para garantirem o seu próprio sustento ou melhorar as suas condições de vida, eu vejo histórias de sucesso por muitos terem encontrado alternativas às condições precárias que lhe foram ofertadas no Brasil", afirma Caldeira.

Baixo impacto e notas "infladas"

Além das questões já colocadas, o grande número de doutores no país não foi capaz de mudar o cenário científico frente à comunidade internacional. Em uma série de matérias veiculadas na Gazeta, explicamos como o Brasil publica muito e, em troca, tem impacto científico baixo. Em resumo, figura entre os piores colocados.

"O montante de investimento nas universidades públicas é invejável e superior ao de muitos países de primeiro mundo, mas sua aplicação é inefetiva", defende Wood.

"Há um incentivo muito grande para que os acadêmicos busquem títulos e publiquem o maior número de artigos possíveis para conseguirem financiamento para seus trabalhos. Porém nem sempre há uma preocupação e incentivo tão grande para a busca de qualidade, e hoje vivemos na academia buscando números e títulos para conseguirmos financiamento para as pesquisas e um certo prestígio", afirma Pablo Lollo.

Frente a outros países que publicam em quantidade semelhante a do Brasil, números apontam para a quase "irrelevância" da ciência brasileira, afirma Caldeira. "Quando se considera a média da relevância da pesquisa feita por aqui [no Brasil], ela encontra-se sistematicamente abaixo da média da relevância da pesquisa feita a nível mundial. Em todas as grandes áreas".

"Se tivermos em consideração que a média da pesquisa mundial em cada uma das grandes áreas de pesquisa é muito baixa, temos a medida exata do estado calamitoso em que a produção científica se encontra em nosso país".

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