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Os cingapurianos têm um termo para a patologia de temer ir mal nos estudos: “Kiasu”, que significa “medo de ficar para trás ou perder” | Reprodução/YouTube
Os cingapurianos têm um termo para a patologia de temer ir mal nos estudos: “Kiasu”, que significa “medo de ficar para trás ou perder”| Foto: Reprodução/YouTube

Cingapura liderou o ranking global do Programa de Avaliação Internacional de Alunos (PISA) em matemática, ciências e leitura, enquanto países como Austrália, França e Reino Unido estão no grupo de países da OCDE para melhoria nessas áreas. 

Então o que Cingapura está fazendo certo e o que outros países podem fazer para reproduzir isso? 

Claramente, há coisas para aprender. Cingapura investiu pesadamente no sistema educacional. Os professores são os melhores e mais destacados, e desenvolveu abordagens pedagógicas de grande sucesso para o ensino de ciências, matemática, engenharia e tecnologia (STEM), como a abordagem "Domínio da Matemática". 

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Culturalmente, os cingapurianos têm forte compromisso com o sucesso educacional e há um foco nacional na excelência educacional. 

O sucesso nos rankings do PISA e em outros índices globais é uma parte importante da “marca” de Cingapura. O acadêmico cingapuriano Christopher Gee chama isso de “corrida armamentista educacional”. A escolaridade altamente competitiva é a norma. 

Papel do ensino privado 

A discussão pública sobre por que nos Estados Unidos não estamos indo tão bem quanto os cingapurianos é amplamente focada no que acontece nas escolas daquele país. 

No entanto, há uma coisa que falta nos relatos sobre o sucesso de Cingapura: o papel das aulas particulares (tutores particulares e escolas preparatórias) e o papel que desempenham no sucesso geral dos estudantes na minúscula cidade-estado. Aqui estão alguns números surpreendentes: 

● 60% do ensino médio e 80% dos alunos em idade de ensino fundamental têm aulas particulares. 

● 40% dos alunos de pré-escola têm aulas particulares. 

● Alunos de pré-escola, em média, frequentam duas horas de aulas particulares por semana, enquanto as crianças em idade escolar estão cursando, em média, pelo menos três horas por semana. 

É isso mesmo. Oito em cada dez alunos do ensino fundamental em Cingapura recebem aulas particulares, seja por meio de tutores particulares ou escolas preparatórias. 

Em 1992, esse número era de cerca de 30% para o ensino médio e 40% para o ensino fundamental. As horas gastas em aula aumentam no final do ensino fundamental, e as crianças de classe média passam mais horas do que as famílias menos abastadas. 

O número de escolas preparatórias também cresceu exponencialmente na última década, com 850 centros registrados em 2015, contra 700 em 2012. 

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Impacto da renda familiar 

De acordo com a Pesquisa de Despesas Domésticas de Cingapura, as aulas particulares são uma indústria de US$ 1,1 bilhão (para uma nação com cerca de 5,6 milhões de habitantes), quase o dobro do valor gasto pelas famílias em 2005 (US$ 650 milhões). O que isso representa em nível familiar? 

34% das pessoas com filhos atualmente matriculados gastam entre US$ 500 e US$ 1.000 por mês por criança, enquanto 16% gastam até US$ 2.000. 

Considerando que o grupo de famílias em última posição ganha cerca de US$ 2.000 por mês – o próximo grupo em torno de US$ 5.000 – essa é uma parte muito grande do orçamento familiar. 

Imagine uma família com dois ou três filhos e temos uma percepção das possíveis desigualdades socioeconômicas presentes quando o sucesso educacional depende de aulas particulares. 

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Pesquisas mostram que apenas 20% dos que estão nas duas faixas de renda mais baixas (renda mensal de menos de US$ 4.000) têm pelo menos um filho frequentando aulas particulares. 

Centros de ensino particular 

Centros de ensino particular e escolas preparatórias variam de instituições mais acessíveis de bairro e centros comunitários a grandes escolas preparatórias de “marca nacional” com pontos de venda nos principais shoppings da ilha. 

A qualidade do ensino recebido está muito ligada ao valor que se pode pagar. É um grande negócio. 

As estratégias de marketing das escolas preparatórias são muito boas em induzir ansiedade nos pais sobre o medo de fracassar, a menos que estejam dispostos a pagar para ajudar seus filhos a progredir. 

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Muitos pais reclamam que as escolas “ensinam além dos livros didáticos”. Ou seja, há uma percepção de que alguns professores pressupõem que todas as crianças da turma estão recebendo aulas particulares e, portanto, ensinam acima do nível do currículo. Imagine o impacto nas poucas crianças que não estão recebendo ajuda extra. 

Por que isso começa na pré-escola e no ensino fundamental? 

O Exame de Egresso do Ensino Fundamental de Cingapura (PSLE, sigla em inglês para Primary School Leaving Examination) é um exame de altíssimo impacto que determina o tipo ensino médio no qual uma criança ingressará e também se uma criança é levada para uma escola que irá colocá-la na corrida para a universidade. 

Os cingapurianos não têm o direito automático de matricular seus filhos na escola de ensino médio mais próxima da sua residência. 

Todas as escolas de ensino médio são seletivas e as melhores escolas selecionam alunos da safra do PSLE. Os alunos do ensino fundamental são mandados para quatro tipos de ensino médio: as principais instituições enviam os alunos diretamente para a universidade por meio dos exames de conclusão do ensino médio, enquanto as escolas “técnicas” e “normais” os enviam para institutos de ensino técnico e politécnico, com um caminho muito mais complexo para a universidade. 

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O exame PSLE induz em adolescentes de 11 e 12 anos o mesmo nível de ansiedade observado em adolescentes em exames de seleção para o ensino superior. 

Muitos pais de classe média acreditam que a “corrida” começa cedo. 

Os pais esperam cada vez mais que os filhos em idade pré-escolar estejam lendo e escrevendo e que tenham habilidades matemáticas básicas antes mesmo de ingressarem na escola – o que é frequentemente alcançado por meio de pré-escolas particulares e aulas de “enriquecimento”. 

Embora haja muito a admirar genuinamente na história de sucesso educacional de Cingapura, há uma questão sobre o papel da iniciativa privada (escolas preparatórias privadas) na formação da infância e no estímulo às ansiedades dos pais. 

Uma preocupação potencial quando as aulas particulares atingem o ponto de saturação é que as escolas passam a considerar o nível da “criança treinada” como a base para o ensino em sala de aula. 

Muitos pais de Cingapura com quem conversei lamentam o ambiente bastante competitivo que obriga seus filhos a receberem horas extra de instrução, impactando no tempo e nos relacionamentos familiares e reduzindo as oportunidades de brincadeiras livres na infância, desenvolvimento de amizades e simplesmente conseguir uma noite de sono decente. Muitos sentem que não têm escolha. 

Os cingapurianos têm um termo para essa patologia: “Kiasu”, que significa “medo de ficar para trás ou perder”. Os formuladores de políticas, e também os relatores de educação, precisam estar cientes do que exatamente produz essas histórias de sucesso educacional. 

Isso não é para argumentar que o sucesso de Cingapura seja inteiramente devido ao treinamento fora da escola. O ensino de Cingapura se destaca em muitas frentes. No entanto, dado os níveis de aulas particulares, isso precisa ser visto como uma parte fundamental do todo. 

* Amanda Wise é professora da Macquarie University.

©2018 The Conversation. Publicado com permissão. Original em inglês.

Tradução: Andressa Muniz

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