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Imagem: Reprodução Unsplash.
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Em virtude do fracasso observado no ensino escolar da leitura e escrita, demonstrado nos resultados de 2016, da ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização) divulgados pelo INEP em 2017 em que, dos 2,3 milhões de crianças avaliadas no 3º ano do ensino fundamental, um quinto não sabia ler, muitos educadores têm proposto o ‘ensino domiciliar’, em substituição àquele, como solução para problema tão dramático.

Proponho-me, nesse artigo, submeter ao leitor esclarecimentos sobre o que vem a ser o ‘homeschooling’, termo inglês traduzido por ‘ensino domiciliar’ e justificar por quê, com referência à alfabetização, ele não soluciona o impasse.

Em primeiro lugar, no caso da alfabetização, muitos supõem que o ‘ensino domiciliar’ consiste em os familiares alfabetizarem as crianças. Vejam que não é esta a proposta de uma das ‘homeschoolings’ mais credenciada dos Estados Unidos, a K12 International Academy, a qual não é outra coisa senão uma instituição acadêmica de ensino a distância, com currículos cujas disciplinas se escolhem livremente. Observe que, no caso da alfabetização, é a K12 International Academy que escolhe a metodologia, isto é, o planejamento do ensino, os conteúdos, o material pedagógico, inclusive exercícios e avaliações, sendo as aulas oferecidas pela Internet e os pais seguindo as instruções oferecidas no decorrer do curso. Pode-se depreender que a diferença fundamental entre a ‘homeschooling’ e a escola tradicional está no título A School Without Walls’ (Uma Escola Sem Paredes) e no final da matéria ‘It’s a lot like going to school, though without the long bus rides and crowded hallways!’ (É muito parecido com ir à escola, ainda que sem longas viagens de ônibus e corredores lotados!)

Embora se considere fundamental o apoio da família para o êxito da alfabetização, ela não preenche os requisitos para substituir o papel da escola em tal processo, em razão das grandes dificuldades envolvidas no processo da alfabetização.

As grandes dificuldades a serem enfrentadas

O processamento da leitura tem início quando os captores dos sinais impressos, no momento da fixação, recolhem não mais do que três ou quatro caracteres (inclusive espaços em branco) à esquerda do centro do olhar e sete ou oito à direita, sem, contudo, reconhecê-los, pois tais sinais chegam às áreas primárias de recepção visual como manchas que são desfeitas em miríades de pontos, depois refeitos em traços invariantes, como retas e curvas: os neurônios da leitura, que ficam numa área denominada occipital-temporal ventral esquerda, somente identificarão quais, quantos e como se combinam os traços invariantes que formam cada letra, se houver uma alfabetização adequada, pois os neurônios da visão não foram programados para reconhecer tais minúcias, particularmente, quando envolvem a direção para a esquerda oposta à direita, irrelevantes para reconhecer qualquer artefato ou dado da natureza, conforme o exemplo abaixo, para reconhecer uma xícara:

Mas, para reconhecer as letras, é preciso distinguir como elas se diferenciam entre si. É claro que, para você, que já está alfabetizado e automatizou esse reconhecimento, parece óbvio que as duas letras a seguir sejam diferentes: d  b. Mas para quem está aprendendo a ler, são idênticas, pois os neurônios da visão desprezam essa diferença, já que eles simetrizam a informação.

Outra grande dificuldade para uma criança se alfabetizar é a de que ela percebe a fala como um contínuo: não há separação entre as palavras, nem entre consoantes e vogais.

Para aprender a ler, a criança deverá compreender, aos poucos, que a escrita representa a fala, porém não exatamente tal como é percebida e que, na escrita, as palavras são separadas por espaços em branco. O mais difícil é aprender que uma ou duas letras, no português escrito constituem um grafema, que representa uma classe de sons (o fonema); às vezes, um grafema poderá ter sempre o mesmo valor, como <f>, mas, outras vezes, poderá ter mais de um valor como <c>, antes de <u>, <um+>,<un+>;   <o>,<õ>,<om+>, <on+>;<a>,<ã>,<am+>, <an+>, com ou sem acentos gráficos quando tem o valor de /k/, como em cubo, cor, cola, cala, cumpro, compro, canto; mas antes de <i>,  <im+>,<in+>; <e>,  <em+>,<en+>, com ou sem acentos gráficos, tem o valor de /s/, como em cipó, címbalo, cera, encera, centro.

Para se atingir o alvo principal da leitura que é a compreensão, é necessário o reconhecimento rápido dos traços invariantes que compõem as letras, pareando-as com o que foi registrado na memória durante a alfabetização (se foi bem realizada), passando, em seguida, ao grafema, formado por uma ou duas letras, com seu valor fonêmico, para se chegar ao reconhecimento da palavra escrita, com a respectiva atribuição do acento de intensidade e a sua respectiva imagem acústica. A rapidez de processamento é necessária para que os resultados dos processamentos não se apaguem na Memória de Trabalho antes de o leitor chegar ao término da oração, impedindo-lhe, assim, de aplicar o padrão de entoação.

É o que acontece quando o aluno titubeia por ter sido mal alfabetizado, pelo nome das letras, como na soletração da palavra “pato”, do tipo pê-a-pa-tê-ó-tó: quando chegar à última sílaba, a informação da primeira já se apagou e ele estará impedido de reconhecer a palavra escrita e, em consequência, de capturar o seu significado. Isto é tanto mais grave, quanto maior for a palavra.

As automatizações acima são necessárias para liberar a mente para os processos criativos da leitura, como a construção do sentido das palavras, frases, orações, períodos, parágrafos e texto, ou como a identificação das diferentes pessoas que emitem suas opiniões no discurso escrito (polifonia) e de suas intenções pragmáticas.

A alfabetização para a escrita exige ensinar o aluno a planejar, isto é, definir o tema (mensagem), as intenções pragmáticas, o(s) destinatário(s), a situação comunicativa escrita com os usos linguísticos decorrentes de o redator e o futuro leitor não partilharem o mesmo espaço e tempo, o gênero e o registro (estilo); a  elaborar o plano, ou seja, o roteiro que norteará a redação do texto, mantendo-lhe a coerência, a coesão, a consistência e a paragrafação, com a correta hierarquia das ideias; a converter o plano no texto; a pontuar, de acordo com a sintaxe; a automatizar a conversão dos fonemas em grafemas e os gestos motores requeridos na execução (manuscrita e digitação); a revisar o que escreveu, aplicando os conhecimentos de gramática aprendidos durante a alfabetização.

Outro problema é que, em virtude da mobilidade social, o professor se defrontará com alunos provindos das mais diferentes regiões, ou, na mesma cidade, com alunos provenientes de ambientes socioculturais muito distintos. A variação sociolinguística não afeta as letras que realizam os grafemas, os quais representam os fonemas, em um sistema que é o mesmo, abarcando todas as variantes fonéticas do Português Brasileiro. O alfabetizador deverá ter conhecimentos para lidar com as conversões à oralidade que seu aluno faz quando lê e com as dificuldades que enfrenta para converter sua fala interior à escrita. Mas, tenha em mente: nenhum de nós escreve como fala.

Todas as dificuldades inerentes à alfabetização que acabo de expor tornam evidente que é necessário fundamentar solidamente o professor, as metodologias e o material pedagógico, numa perspectiva que associe as ciências humanas às biológicas. Não podemos separar a cultura, ou seja, tudo aquilo que o ser humano produziu, ao modificar a natureza que o cerca, do biológico, do cérebro, cuja estrutura e funcionamento possibilitam o seu surgimento.

Também fica evidente que os familiares não possuem tal formação especializada.

Por que se exige de um professor de Física, de Química, de Informática que tenha conhecimentos específicos sobre os conteúdos de sua disciplina e se considera que qualquer pessoa, apenas porque sabe ler ou escrever (às vezes, muito mal) pode alfabetizar, quando nem sabe que o nome de sua filha Ângela tem só cinco grafemas e não seis, ou que o nome de seu filho Paulo só tem duas vogais (‘u’ representa uma semivogal, pois a palavra só tem duas sílabas).

Voltamos a afirmar: o apoio da família é fundamental para o êxito da alfabetização, mas não substitui a escola. É claro que se torna necessário, e com urgência, alterar as políticas públicas que orientam a formação do mediador, as metodologias e o material pedagógico. Precisamos de uma alfabetização de qualidade na escola.

Outro aspecto a considerar é o de que, dadas as dificuldades a serem superadas para alfabetizar para a leitura e para a escrita, tal ensino tem que ser, além de sistemático, intensivo. São necessárias muitas horas de imersão num contexto lúdico de aprendizagem, praticadas por profissionais com dedicação exclusiva (que deveriam ser muito mais bem remunerados). Os familiares, depois de um dia estafante de trabalho noutras atividades e as mulheres, com jornada dupla, não dispõem de tal tempo.

Finalmente, só uma pequena parcela (12%) da população brasileira, segundo dados de 2018 do Inaf (Instituto Nacional de Alfabetismo Funcional) pode ser considerada funcionalmente alfabetizada plena, número ínfimo de pessoas, potencialmente aptas a alfabetizar.

Leia também: O método fônico é essencial. Mas, sozinho, não é suficiente para alfabetizar

E também: “A abordagem construtivista não funciona para alfabetizar”

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