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Como a burocracia trava o desenvolvimento da ciência no Brasil
| Foto: Bigstock

Esperar mais de um mês pela autorização para a aplicação de um simples questionário; captar recursos de órgãos de fomento no exterior e não conseguir trazê-los ao Brasil; mais de um ano de trâmite para a aquisição de um equipamento; participação em congressos canceladas por desencontro na aquisição de passagens aéreas. A burocracia nas universidades públicas brasileiras tem sido um grande obstáculo para o desenvolvimento da ciência no país e, na avaliação de professores e pesquisadores ouvidos pela reportagem, uma das causas que leva o país às piores posições nos rankings de relevância científica.

“Captei um recurso da União Europeia, para um projeto conjunto, em que preciso estar lá para determinada etapa e a verba para passagem e hospedagem já está prevista neste recurso captado. Mas o recurso veio para a conta da universidade, e eu preciso de autorização da reitoria e do Ministério da Educação para viajar. Leva 10 dias para essa autorização sair no Diário Oficial, e, só aí posso solicitar a aquisição da passagem. Preciso apresentar três orçamentos, vai para análise e demora até 20 dias para vir a autorização para a compra. Fatalmente, nesses 20 dias o valor da passagem mudou e o recurso liberado já não é mais suficiente”, relata o professor Ronaldo Angelini, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. “E pior, se, por sorte, eu achar uma promoção e conseguir uma passagem mais barata, vou ter que dar explicações sobre a diferença entre o recurso liberado e o efetivamente gasto”, acrescenta. “E não estamos falando de recursos públicos ou arrecadados para a universidade. Sofro com máquina burocrática do Estado para usar o dinheiro que eu mesmo captei”, afirma.

A compra de passagens também é um problema para a professora de fisiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Ana Carolina Luchiari. “Qualquer compra de passagem é a mesma história: a universidade tem vínculo com uma única empresa que fornece passagens aéreas, cobra o preço que quer e a gente tem que comprar com exatamente 10 dias de antecedência, não pode ser com nove, mas nem com 11. E essas viagens internacionais são programadas muito antes. Perdemos a chance de comprar uma passagem mais barata e ficamos na expectativa até 10 dias antes para saber se realmente vamos viajar”, conta.

Aquisição de equipamentos ou materiais

“Qualquer importação, compra internacional de equipamento, demora, no mínimo um ano”, relata Luchiari. “Tive um projeto aprovado pela Fundação Newton, no Reino Unido, em parceria com a Universidade de Swansea, de País de Gales. Eles depositaram na conta da universidade o recurso para a compra de um equipamento, mas eu não conseguia movimentar. A universidade só pode comprar via pregão, mas esse equipamento era bem específico. Fiz um pedido de compra internacional, a empresa teve que provar que é a única que produz aquele elemento que preciso comprar. Foi um ir e vir de papéis que demorou mais de um ano. E eu tinha prazos a cumprir”, conta, dizendo que decidiu, então ir a Gales e usar o equipamento da universidade britânica no seu trabalho. “Depois o equipamento chegou aqui. Está lá na universidade, é utilizado em outras atividades, mas não foi empregado no projeto para o qual foi adquirido”.

Ela cita que, além do desconhecimento por parte de muitos professores, a burocracia é o principal entrave para a atração de investimentos estrangeiros na pesquisa brasileira. “Em cada fase do projeto, dentro da universidade, ele vai recebendo códigos de identificação diferentes. Perdemos uma inscrição em um programa do National Institute of Health porque não conseguimos informação sobre todos esses números dentro da própria universidade. Muitos professores deixam de inscrever seus projetos porque sabem que não conseguirão vencer todas essas etapas. E já há órgãos internacionais que também resistem em financiar, diretamente, universidades brasileiras”, diz. “Os orçamentos das universidades estão estourados, o Brasil não tem dinheiro para pesquisa e não facilita a captação destes recursos internacionais”, diz.

Comissões de ética

Todo o projeto de pesquisa que envolve trabalho com seres humanos e animais precisa de autorização das comissões de ética das universidades para poderem ser desenvolvidos. E isso vale tanto para coletas de material biológico de humanos, experimentos ou até abate de animais, como para a aplicação de um simples questionário. E, mais uma vez, a burocracia emperra o andamento dos projetos. “Quando envolve genética, por exemplo, o projeto passa, além do comitê local, por um comitê ligado ao Ministério da Saúde. Se a aplicação é no Sistema Único de Saúde, passa, ainda, por uma comissão de ética estadual. E as exigências dos dois ou três comitês diferentes são distintas. Desde o formato como os documentos precisam ser entregues, quanto às exigências para a autorização”, conta a professora Izabel Cistina Rodrigues, do departamento de Farmácia, da Universidade de Brasília (UnB).

“Ano passado, submetemos um projeto ao comitê local, que pediu uma série de adequações na nossa proposta de trabalho para só aí aprovar e enviar ao comitê nacional, que pediu para desfazermos todas as correções e voltar à formatação original”, cita. “Esse processo levou 11 meses, e era com alunas de mestrado, que tem duração de dois anos”, acrescenta, mostrando que as alunas ficaram quase metade do mestrado aguardando autorização para poderem iniciar a pesquisa. “E ainda nos exigiram a aquisição de um equipamento que farmacêuticos não têm autorização para comprar. Tivemos que ir pessoalmente explicar”, relata. “Eu entendo que todo o regulamento é necessário, ainda mais que estamos lidando com pesquisa envolvendo seres humanos. Mas é inadmissível demorar porque está faltando um servidor no local para assinar, pela discordância entre as avaliações entre as duas instâncias, mostrando que não há uniformidade. Sem isso, os projetos não podem iniciar e, sequer, pedir fomento, já que é exigida a aprovação ética para a captação de recursos”, diz.

Professor do Departamento de Ciências Pesqueiras da Universidade Federal do Amazonas, Carlos Freitas também diz ter encontrado dificuldades com as comissões de ética para aplicar um simples questionários com piscicultores de seu estado. “Os comitês que deveriam só avaliar se a pesquisa cumpre requisitos éticos no tratamento com as pessoas, com os animais, começam a extrapolar. Da última vez, para um projeto aprovado por uma agência de financiamento, com orçamento próprio, o comitê queria avaliar esse orçamento”, diz. “A pesquisa era sobre o perfil dos empreendimentos de produção de pescado do Amazonas. Precisávamos entrevistar os produtores. Submetemos o questionário ao comitê de ética e foi pedido para que detalhássemos o orçamento, que é simples, imprimir o questionário e se deslocar até os criadores e fazer as entrevistas. Qual a relação do orçamento com a ética em pesquisa?”, questiona.

Prestações de contas – “Risco Serasa”

Outro aspecto questionado por Freitas está relacionado com a prestação de contas de projetos financiados pelas agências de fomento. “As universidades brasileiras, em geral, não possuem um escritório de negócios, um setor de apoio a projetos. Isso faz com que o pesquisador se torne, também, o contador, o secretário, o office boy para viabilizar o projeto. E ele não tem, muitas vezes, preparo para isso. Além de gastar várias horas cuidando de recibo, de nota fiscal, pode acabar cometendo erros simples de formalização da prestação de contas. Aí a prestação não é aceita, e você corre o risco de ficar inadimplente com a agência de fomento, é investigado por Tribunal de Contas, podendo entrar na lista de devedores da União, mesmo tendo utilizado os recursos de forma adequada”, comenta.

Ana Carolina Luchiari também critica o que chama de "risco Serasa". “Sou coordenadora da pós-graduação. Recebo no meu CPF os valores para repassar para todos os professores. Se eu não prestar contas perfeitamente, com todas as notas, acabo no Serasa. Já fiquei devendo R$ 20 mil para o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq), que tive que ir pessoalmente me explicar. Estou devendo R$ 1 mil para a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pela prestação de contas de um evento que foi em 2015 – e, agora, me cobram alguns comprovantes. Como aprendi sofrendo, guardei essa papelada e vou justificar”, conta.

Future-se

Criado com o propósito de fortalecer a autonomia administrativa, financeira e da gestão das universidades e institutos federais, o programa Future-se, lançado no ano passado, pode contribuir para a solução de alguns entreves burocráticos na pesquisa científica brasileira.

O programa prevê o incentivo a parcerias público-privadas, à criação de meios para que departamentos de universidades arrecadem recursos próprios, a internacionalização das universidades e a aproximação entre universidades e empresas para facilitar o acesso a recursos privados de quem tiver ideias de pesquisa e desenvolvimento.

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