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Dois pesos e duas medidas: sobre a Covid-19 e a alfabetização
| Foto: Bigstock

A Medicina e a Educação são disciplinas técnicas, não disciplinas científicas. São, ou deveriam ser, aplicação de evidências encontradas em processos de pesquisa tanto quanto possível ideologicamente neutros (de fato, a ideologia é inimiga da Ciência, mas essa é outra história).

Há uma diferença importante nos resultados da má Medicina e da má Educação: a primeira mata literalmente no imediato ou no curto prazo, a segunda mata figurativamente no médio ou no longo prazo. Os resultados da má Educação por vezes só se revelam passado uma geração: maus processos de alfabetização revelam-se individualmente em 2, 3 ou 5 anos, mas coletivamente só os notamos passados 10, 15 ou 20 anos.

Mata figurativamente? Mata a inteligência, mata a criatividade e mata ou debilita fortemente a capacidade de entendimento dos contextos crescentemente complexos em que vivemos. E como sabemos que houve uma má alfabetização? Pela porcentagem de analfabetos e analfabetos funcionais em uma determinada população.

São relativamente poucos os analfabetos no Brasil, talvez 5 ou 6%, com tendência a desaparecerem devido à universalização do ensino obrigatório até ao 9º ano do Ensino Fundamental. E quanto aos analfabetos funcionais no Brasil? Quantos são os brasileiros que não têm a capacidade de ler um texto de baixa complexidade e interpretá-lo adequadamente? Segundo uma avaliação feita em 2018 (índice nacional de analfabetismo funcional), dos estudantes universitários e graduados vivendo no Brasil, apenas 34% se podem considerar funcionalmente alfabetizados. Leu bem, 66% dos estudantes universitários e graduados no Brasil têm dificuldade em interpretar textos com alguma complexidade!

Como chegamos aqui? Para o tratamento da Covid19 exigem-se, e bem, estudos, análises e pesquisas científicas para definir tratamentos efetivos para a Covid19. Tratamentos que assegurem a cura dos doentes infectados pela doença. Existe alguma vacina? Não. Existe algum tratamento 100% eficaz? Existem algumas alternativas, como a hidroxicloroquina associada à azitromicina ou a ivermectina. Consta que os russos começaram a testar um novo antiviral. Sou médico ou faço pesquisa em biomedicina para recomendar alguma terapêutica? Não, não sou. Mas estive ligado ao mais importante Centro Hospitalar português durante quase 20 anos, fazendo formação em Investigação em Saúde com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e demais profissionais de saúde. Orientei todo o tipo de pesquisa, incluindo ensaios clínicos.

Isso habilita-me a recomendar terapêuticas? Não, não habilita. Não o faço. Nunca o fiz. O que faço, então? Relativamente ao Covid19, limito-me a mostrar as estatísticas do Centro do Professor Didier Raoult, um dos médicos e pesquisadores que usa e recomenda o uso da hidroxicloroquina associada à azitromicina para o tratamento da Covid19. Por exemplo, na quinta-feira passada, de 3.316 doentes infectados tratados nesse Centro tinham morrido apenas 18. Uma taxa de mortalidade de 0,54%.

Muitos rejeitam esse tratamento porque não foram feitos ensaios clínicos com duplo cego testando essa associação de medicamentos no tratamento da Covid19. E de fato esses ensaios não foram feitos, o que é diferente de não se ter feito pesquisa. Mas fazer ensaios clínicos no meio de uma pandemia é razoável? Esperar que esses ensaios clínicos terminem para tratar os doentes infectados é razoável? Claro que não é. Tanto não é que outros medicamentos também não testados vão sendo usados: são médicos tentando salvar vidas. Mas a hidroxicloroquina pode ter efeitos severos no uso continuado, escuta-se. Parece que sim. Em alguns casos e muito raramente. Ao final de 2, 3 ou 5 anos de uso. Para o coronavírus que está aí o tratamento recomendado é de 10 dias e não 730 ou 1.000 dias. No entanto, alguns continuam a exigir cautela e mais ciência, ciência, ciência.

Porque trouxe este exemplo da Covid19 se quero falar de alfabetização, pode-se perguntar. Principalmente porque não sou médico. Não sou médico, mas sou professor e faço intervenção e pesquisa em alfabetização.

Por que vamos tão mal em alfabetização? Porque a Ciência que alguns exigem em Medicina está ausente em Educação no Brasil. Escrevi ausente, não completamente ausente. No caso, é quase a mesma coisa. O que a Ciência nos diz sobre bons processos de alfabetização? São poucos os elementos centrais aos bons processos de alfabetização: por exemplo, o desenvolvimento da consciência fonológica e da consciência fonêmica, as correspondências sistemáticas grafema-fonema e a compreensão do princípio alfabético.

O que é cada uma destas três coisas? A consciência fonólogica, que culmina na consciência fonêmica, é a capacidade de discriminar os diferentes sons nas palavras faladas; por exemplo, perceber que as palavras ‘mão’ e ‘pão’ rimam ou que as palavras ‘tatu’ e ‘teco’ não rimam, mas que começam com o som ‘t’. Isso pode-se começar a trabalhar com crianças de 2 ou 3 anos.

As correspondências grafema-fonema implicam que a criança em alfabetização perceba a associação entre o sinal gráfico ‘t’ e o som ‘t’, o que em algumas regiões do Brasil não é uma tarefa trivial pois ao grafema ‘t’ podem corresponder dois sons, o ‘t’ e o ‘tj’, em ‘tjia’, por exemplo. Algumas crianças de 3 anos conseguem desenvolver essa competência, que globalmente pode começar a ser trabalhada aos 4 anos de idade, como efetivamente ocorre em muitas escolas de Educação Infantil por esse país afora.

O princípio alfabético vai-se consolidando consoante a criança percebe que há um alfabeto, que tem uma sequência própria que deve ser respeitada, que é constituído por vogais e consoantes e que as letras do alfabeto possibilitam a produção de todas as palavras da Língua Portuguesa. Este princípio vai sendo progressivamente desenvolvido pela criança em alfabetização em um processo que decorre quase paralelamente ao do desenvolvimento das correspondências sistemáticas grafema-fonema.

A estes, e outros elementos aqui não referidos, podemos designar ‘Aprender a Ler’. O processo de alfabetização termina aqui? Não. Esse processo ainda necessita de ser consolidado até que a criança crie o seu próprio ‘vocabulário à vista’, isto é, o conjunto de palavras que ela decifra automaticamente quando lê (por exemplo: ‘de’, ‘para’, ‘cão’, ‘por’, ‘o’, ‘a’, ‘ele’, ‘ela’, ‘ver’, ‘disse’, ‘um’, ‘uma’...). Quanto mais desenvolvido é este ‘vocabulário à vista’, menos esforço mental a criança tem de fazer quando lê.

O crescimento deste vocabulário corresponde, assim, ao aumento da fluência verbal e permite que crescentemente a criança possa compreender textos cada vez mais complexos. Todo este processo se designa por literacia, cuja evolução se dá do ‘Aprender a Ler’ ao ‘Ler para Aprender’.

De fato, apesar de aqui estar a falar de alfabetização e de, inclusivamente, ter referido idades para o desenvolvimento de algumas capacidades de alfabetização, a literacia é um processo que se desenrola ao longo da vida do sujeito, iniciando-se no nascimento e terminando na sua morte: o processo é contínuo.

Isto é o que a Ciência nos diz sobre bons processos de alfabetização. E diz-nos como? Através das neurociências sabe-se que há áreas cerebrais especializadas no processamento da fala ou da leitura. Todas essas áreas se encontram no hemisfério cerebral esquerdo. Através da Psicologia sabe-se como se pode trabalhar efetivamente a consciência fonológico e fonêmica ou a correspondência sistemática grafema-fonema, desenvolvendo tarefas de discriminação de sons e associação de sons com sinais gráficos. A Psicologia também nos informa que entre 20 a 30% de crianças se encontram ‘em risco’ em processos de alfabetização mal desenvolvidos. Mais, essas ‘crianças em risco’ necessitam de acompanhamento específico e, ainda, se não forem bem alfabetizadas elas terão maior chance de fracassarem em seus estudos posteriormente.

Finalmente, a Ciência indica claramente que a única abordagem de alfabetização que respeita o funcionamento neurocognitivo do ser humano é a fônica, de modo muito resumido baseada no desenvolvimento da consciência fonológica e fonêmica e das correspondências sistemáticas grafema-fonema. Essa abordagem tem amplas evidências de que funciona porque os seus resultados asseguram a alfabetização de todas as crianças, especialmente as que mais necessitam e não prejudicando uma só delas.

E o que é geralmente feito em alfabetização no Brasil? O que é feito é baseado em narrativas sem sustentação científica, apesar da quantidade de publicações sobre alfabetização e letramento geradas por diferentes autores desde os anos 1990. Assim, a alfabetização baseada em pressupostos conceituais equivocados considera que ela deverá ocorrer em contextos de produção social da escrita. O primeiro erro em que os autores do letramento que se dedicam à alfabetização caem é considerar que fala e escrita são processos paralelos, diferentes da leitura. A diferença que consideram existir entre leitura e escrita, implica para esses autores que apender a ler não deve ter precedência em relação ao aprender a escrever. Para além disso, consideram que a aquisição da linguagem falada é um processo natural e que a aquisição da linguagem escrita também é um processo natural, não implicando necessariamente ensino explícito, direto e sistemático.

De fato, não há qualquer evidência desse paralelo entre fala e escrita. Antes pelo contrário, o acesso à escrita exige, na esmagadora maior parte dos casos, de processos formais de ensino. Além disso, entre muitos outros aspetos, devido a alguma opacidade na ortografia de Língua Portuguesa, isto é, no modo como alguns grafemas geram mais que um único som, a leitura deve preceder a escrita em termos de aprendizagem. O italiano e o espanhol são línguas com uma ortografia transparente, pois a um grafema corresponde sempre a um e apenas um só som. O português do Brasil não tem a mesma transparência ortográfica. Por exemplo, a letra ‘l’ dependendo de seu posicionamento na palavra pode ter som ‘l’ ou som ‘u’.

O segundo erro, de fato um equívoco, é considerarem que os alunos devem ter um papel ativo em seus processos de alfabetização e, por isso, desconsiderarem a necessidade de ensino explícito, direto e sistemático. Esse equívoco deverá ter origem na palavra ‘ativo’ e na equivalência a ensino direto a aluno passivo. No entanto, o aluno que está a aprender através de ensino explícito, direto e sistemático é tão passivo quanto um espetador de um filme no cinema. Ou, de outro modo, se o ensino explícito, direto e sistemático não tivesse qualquer impacto em termos de aprendizagem, porque se fazem tantas conferências, palestras e lives?

Um terceiro erro ou equívoco é consideraram que os alunos em alfabetização devem ter acesso a “textos autênticos”. O que são “textos autênticos”? São todos os textos que não são produzidos com objetivos didático-pedagógicos. Por exemplo, as cartilhas de alfabetização são por eles consideradas como “não autênticas”, pois não contêm textos de qualidade dado que foram especificamente desenvolvidas para a tarefa de alfabetizar. No entanto, milhões e milhões de brasileiros foram alfabetizados com o recurso de boas cartilhas de alfabetização. Aliás, de que servem “textos autênticos” quando o objetivo essencial nas primeiras etapas da alfabetização é ‘Aprender a Ler’ e o leitor está titubeante a fazer as suas aprendizagens. Os “textos não-autênticos” são bem preferíveis nestas primeiras etapas. Fica a pergunta: quantos dos que nos leem aprenderam a ler usando como recurso uma boa cartilha de alfabetização?

Um outro erro é desconsiderar na totalidade as evidências científicas provindas das neurociências. A Ciência relacionada à alfabetização não parou no início dos anos 1990 e os últimos 30 anos foram extremamente ricos no esclarecimento dos mecanismos neurocognitivos associados a bons processos de alfabetização.

O último equívoco que aqui quero deixar explícito é a desconsideração das abordagens fônicas como as únicas que de fato possibilitam processos efetivos de alfabetização. Os autores que abraçam o letramento abraçam outros tipos de métodos de alfabetização, principalmente o global ou métodos mistos (fônico-global em qualquer uma de suas versões). Como esses autores não têm acesso aos resultados mais recentes da pesquisa em neurociências relacionada com a alfabetização, desconhecem que o método global, com base na aprendizagem através de palavras, ou os métodos mistos colocam desafios muitas vezes intransponíveis aos alunos que estão a aprender a ler: as palavras como um todo são processadas como imagens e as imagens são processadas em áreas específicas do hemisfério cerebral direito. Direito, e não esquerdo, onde se dá o processamento da fala, da leitura e da escrita.

Quem são, então as ‘crianças em risco’ quando se usam esse tipo de métodos? Não as da classe média ou alta, cujas famílias desenvolvem as suas próprias estratégias para facilitar a aprendizagem da leitura e da escrita de suas crianças. Curiosamente, muitas delas adquirindo e usando em casa, talvez às escondidas dos professores alfabetizadores de seus filhos, boas cartilhas de alfabetização que ainda se encontram à venda. As crianças que ficam em risco são precisamente aquelas que mais poderiam beneficiar das técnicas, procedimentos e ferramentas das abordagens fônicas: as provenientes de famílias social e economicamente mais frágeis.

Assim, aquilo que é tão exigido por alguns relativamente a tratamentos da Covid19, é quase completamente negligenciado no caso da alfabetização. Eu suspeito que os ‘uns’ são os mesmos que os ‘outros’...

*Diretor de Educação da associação Docentes Pela Liberdade e professor na Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

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