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Renan Sargiani é coordenador-geral de Neurociência Cognitiva e Linguística do MEC.
Renan Sargiani é coordenador-geral de Neurociência Cognitiva e Linguística do MEC.| Foto: MEC

No Ministério da Educação (MEC), sob a liderança de Abraham Weintraub, a frase da vez é "evidências científicas". A gestão atual tem prometido basear suas políticas e programas em resultados já consolidados pela ciência. E nada além disso.

A primeira demonstração dessa promessa foi a instituição da Política Nacional de Alfabetização (PNA), lançada em abril, e cujo caderno explicativo foi divulgado pelo MEC nesta quinta-feira (15).

O documento apresenta relatórios de diversos pesquisadores que estudam de que forma o cérebro aprende e qual a melhor forma, por exemplo, de ensinar a leitura e a escrita para crianças.

Há muito tempo, o Brasil optou por não dar ouvidos ao que diz a ciência cognitiva e análises já consagradas em outros lugares ao redor do mundo. Mas a tradição de "copiar tendências não positivas" promete ter um fim, afirma Renan Sargiani, coordenador geral de Neurociência Cognitiva e Linguística da pasta de Alfabetização do MEC.

À Gazeta do Povo, ele fala sobre o assunto. Confira:

Desde o início do mandato do presidente Jair Bolsonaro (PSL), o MEC enfatiza que vai basear suas ações em evidências científicas. Quais evidências são essas, quando falamos de alfabetização?

É importante dizer, primeiramente, que o Brasil tem a tradição de copiar tendências que não são positivas.

Atualmente, temos acesso há um grande corpo de evidências de pesquisas, as ciências evoluíram muito, mas continuamos a seguir, na educação brasileira, as teorias clássicas, que não encontram mais total respaldo com as evidências mais recentes, além de importar tendências pedagógicas sem evidências suficientes que demonstrem sua eficácia.

Com relação à alfabetização, existe um grande corpo de evidências científicas, que foi consolidado nas últimas décadas, aproximadamente desde os anos 70. Desde então, temos observado um grande interesse pelo estudo científico da alfabetização, mais especificamente sobre o estudo científico da aquisição de leitura. Isso se consolidou principalmente com os avanços nas pesquisas de neurociência e psicologia cognitiva, que são duas áreas que estudam como a mente e o cérebro funcionam.

Na década de 90, chamada de a década do cérebro, quando as maiores pesquisas sobre o estudo do cérebro começaram a surgir, se consolidou também o que chamamos de ciência cognitiva da leitura, ou seja, o estudo científico da habilidade da leitura.

Esse campo de estudo foi sistematizado com a criação da Society for the Scientific Study of Reading (Sociedade para o Estudo Científico da Leitura, em tradução livre), que tem um periódico no qual publica pesquisas do mundo inteiro sobre aprendizagem da leitura e da escrita. Seus associados se encontram todos os anos para discutir as pesquisas mais recentes daquilo que são as futuras diretrizes para novas pesquisas.

Desde a década de 1990, esses avanços científicos, no caso da alfabetização, foram incorporados por diversos países que fundamentaram suas políticas públicas em evidências.

O Brasil fez uma tentativa em 2003, com um relatório da Câmara dos Deputados, que reuniu pesquisadores brasileiros e estrangeiros. O documento foi reeditado em 2007 e, em 2011, tivemos outro relatório, o da Academia Brasileira de Ciências. Todos esses documentos apresentam evidências que foram utilizadas pela PNA.

Uma boa fonte de informações sobre as evidências que pautaram nosso trabalho são esses relatórios e o National Reading Painel, publicado nos EUA, e que talvez seja a "meta-análise" mais extensiva e rigorosa em que encontramos evidências científicas sobre a aprendizagem e o ensino da leitura.

A ciência da leitura está muito avançada, temos evidências bastante vigorosas no campo da alfabetização. Nós sabemos, por exemplo, exatamente quais são os componentes mais importantes para se alfabetizar uma criança e sabemos também como são os melhores modos de se ensinar. Dessa forma, existem estratégias que são mais eficientes que outras.

Há um consenso entre os pesquisadores de quais métodos são ideais para o ensino da leitura e escrita? De que forma o método fônico, por exemplo, se sobressai em detrimento de outras abordagens?

Eu acho que a questão não deveria ser sobre os métodos, mas, sim, sobre os componentes que são essenciais para o ensino eficiente da leitura e da escrita.

Há muitos métodos e debate sobre eles, mas o que realmente importa é aquilo que cada um deles contém. As pesquisas mostram que a abordagem fônica contempla muitos dos componentes essenciais, com destaque para o mais importante que é ensinar explicitamente as relações entre letras e sons.

Dessa forma, quais componentes são importantes?

O que todos concordamos é que, para aprender a ler e escrever, existe um sistema alfabético que representa a fala no nível do fonema. É necessário aprender quais são os sons das letras. Portanto, o componente de fônica, também chamado de conhecimento fônico, ou instrução fônica sistemática, ou ainda ensino do princípio alfabético, esse componente é fundamental para qualquer alfabetização.

As pesquisas mostram que não há possibilidade de se aprender a ler e escrever em um sistema alfabético sem aprender quais são os sons das letras e como eles representam sistematicamente a fala.

Não há possibilidade porque estamos falando de como funciona o código alfabético, e, portanto, você necessariamente precisa aprender em algum nível que as letras representam os fonemas para conseguir ler e escrever usando um alfabeto.

Mas como saber quais metodologias possuem os componentes essenciais? O que há de errado com outras metodologias diferentes das fônicas?

O que acontece é que você pode aprender a ler e escrever de forma explícita ou implícita. Algumas metodologias, as construtivistas, ou globais, ensinam, sim, a fônica, ou seja, ensinam também sobre a relação entre letras e sons. Mas fazem isso de forma não sistemática e de forma implícita.

Nessas abordagens, o foco está na exposição a textos inteiros e não no ensino das relações entre letras e sons. Acredita-se que a criança precisa interagir e estar exposta a textos para passar a identificar os padrões de escrita e criar suas próprias hipóteses sobre o funcionamento da língua. O cérebro, de fato, processa padrões o tempo todo, mas as pesquisas mostram que essa maneira de ensinar é menos eficiente para a maioria das crianças que estão começando a aprender a ler.

No entanto, as chances de ela aprender assim, por um método não sistemático e não explícito, são menores. Isso vai demandar dela muito mais conhecimento de base.

Na PNA, está escrito "instrução fônica sistemática". Isso significa que, dentre os componentes que foram avaliados nas diversas pesquisas, a melhor forma de ensinar sobre a relação entre letras e sons é de forma organizada e explícita.

O que a gente sabe hoje é que existem componentes chaves que têm que estar presentes em qualquer um dos métodos utilizados, sejam eles construtivistas ou fônicos ou silábicos.

E, nessa hora, é importante reconhecer que nem todas as crianças têm conhecimento de base, certo?

Na verdade, a maioria das nossas crianças no Brasil precisa de um ensino mais explícito. As pesquisas mostram que, quanto menos uma criança tem de conhecimento de base, (linguagem oral, saber o nome das letras), mais ela depende de uma explicitação, ou seja, de ensino direto.

Infelizmente, a maioria de nossas crianças em idade pré-escolar não aprende esses conhecimentos que serão fundamentais para a alfabetização na escola - o que é feito em outros países.

Leia também: Estudo reforça evidência de que a instrução direta é mais eficaz que o construtivismo

Há pessoas que falam sobre como a abordagem construtivista funciona em escolas particulares, mas essa comparação é injusta e não faz sentido, já que muitas vezes as crianças já chegam nessas escolas praticamente alfabetizadas no primeiro ano. O que realmente importa é o conhecimento de base dessas crianças, o que diminui as exigências de que a instrução na escola seja tão explícita.

As pesquisas mostram, portanto, que independentemente da criança, do método, ou da escola, para aprender a ler e escrever sempre vai ter que se ensinar a relação entre letras e sons. E a melhor maneira para ensinar a maioria das crianças é ensinar de forma explícita e sistemática, o que será bom mesmo quando a criança tem pouco conhecimento de base.

Mas apenas as abordagens sistemáticas não dão conta da alfabetização, afirmam especialistas. Você concorda?

A Secretaria de Alfabetização tem como ponto de partida as evidências científicas. Elas mostram que a fônica é um componente essencial, e como tal não pode ser autossuficiente, mas, sim, é indispensável.

Os relatórios utilizados pela PNA mostram que há diferentes tipos de instrução fônica, sendo que a sistemática é a mais eficiente delas.

Consciência fonêmica, desenvolvimento de vocabulário, fluência em leitura, compreensão de texto. Tudo isso faz parte do que chamamos de abordagens equilibradas, balanceadas ou compreensivas. Então, efetivamente, só o componente de fônica por si não pode alfabetizar uma criança, mas também sem ele não pode ocorrer a alfabetização. A fônica é a chave desse processo.

O que há por trás da "briga de métodos"? Há grupos de interesse?

Se há interesses por trás disso, eu não saberia te dizer. Se eu conseguir te responder isso, eu acabaria com um problema de 100 anos de pesquisa. Mas posso tentar te dar alguns caminhos.

Essa é uma briga histórica, não é brasileira, aconteceu em diversos países, como os EUA, o Reino Unido, a França, a Dinamarca.

O que a gente debate entre as ciências é: o que está ajudando de fato a criança a ler e escrever? Aí a gente pode testar tanto o nível do processo e das habilidades, quanto o nível do método que está sendo utilizado.

Uma pesquisa recente chamada "Ending the Reading Wars" mostra justamente que essa briga é inócua, ficamos muito tempo discutindo. Historicamente, a gente teve diversos modos de se ensinar a ler e escrever.

Na Antiguidade se desenhavam letras no chão, na areia. No século XVIII e XIX surgem métodos mais refinados, como os fônicos e os globais, e outros mais esquecidos, mas também interessantes, como um do século XVIII, através do qual se faziam bonecos de gengibre e a criança ia comendo as letras. Como em uma brincadeira.

A invenção da escrita tem aproximadamente 7 mil anos. Nesse período todo, poucas pessoas eram privilegiadas e aprendiam a ler e escrever. Quando se expande o acesso para que todos possam aprender a ler e escrever, fica mais difícil, pois aí é preciso saber qual metodologia vai ajudar a maioria das pessoas. E, ainda, é preciso ter alternativas para aqueles que não vão aprender pela metodologia normal. Foi aí que começaram a surgir os embates maiores, principalmente nos EUA.

Por que não conseguimos alcançar uma meta prevista para 2015, para baixar o índice de analfabetos no país?

A resposta é bastante complexa, pois trata-se de uma questão multifatorial. Não dá para explicar simplesmente como a questão de método, ou de nível socioeconômico ou de gestão escola. É preciso analisar o todo, e a questão mais relevante é que continuamos, infelizmente, a produzir analfabetos em contexto escolar. Basta ver os resultados da ANA 2016, em que mais de 54% das crianças que participaram da avaliação encontram-se em níveis insuficientes de leitura e 34% em níveis insuficientes de escrita.

Durante meses analisamos esses e outros fatores e, por isso, apresentamos na PNA uma série de diretrizes buscando superar esse problema crônico no Brasil. É muito importante não apenas alfabetizar quem já passou da fase de alfabetização, como também é fundamental fechar a torneira para que não tenhamos mais analfabetos escolarizados.

Há diferentes fatores que precisam ser melhorados no Brasil. A Educação infantil precisa estar conectada com o Ensino Fundamental, as crianças precisam, sim, aprender habilidades fundamentais para a alfabetização nessa etapa. A formação de professores alfabetizadores precisa ser melhorada, há poucos componentes e disciplinas sobre a alfabetização nos cursos de pedagogia e, a maioria deles, utiliza-se de bibliografia ultrapassada. A avaliação e o monitoramento da aprendizagem de leitura e da escrita, bem como dos cursos de formação de professores, também precisam ser melhorados.

Existem várias frentes que a gente precisa lidar para que possamos melhorar o cenário do Brasil que é, no mínimo, triste. Precisamos romper com tendências pedagógicas sem evidências e buscar o que dizem os resultados de pesquisa. Nesse sentido, a PNA busca fundamentar os programas e ações do governo federal em evidências atualizadas e criar um caminho para diminuir as desigualdades educacionais.

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