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 | Maicon J. Gomes/Gazeta do Povo
| Foto: Maicon J. Gomes/Gazeta do Povo

Há poucas coisas mais funestas para a longa e tortuosa história do homem no mundo do que as inúmeras tentativas de capturar o engenho que lhe é próprio em estruturas coletivistas/estatizantes, pensadas para adestrar ou condicionar seu impulso empreendedor e o uso criativo de sua racionalidade. 

Basta um rápido olhar pelo mapa: há sempre, aqui e ali, impulso totalitário – no mais das vezes encarnado na figura de alguma entidade messiânica grotesca –, que teima em querer salvar as pessoas delas mesmas, que as vê como incapazes de compreender minimamente a dinâmica da vida social e, então, os riscos inerentes a qualquer atividade humana que implique evolução, ruptura com o status quo, aperfeiçoamento, abertura ao inesperado e às incertezas. 

É o que, utilizando vocabulário kantiano, poderíamos chamar de um desejo irrefreável de tutelar o entendimento do outro, aqui considerado massa amorfa de manobra, efeito colateral de modelos artificias de condução da vida. Certo, há manifestações deletérias de políticas estatistas para onde quer se se olhe: saúde, segurança pública, infraestrutura, transporte e tantos outros. O Exame Nacional do Ensino Médio, Enem, é, a seu turno, no âmbito da formação escolar do cidadão brasileiro, um exemplo por antonomásia de tudo o que se deve evitar quando o que está em jogo é a construção de um país minimamente respeitável, livre e não-tutelado. 

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Em primeiro lugar, estamos imersos numa realidade social complexa, irredutível a modelo de avaliação/formação que se proponha a dar conta de todo o cipoal de influências típico de um país-continente como o nosso. 

Não é preciso avançar com análise sociológica sofisticada para perceber o óbvio que grita aos quatro cantos: um exame de perfil nacional invariavelmente desembocará em composição tendenciosa, que favorece uns em detrimento de outros (estes, em geral, à margem do sistema “oficial” do estado). Parte-se de um pressuposto ingênuo de que somos (ou deveríamos ser) todos iguais. 

Logo, nada mais natural do que avaliarmos, no plano desta imaginada igualdade, nossas competências formativas concebidas em fôrma única. Um desastre completo. Fosse uma nação minúscula, marcada por forte identidade cultural, nacionalismo enraizado em tradição facilmente identificada, exame assim já não seria razoável. A idealização de uma sociedade igualitária, normatizada por intervenção humana unificadora, tal como vislumbrada no imaginário coletivista/estatista, contraria a própria natureza das coisas.

Evidente: é impossível a uma mente única ou a poder governamental instituído, compreender toda a complexidade dos processos evolutivos, ou ter uma visão sinótica do estado como peça monolítica e, logo, das condições que possibilitam o avanço das tradições morais, culturais, científicas, econômicas e políticas. A desigualdade – a diferença, a pluralidade – é, na verdade, um critério necessário para o processo evolutivo: é exatamente na competição, no desejo de superar o outro e a si mesmo, na impossibilidade de dizer o que conta ou não como coisa importante, que as regras sociais, conhecimentos e culturas são experimentados e selecionados, em virtude de seu valor para a sobrevivência humana.

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Sim, estou falando de uma espécie de “darwinismo educacional” que joga luz preciosa sobre a insensatez do pretensioso modelo de avaliação escolar aplicado pelo Governo Federal. Uma vez que o conhecimento humano sobre o mundo é, na melhor das hipóteses, limitado, incompleto e disperso, é impossível reunir todas as informações para fundamentar alguma decisão racional que pretenda normatizar percurso educacional. 

É justamente nessa impossibilidade lógica e factual que se baseia a arrogante presunção científica e o orgulho injustificado do modelo coletivista/socialista: a presunção fatal decorre da falsa crença na infalibilidade da razão humana, decorrente da falta de modéstia do burocrata em reconhecer suas limitações. Somos por demais complexos e plurais para que um exame nacional tenha qualquer sentido. 

Defendo, portanto, a tomada de decisão descentralizada como condição de realização de processo formativo adequado, segundo modelo que respeite as idiossincrasias de um país fortemente diverso como o nosso. As instituições e práticas sociais são produto da ação humana, mas não de uma configuração racionalmente estabelecida. Não é possível planejar ou projetar deliberadamente uma economia ou um modelo educacional atemporal ou universalizante porque é impossível reunir todo o conhecimento necessário, calcular todos os efeitos de nossas ações. Simples assim. 

Na seleção realizada pela vida, aqueles que se adequaram às novas tecnologias, às novas demandas, aos novos aparatos educativos permaneceram e tiveram sucesso. Um exame nacional de avaliação de competências termina por criar obstáculos à essa dinâmica, fazendo evocar, na melhor das hipóteses, humanoides estimulados a replicar conhecimento (de perfil sobremaneira duvidoso) regurgitado por máquina estatal. 

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Mas o Enem traz outro resultado deletério – agora para além de considerações “filosóficas” – que eu gostaria de registrar aqui, como alguém que já trabalhou com processos acadêmicos de seleção e, então, que viu de perto alguns de seus efeitos mais tristes e infames. 

Há um momento entre a publicação das notas e a opção por este ou aquele curso/Universidade que poderíamos vulgarmente chamar de “leilão de vagas”. O candidato, agora ciente do seu resultado, é chamado a manifestar interesse por vaga, limitado, claro, pela nota obtida. Na prática, o que acontece é simples...e explico com um exemplo. O estudante começa o “leilão de vagas” com olho, claro, naquilo que mais lhe interessa. 

Caso a nota não seja suficiente, visto que outros mais bem avaliados acabam se movendo para as vagas mais concorridas, ele começa a experimentar um vórtice de quebra de expectativa/frustração e, então, de aceitação tácita do que vier, da vaga que, meio que por acidente, cair em seu colo. Se a nota para aquele curso concorrido, em Universidade na cidade onde vive, não foi suficiente, acaba por servir um curso que sequer estava em seu horizonte formativo, em cidade muitas vezes distante dos seus. 

Resultado? Alunos desinteressados, iludidos pela ideia de ingresso a qualquer custo na vida universitária e, então, altíssimas taxas de abandono em relação aos seus pares que ingressaram em processos seletivos (vestibulares) ainda realizados em algumas poucas instituições de ensino superior. 

Como o repasse de verbas governamentais está condicionado ao número de alunos egressos da Universidade e não ao número de alunos ingressantes, o que se tem é uma enorme ociosidade de estrutura pública de ensino associada a resultados qualitativos no geral marcados por vexatória mediocridade. 

Há, portanto, ao menos em meu modesto parecer, apenas uma forma de um exame nacional funcionar no país: um modelo que passasse a cobrar conteúdo formativo básico, ancorado em currículo nacional, enxuto, que não levasse em conta senão elementos educacionais basilares considerados essenciais a um brasileiro médio (sem qualquer relação, portanto, com conteúdos regionais, culturais típicos ou locais). 

Em suma, um exame sem arestas ou tendências ideológicas, técnico e objetivo. Algo que, em contrapartida, não impedisse ou desestimulasse a ousadia e o uso livre da inteligência, não doutrinada ou condicionada, em ambiente escolar. 

Não estou inventando nada, diga-se de passagem. Há países muito evoluídos que se valem deste método e os resultados são excelentes. 

Assim, por exemplo, cobraríamos dos alunos conhecimentos matemáticos ou biológicos ou de domínio de elementos da literatura brasileira, sem submete-lo a constrangimento de fazer questão, após três anos de dura preparação para o exame, sobre a “linguagem secreta dos travestis”, apenas para citar exemplo mais recente e deplorável (a prova, de fato, em alguns momentos, está mais para exame de ingresso em partido de esquerda radical, com seus famosos temas de “lacração”, do que em instituições de ensino superior). 

Nem vou analisar aqui o fato de ser prova que envolve um batalhão de pessoas envolvidas com material sensível, com altíssimo risco de fraudes e com uma exigência insana de logística cara, complexa e, então, inviável pelos resultados que traz. 

Por fim, vejo apenas uma extraordinária vantagem no fato de se tratar de exame nacional. Quando alguma boa alma resolver acabar com ele, poderá fazê-lo de chofre, de uma só vez, em todo o território nacional. O Enem é uma experiência fadada ao fracasso. 

* Dennys Garcia Xavier é professor Associado de Filosofia Antiga, Política e Ética da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutor em Storia della Filosofia pela Università degli Studi di Macerata. Tem Pós-doutorado pela Universidade de Brasília (UnB) e Pós-doutorado pela Universidade de Coimbra.

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