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Para além das questões políticas, outras matérias importantes estão pautadas na Suprema Corte brasileira, cuja decisão pode vir, sem muito alarde, a modificar a rotina das pessoas ou, ao menos, seu olhar sobre determinados temas. Esse é o caso do ensino domiciliar também pautado naquela instância. Ao julgar e autorizar semelhante matéria, o Brasil estaria entre os países da América e do mundo com processo de desobrigação da escolarização em curso, ou seja, prescindindo da frequência à escola para a obtenção de educação formal, permitido por meio de seus juristas. 

Mas o que vem a ser a autorização do ensino domiciliar? Sem entrar no mérito da legitimidade do pleito, o fato é que o ensino domiciliar existe e está sendo praticado por diversas famílias nesse extenso país, em todas as regiões, e o que fazer com elas é algo que as instâncias judiciárias locais têm tido dificuldade de equacionar, tomando como parâmetro apenas a letra fria da legislação vigente e a pressão sofrida pelos Conselhos Tutelares. 

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Assim como tantas outras matérias polêmicas, o Judiciário se vê diante de ter que tomar uma posição frente a mais um assunto que, apartado do Legislativo, onde seria o lócus privilegiado de sua análise, recai sobre a mesa de um membro do Supremo Tribunal Federal, mais precisamente do Ministro Luís Roberto Barroso, relator da matéria, que terá que decidir sobre a “disputa” que envolve não apenas a temática específica, mas toda uma cultura solidificada. 

Ao invés de ser tratada no âmbito do Parlamento, com os representantes do povo que ali, supostamente, deveriam estar identificados com toda a sociedade e suas demandas, no gabinete onde a decisão será tomada encontra-se um magistrado que precisará debruçar-se diante de um tema multifacetado, cuja conclusão demanda aguçado e extenso estudo, precipuamente por se tratar de matéria afeta a outro ramo do saber, o que redobra o grau de responsabilidade, inclusive no que concerne aos seus impactos e ressonâncias na sociedade. Outros assuntos complexos tomaram o mesmo caminho, alguns com o próprio Ministro Luiz Roberto Barroso, e que também aguardam a sua decisão. 

O que podemos dizer sobre esse tema específico do ensino domiciliar? A lei é para todos, quando aplicada não poderá ser discriminatória atendendo a esse ou àquele e sua abrangência dar-se-á independentemente de quem quer que queira usufruir daquilo que ela irá disciplinar, face ao seu caráter imperativo. 

Ao autorizar o ensino domiciliar, a Suprema Corte brasileira estará permitindo que todo pai ou mãe, uma vez que considere que tem condições para manter seus filhos em casa e fazer a sua educação formal no próprio ambiente domiciliar, assim aja de acordo com aquilo que a legislação estabelecer. 

Mas, será essa a nossa perspectiva para a educação do século XXI? Será esse o projeto de República que foi pensado desde o século XIX e consolidado no século XX com tanto empenho na escolarização? Os tempos são outros e o mundo é outro. A revolução científico-tecnológica que estamos vivendo mudou completamente as relações entre as pessoas, entre as redes de sociabilidade e de trabalho, as formas de comunicação, etc. 

Não obstante, a escola permanece tendo um papel essencial, que vai muito além do que se convencionou como socialização, a escola é uma instituição, que junto a outras, poucas, constitui a fundamentação basilar para que as famílias estabeleçam um ritual, no qual, em determinado momento, cada vez mais cedo, os filhos são enviados para a sua formação, conforme as expectativas elencadas no texto da lei educacional vigente. 

No entanto, essa mesma escola, quando perdeu a exclusividade dos limites físicos daquilo que somente ela poderia oferecer, lançou a perspectiva, entendida de imediato por alguns, de que haveria outra modalidade de se propiciar a educação formal das crianças para além daquela instituição, até então unicamente existente para esse fim.

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Ao ter que analisar processos desta natureza, deflagrados por famílias que lutam pela legalidade de tal prática, o problema não se restringe à autorização específica prolatada nos pontuais casos concretos, mas, face ao caráter, tão conhecido pelos operadores do Direito, “erga omnes”, do efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal em ações com repercussão geral reconhecida, como é o caso deste Recurso Extraordinário que está sob análise no STF, possibilitando a todas as famílias agirem da mesma forma. 

Daí surge a reflexão: o quanto estamos preparados para conviver com essa “nova” modalidade do ensino domiciliar? Que critérios serão constituídos a fim de garantir um nível aceitável de qualidade socialmente referenciada em tal modalidade educacional? Como assegurar que esses critérios sejam observados pelos diferentes estratos sociais da população? Respostas? Ainda não as temos. 

Nos países onde o ensino domiciliar é admitido, o que se vê é um baixo número de crianças sendo educadas em casa, nessa modalidade, mas elas existem e os números crescem, de uma forma não veloz, entretanto, já evidenciando o início de um processo de desescolarização, no sentido da não obrigatoriedade da escola. 

Ainda assim, em nenhum país a permissão se mostrou estatisticamente relevante em relação à educação escolar, muito pelo contrário, os números são incomparáveis entre a escolarização e aqueles que estão fora dela em ensino domiciliar. 

É claro que, majoritariamente, as famílias não vão dispor da escola e das possibilidades de interações que ela oferece, e mesmo com todas as possibilidades domiciliares regulamentadas, ela permanecerá sendo considerada como o melhor lugar para a educação dos filhos. Por outro lado, as famílias que já praticam o ensino domiciliar, ao terem seu pleito atendido, finalmente estarão libertas dos processos judiciais movidos pela infrequência à escola. 

Contudo, o que preocupa não são esses dois grupos, nem os adeptos da escolarização, para os quais nada mudará com a “nova regulamentação”, nem os adeptos do ensino domiciliar que continuarão fazendo a modalidade de educação que já escolheram; mas sim aqueles que, na lacuna do entendimento entre uma opção e outra, possam, na desobrigação da escola, tentar uma experiência educativa com os filhos, sem que essa tenha sido buscada, planejada ou mesmo aspirada de maneira responsável, como fazem os que, hoje, lutam firmemente por essa legalização. 

A toda evidência, verifica-se que a apreciação e normatização desse tema é tarefa extremamente delicada, assim como tantos outros que estão no Supremo Tribunal Federal aguardando decisão. Todavia, não poderão adormecer por lá enquanto o mundo caminha a passos largos, encarregando-se de concretizar práticas que a lei, por vezes, quando se atenta para elas, já estão consolidadas. 

A maior preocupação, entre as inúmeras que cercam essa questão, deve ser a de que não haja experiências com crianças que possam vir a estar fora da escola, apenas abrigadas por uma lei e não porque essa foi uma escolha pensada, discutida e amplamente desejada por seus pais. 

Talvez, essa seja a maior dificuldade: encontrar critérios, medidas e a forma do quanto, quem e como pode ser o ensino domiciliar. Porém, é preciso uma decisão, ainda que essa seja a da não permissão, ou da possibilidade somente da análise caso a caso, para que, mediante uma argumentação, demonstrando viabilidade e com garantias de responsabilização dos pais, possam se encontrar caminhos para atender a situações passíveis de êxito. Fato é que quando se estabelece algo amplo e irrestrito com oportunidade de ser usufruído por todos, é preciso pensar o que todos poderão fazer com essa liberdade, sem prejuízo para as crianças e jovens. 

* Professora do programa de pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), vice-presidente do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro e Presidente da Câmara de Educação Superior - CEE/RJ. Pesquisadora de educação familiar, tendo entrevistado famílias de homeschooling no Brasil e em Portugal.

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