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Falta de liberdade de expressão em universidades se tornou preocupação de intelectuais brasileiros.| Foto: Paulo Pinto/Agência PT

A liberdade de expressão está sob ataque nas universidades. Por um lado, há uma inquietação crescente quanto à dificuldade de se discutir ideias que fujam do consenso dominante, sobretudo na área de humanidades, em que a cultura do cancelamento fica cada vez mais implacável. Por outro, o negacionismo científico e o anti-intelectualismo buscam esvaziar a legitimidade do discurso acadêmico. Não por acaso, o problema da liberdade de expressão acadêmica tem ganhado foco nas últimas semanas.

Um manifesto de intelectuais e artistas de diversos países pela liberdade de expressão e contra a cultura do cancelamento foi publicado pela revista norte-americana Harper’s no começo de julho e ganhou repercussão mundial nas últimas semanas. O documento inspirou versões em alguns países.

Na Espanha, uma carta no mesmo estilo contou com a assinatura de intelectuais como o escritor peruano Mario Vargas Llosa. No Brasil, no começo de agosto, intelectuais, cientistas e acadêmicos assinaram um manifesto pela liberdade de expressão nas universidades.

“No caso da universidade, é preciso que ela seja o palco do diálogo, o campo da livre manifestação de ideias e atue com a sabedoria restauradora das possíveis fraturas existentes”, diz a carta brasileira. Os autores defendem que a busca da verdade “seja um valor que possa ser defendido e exercido por todos os componentes da academia, sem cerceamentos, sem medos nem receios diante das mais variadas opiniões, mesmo que sejam opostas ou contrárias a certas concepções dominantes”.

Na semana passada, de 19 a 21 de agosto, a Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas) promoveu um congresso sobre liberdade de expressão acadêmica. "Estamos muito preocupados com o cerceamento que vem ocorrendo quanto à liberdade de nossa expressão sobre a família, entre outros temas relevantes, nas academias de Direito do Brasil e de outros países", afirmou à Gazeta do Povo Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Adfas.

Consensos estabelecidos barram a liberdade de expressão

Um dos signatários do manifesto de intelectuais brasileiros pela liberdade de expressão é André Magnelli, fundador do Ateliê de Humanidades e doutor em sociologia pelo IESP-UERJ. Para ele, há “uma expectativa de que as pessoas se adaptem ao senso comum acadêmico estabelecido, sobretudo na área de humanas”, o que prejudica o trabalho intelectual, e o manifesto tenta apontar isso.

“O ofício do intelectual, do acadêmico, do trabalho próprio de uma universidade, é de compromisso com a verdade, com uma concepção universal de conhecimento, de debate, de análise, de crítica, de reflexão normativa… Diversos compromissos do intelectual e do acadêmico acabam sendo tosados por certos consensos estabelecidos no ambiente acadêmico”, diz.

Victor Sales Pinheiro, doutor em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), tem estudado o tema da liberdade de expressão e já sofreu ele próprio o ataque de um desses consensos estabelecidos.

Em 2018, a dissertação de uma orientanda sua, Dienny Riker, foi alvo de um movimento estudantil e de comunidades LGBT quando a defesa da tese já tinha data marcada. O grupo tentou evitar que a defesa acontecesse. O trabalho abordava o casamento segundo a teoria da lei natural do filósofo John Finnis, professor emérito de Oxford.

“Foi uma tentativa de censura prévia de um trabalho inédito, que não tinha sequer sido publicado. Ou seja, tentaram silenciar a minha orientanda sem ter lido o que ela escreveu, num ato de desonestidade intelectual patente. Como é notório que John Finnis defende o casamento conjugal, fundamento da família reprodutiva, tentou-se impedi-la de concluir a sua pesquisa de filosofia do direito”, explica Pinheiro.

“Houve manifestações e ameaças contra ela e contra mim, antes, durante e depois do processo, mas não passou disso. O direito dela de liberdade acadêmica prevaleceu, sem que ela precisasse acionar o Poder Judiciário. Hoje ela é mestre e doutoranda no mesmo programa, ainda sob a minha orientação”, afirma.

Ele considera que o efeito do episódio foi “muito positivo”, porque o fato ganhou repercussão nacional, e o trabalho acabou ganhando mais notoriedade. Para Pinheiro, é comum na academia, hoje, que se taxem ideias divergentes de ideológicas e anticientíficas, e há uma censura prévia em relação a certos autores, teses ou opiniões que fogem do consenso.

“A pesquisa acadêmica sempre se baseia em certas premissas consideradas consensuais na comunidade científica. Quando esses pressupostos são abalados, no contexto do pluralismo epistemológico, os pesquisadores passam a desconfiar que o trabalho dos outros não é mais ‘científico’, mas ideológico”, diz.

Falta de liberdade na academia atinge até pesquisa sobre a liberdade de expressão acadêmica

Pedro Damazio, graduado em Comunicação Social e mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, tem a liberdade de expressão acadêmica como foco de suas pesquisas atuais. Segundo ele, trata-se de “uma área de pesquisa totalmente nova no Brasil em termos acadêmicos”.

“Tudo o que a gente tem aqui no Brasil, infelizmente, são relatos isolados, anedotas. O que a gente sabe é que existe um problema de liberdade de expressão na academia. Tem muita gente que reclama disso. Agora, qual é a escala do problema, qual é o tamanho, quais são as causas, as soluções possíveis? Tem muita pesquisa para ser feita”, diz.

Para ele, um dos motivos dessa carência pode ser o fato de que o tema não é bem-vindo nas universidades. “Por que esse é um assunto tão pouco explorado, se é um assunto de que todo o mundo fala? Fui descobrindo que, de fato, esse é um dos assuntos proibidos da academia. Já tive a experiência de tentar organizar uma palestra sobre esse assunto – e, para isso, eu precisava do apoio de algum professor titular da universidade – e os professores se recusarem a dar apoio porque não queriam ser associados a esse tipo de pesquisa, porque poderia dar a impressão de que a academia é ideologicamente dominada por um viés político.”

A falta de liberdade para se investigar qualquer tema, sem constrangimentos por parte da universidade, foi uma das coisas que despertou o interesse de Damazio nesse campo de pesquisa. “Como pode um ambiente cuja função principal é discutir ideias e, através dessa discussão, produzir conhecimento e fornecer um espaço para o embate de teorias, para ver quais são as mais válidas… Como pode esse ambiente não estar proporcionando isso? Não seria justamente esse o ambiente para se fazer isso?”, questiona.

A liberdade de expressão é “de direita”?

Nos departamentos de humanidades de algumas universidades, professores têm torcido o nariz para o tema da liberdade de expressão, justamente porque ele está cada vez mais vinculado a posições consideradas “de direita”. Do ponto de vista histórico, a guinada é surpreendente.

“É curioso que certa esquerda que na tradição da luta contra ditaduras colocou-se como uma porta-voz das liberdades, inclusive a de expressão, hoje em dia se deslocou, por vários fatores”, diz André Magnelli.

Para Damazio, a etiqueta “de direita” que foi colocada no tema da liberdade de expressão levanta “uma barreira imensa para a discussão, porque você já é associado a um campo político”. “É muito sensível introduzir esse tópico”, diz.

Essa crescente falta de interesse de setores progressistas pela liberdade de expressão, segundo ele, pode ser prejudicial para os próprios progressistas, que não passarão por aquilo que o psicólogo norte-americano Jonathan Haidt chama de "desconfirmação institucionalizada” – isto é, a prova de fogo da opinião contrária, que permite entender melhor o outro lado e aperfeiçoar os argumentos para superá-lo.

“Toda vez que você avança uma ideia na academia, é obrigação dos seus pares procurar as falhas, os equívocos, as simplificações dessa ideia. Só isso vai forçar você a construir o argumento mais forte possível para a sua ideia. Se você não tem isso, se não tem contestações a suas ideias, o risco é não ter mais controle de qualidade em relação às ideias que surgem”, diz Damazio.

O processo da desconfirmação institucionalizada, segundo ele, passa por admitir nas universidades até mesmo a discussão de ideias consideradas repugnantes. “Se você não permite que ideias terríveis, absurdas, completamente equivocadas, se expressem da maneira mais coerente, eloquente, logicamente construída possível, se você não permite que essas ideias se construam, como você vai saber refutar essas ideias mais tarde? A academia oferece um ambiente seguro para discutir ideias antes de elas saírem por aí no mundo.”

“Autoritarismo da subjetividade” e “narcisismo de massas” comprometem liberdade acadêmica, diz pesquisador

Para Magnelli, a privação da liberdade de expressão nas universidades “é um problema pré-redes sociais, mas que na cultura das redes sociais, de cancelamento, de rotulação, de identitarismo – tanto de esquerda quanto de direita – se torna ainda mais agudo”.

Esses novos fenômenos acabam facilitando, segundo o sociólogo, uma autocensura gerada pela “tirania da opinião pública” – certas visões de mundo não podem mais sair do âmbito privado.

Ele pondera, contudo, que há também o risco de transformar a liberdade de expressão em um valor absoluto.

“Liberdade de expressão não é falar o que dá na telha, dizer o que se quer. Você pode fazer isso emitindo uma opinião privada, mas, num ambiente acadêmico, existe o compromisso com o saber, com a formação. Senão, abre-se campo para negacionismos, anti-intelectualismos, irracionalismos e tudo mais”, diz.

“É evidente que, quando eu falo isso, estou pensando muito em certos tipos de movimentos de extrema-direita no Brasil e no mundo que têm características negacionistas, e isso é um perigo para a democracia e os valores civilizacionais. Isso pode ser feito por qualquer linha ideológica como uma forma de destruir valores, mesmo que se fale em nome de valores conservadores”, acrescenta Magnelli.

Para lutar por uma liberdade de expressão autêntica nas universidades, é necessário, segundo ele, compartilhar o compromisso com a verdade, com a busca de entender o mundo e com os valores normativos comuns do ambiente acadêmico. “A defesa da liberdade de expressão tem que vir junto com uma defesa do trabalho da cultura, do trabalho do saber”, afirma o pesquisador.

Ele reconhece que “existe uma crise efetiva da vida universitária” e que “a universidade foi desconstruída, nos últimos 20, 30 anos, por uma série de problemas que fez com que a própria ideia de universidade tenha ido, em parte, para o espaço”. Afirma, no entanto, que “muitas das pessoas que estão criticando o mundo universitário estão expressando apenas a sua profunda ignorância sobre as universidades” e “vomitando preconceitos”. “Isso às vezes é marcado muito grandemente por uma cultura de ressentimento muito forte”, observa.

Uma solução autêntica para o problema da liberdade de expressão acadêmica, segundo Magnelli, também passa por “ter o princípio de caridade de tentar entender o que a outra pessoa está falando e não somente querer eliminá-la, ou combatê-la, ou tomá-la como inimiga”.

O professor enxerga, nas últimas décadas, um foco em modelos de educação que servem para “formar pessoas para que sejam meras trabalhadoras voltadas para o mundo útil” ou “pessoas simplesmente voltadas para seus próprios interesses”. “Vivemos um narcisismo de massas, uma concepção de ‘a cada um a sua verdade, a cada um a sua moral’. A sociedade perde uma consistência própria. É uma falta de educação para ideais de sociedade que construam pontos de vista comuns”, afirma.

Esse “autoritarismo da subjetividade”, como define Magnelli, limita o espaço para a liberdade de expressão nas universidades, já que a luta por fazer prevalecer as próprias opiniões fica acima da busca autêntica do saber.

“Tem que se repensar a educação, no sentido amplo do termo. Não é somente a escola. Tem que se repensar a cultura. O que é se tornar um ser humano cidadão em uma sociedade complexa como a nossa? É possível organizar uma sociedade baseada em indivíduos autorreferentes, baseados em si mesmos e na busca de maximizar seus resultados, sua felicidade, que ficam na expectativa de que os outros lhes deem o reconhecimento devido? Não dá para construir uma sociedade com base somente nisso”, observa o professor.

“De um lado, faltam ideais transcendentais, de transcendência do indivíduo em relação a si mesmo e, de outro lado, é necessário que se tenha uma concepção mais científica das coisas, de apreço pela experimentação e pela curiosidade científica. Essas questões são importantes para sair dessa cultura de que a gente está falando aqui, em que avança o anti-intelectualismo, avançam o mero combate e a mentalidade autoritária.”

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