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Como a pesquisa em Ciências Humanas pode gerar mais impacto para o Brasil?
Áreas de Humanidades passam por aumento de aportes, mas precisam dialogar com os interesses da população comum, dizem pesquisadores| Foto: Pixabay

O investimento de recursos públicos para pesquisa científica nas áreas categorizados como Ciências Humanas – a exemplo de Filosofia, Artes, Sociologia, História, Educação, Literatura e Comunicação – vive uma “crise de legitimidade” perante parte da opinião pública.

De um lado, nota-se a importância dessas áreas de conhecimento e sua indiscutível contribuição para a compreensão do mundo e do funcionamento da sociedade; o entendimento das organizações e expressões políticas e o desenvolvimento das ideias de democracia, liberdade e justiça; a comunicação social e as várias formas de expressão; e a transmissão do conhecimento humano por meio do desenvolvimento dos métodos de ensino, por exemplo. Na outra ponta, entretanto, há uma preocupação legítima do “cidadão comum”, que não tem visto os recursos públicos alocados nas áreas de Humanidades trazerem soluções aos problemas da sociedade.

“O debate sobre quais são os retornos reais que a pesquisa científica em Humanidades traz para a população não é uma exclusividade do Brasil – é um fenômeno detectado em vários países e há uma literatura específica a respeito. A impressão que se tem é que enquanto a sociedade foi para um lado, a universidade foi para o outro. Existe um descompasso entre as Ciências Humanas e a sociedade em geral”, aponta um pesquisador e professor universitário de História ouvido pela reportagem, que preferiu permanecer no anonimato por medo de ser perseguido.

Essa preocupação mais acentuada com o retorno do investimento nas áreas de Humanidades pode se agravar em momentos de instabilidade econômica, mas também em períodos em que o aporte de recursos públicos nos saberes humanísticos passa por aumentos mais acentuados.

No Brasil, o Ministério da Educação (MEC) é um dos fomentadores de recursos públicos em pesquisa científica ao lado do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Como mostrado pela Gazeta do Povo, o investimento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), agência vinculada ao MEC, na área de Ciências Humanas tem aumentado nos últimos anos – em 2020 a área foi a que teve o maior orçamento dentre todas, com valores próximos a R$ 400 milhões.

Modelo adotado por cursos de Humanas se esgotou, aponta pesquisador

De acordo com o professor de História, os cursos de Ciências Humanas, sob o pretexto de tornar os alunos mais conscientes socialmente e por abarcarem extensamente em demandas identitárias ligadas a movimentos sociais e a minorias, acabam dando poucos mecanismos para os alunos evoluírem socialmente. O reflexo disso, segundo ele, é que as pesquisas científicas na área se tornaram inviáveis.

“Quando o aluno sai da bolha universitária e vai para fora descobre que a sociedade não tem interesse naquilo que ele está falando. Esses temas recebem muito financiamento, além de terem ampla aceitação do meio acadêmico. Mas esse interesse está descolado do interesse da sociedade, só diz respeito àquela bolha”, declara.

O pesquisador explica que esse direcionamento dentro dos cursos de Humanidades teve início nos anos 50, período em que a área passou a focar em aspectos do multiculturalismo e a ensinar aos alunos que todas as manifestações culturais teriam o mesmo valor, independentemente do seu conteúdo - o infanticídio nas culturas dos índios, por exemplo, teria de ser respeitado. “A direção do pós-guerra para as Ciências Humanas é o relativismo cultural e uma grande valorização das outras culturas. E aí se evoluiu rapidamente para um processo de culpabilização: não basta valorizar a cultura do outro, é preciso culpabilizar quem oprimiu a cultura do outro. Isso vem crescendo na área de década pra década, e as duas últimas gerações já nasceram dentro dessa perspectiva”.

O professor afirma que esse direcionamento focado no multiculturalismo foi importante em um primeiro momento, sobretudo nas décadas de 70 e 80, mas o modelo se esgotou e, junto dele, passou a haver um esgotamento do impacto das Ciências Humanas, que se tornaram porta-vozes dessa perspectiva de mundo.

Baixo alcance de pesquisas em Ciências Humanas e ideologização política reduzem impacto científico

Pedro Caldeira, professor na Universidade Federal do Triângulo Mineiro, pesquisador de áreas como tecnologia educacional, alfabetização e literacia e diretor do Núcleo de Educação do grupo Docentes Pela Liberdade (DPL), explica que são poucas as pesquisas nas Ciências Humanas com impacto científico internacional. Um estudo tem impacto científico quando é publicado em revistas acadêmicas renomadas e citado com frequência em pesquisas de alto nível, pelo fato de seu conteúdo ajudar a compreender fenômenos ou trazer soluções para problemas concretos.

“Há basicamente dois tipos de critérios para se perceber se a pesquisa científica gera ou não retorno para um país: o quantitativo, isto é, a quantidade de publicações em revistas científicas, e o qualitativo, ou seja, o impacto da pesquisa feita no país segundo um ou outro indicador estabelecido internacionalmente. No Brasil publica-se muito, mas esse indicador de quantidade é enganador, uma vez que o que é publicado fica em repositórios em geral nacionais e que não são lidos ou mesmo referenciados por pesquisadores nacionais ou de outros países”, aponta Caldeira.

“Daí a necessidade de se analisar o retorno da pesquisa nacional em termos de impacto: a qualidade da produção nas Ciências Humanas é, em geral, tão baixa que na comparação com outros países com níveis elevados de produção científica, o Brasil ocupa as últimas posições”.

Caldeira afirma que pesquisas produzidas no Brasil relacionadas às Ciências Humanas muitas vezes não se configuram, de fato, como científicas. “Encaixa-se mais em um conceito como ‘narrativa típica da pós-verdade’ ou é pura ‘ideologia aplicada’”.

Para exemplificar, o pesquisador cita como a alfabetização é encarada como objeto da pesquisa científica no Brasil e nos países desenvolvidos. Segundo ele, entre 20 e 30 anos atrás, países como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e França tinham problemas em termos de alfabetização muito semelhantes aos do Brasil. “O que fez o Brasil: apesar de ter acesso à pesquisa nessa área tão boa como em qualquer outro país, os ‘especialistas’ e decisores políticos decidiram enveredar por um caminho baseado em narrativas e não em evidências científicas. Como resultado, não apenas não conseguiram resolver o problema como o agravaram. O que fizeram outros países: constituíram comissões de especialistas que procuraram por evidências, que curiosamente passaram sempre pelo mesmo tipo de soluções, e que tinham em consideração como o cérebro humano processa a leitura”, observa.

O professor de História endossa a visão de Pedro Caldeira e aponta que a orientação acadêmica sob o foco das demandas sociais e da ideologização política prejudica não somente a pesquisa, mas também as perspectivas de inserção no mercado de trabalho por parte dos alunos, o que implica diretamente na redução das desigualdades sociais.

Segundo ele, há uma virada que precisa ser dada dentro das universidades, mais especificamente nas áreas de Humanidades, que é fundamental para que os alunos tenham perspectivas de inserção social quando saírem das universidades, além de potencializar a função das pesquisas.

“Não podemos sistematicamente formar alunos que odeiam o capitalismo. Tenho uma aluna de doutorado que tem um canal de vídeos sobre Gastronomia e História, outra que trabalha com moda aliada à História. Tentamos criar possibilidades, mas para criá-las de fato, a universidade tem que parar de ‘satanizar’ o capitalismo, senão não consigo colocar para meus alunos que desde cedo eles precisam saber como vão fazer funcionar o conhecimento que estão tendo dentro da universidade. E isso tem a ver com combater a desigualdade”, declara.

Desconexão entre universidade e necessidades populares

O professor e pesquisador Guilherme Wood afirma que o impacto gerado pelas Ciências Humanas está diretamente ligado à forma como cada país se organiza quanto à produção científica em suas universidades. O pesquisador, que atualmente reside na Áustria, diz que no Brasil, mesmo nas áreas de Ciências Exatas e Biológicas, é muito mais difícil que os resultados de pesquisas se revertam de forma prática para a sociedade.

“A Áustria, sem a dinâmica de translação de conhecimento básico de pesquisas aplicadas e desenvolvimento tecnológico e de transformação desse conhecimento e desenvolvimento em produtos concretos, estaria perdida há muito tempo. Não só a Áustria, mas a Europa em geral. Os países mais desenvolvidos usam melhor seu capital intelectual, que é revertido em inovação tecnológica”.

Wood aponta que nas universidades brasileiras a prestação de contas costuma ser feita apenas à sociedade civil organizada, que são partidos políticos, ONGs e outras formas de organização formal minoritárias, que possuem interesses que divergem muito dos interesses populares. Segundo ele, isso ocasiona uma desconexão com as necessidades amplas e não há mecanismos para gerar uma prestação de contas de acordo com os interesses populares.

Caminhos para a pesquisa científica em Ciências Humanas no Brasil

Na avaliação de Caldeira, há quatro possíveis caminhos para que a pesquisa científica nas áreas de Ciências Humanas gerem mais impacto, contribuam mais para o desenvolvimento do país e proporcionem maior retorno para os recursos públicos aplicados: a) a definição de áreas prioritárias de investimento; b) a identificação de problemas que pertencem claramente ao objeto dessas Ciências e a correspondente abertura de editais para a submissão de projetos que visem a resolução desses problemas; c) alteração dos critérios de avaliação de programas de pós-graduação e de pesquisadores; d) uso de métricas internacionais que comprovaram ter boas capacidades na avaliação da qualidade da pesquisa produzida.

“A concepção de uma solução para o problema da avaliação da pesquisa e dos pesquisadores não se revelou até hoje adequada. Assim, passar a usar essas métricas internacionais é uma alternativa. Essa foi a direção seguida por muitos países quando quiseram elevar o impacto e a relevância da pesquisa neles produzida. Se outros conseguiram, por que nós não?”, avalia.

Por outro lado, Wood aponta que a auditabilidade, isto é, a verificação da responsabilidade dos agentes dentro das universidades, é imprescindível para que as Ciências Humanas tenham maior valor prático.

“Quando a universidade está encapsulada em si mesma e vive em um mundo à parte sem prestar contas a ninguém, o produto do trabalho realizado dentro da instituição não vai ter qualquer impacto na sociedade. Pode ser que seja completamente irrelevante porque está desconectado do resto da vida social”, afirma.

Já o professor de História cita que os cursos de Ciências Humanas como um todo precisam ser repensados para formar pessoas atentas aos interesses concretos da sociedade, e isso impactará diretamente na melhoria da pesquisa científica da área. Ele explica que, ao contrário do que se observa atualmente na Capes, por exemplo, os recursos precisam ser melhor aplicados e isso, inevitavelmente, passa pela redução do investimento na área.

“É possível melhorar o grau de qualidade dos cursos de Humanas, mas para isso é preciso mostrar serviço e atender melhor os interesses sociais", diz. O pesquisador defende que a saída inevitável para a readequação da área não é o aumento de aportes, e sim a redução, para utilizar melhor os recursos públicos a partir de um plano prévio.

“Mas o que vemos é que o investimento em bolsas de pesquisa de Humanidades está aumentando. Isso significa falta de planejamento. Não planejamos nossas pós-graduações a partir de um cenário de empregabilidade. Nunca ninguém quis falar nisso. Era certo que as pessoas teriam um emprego público ou encontrariam emprego em ONGs. Agora a realidade é diferente. Temos que fazer um planejamento de médio e longo prazo se quisermos fazer ciências de qualidade. Não adianta só injetar dinheiro – se não se sabe para que formamos e pesquisamos, não sabemos como formar e pesquisar”, destaca.

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