As instituições públicas de ensino superior são um patrimônio importante do Brasil. Cerca de 95% das pesquisas acadêmicas do país são produzidas nessas instituições. Apesar de terem mais alunos, as faculdades e universidades privadas priorizam, de forma geral, o ensino em vez da produção científica. E não se trata apenas de números: dentro das instituições públicas, há muitos exemplos de pesquisas de qualidade – e não somente em cursos como Engenharia e Biologia. A Filosofia, por exemplo, é parte essencial de qualquer projeto universitário porque, de certa forma, todas as demais disciplinas surgiram dela. Sem ela, o próprio método científico não teria valor. Disciplinas como a Antropologia e a Ciência Política também são essenciais para a sociedade. A Medicina, por exemplo, jamais será capaz de responder sozinha sobre a moralidade de certos procedimentos, como a clonagem humana. Menosprezar a importância das ciências humanas e sociais é ignorar as raízes do ensino superior. Além disso, também é fato que, apesar de custeada com recursos públicos, a universidade também precisa de um certo grau de autonomia em relação ao governo e à opinião pública para exercer sua função adequadamente.
Feitas todas as ressalvas, é preciso reconhecer que, como único financiador das universidades públicas brasileiras, o contribuinte tem o direito de conhecer de perto o que tem sido produzido nessas instituições de ensino. Como as verbas são escassas, os gestores precisam fazer escolhas deliberadas sobre os temas que devem ser priorizados enquanto outros são deixados de lado. Por isso, a Gazeta do Povo avaliou parte da nova safra de dissertações de mestrado e teses de doutorado apresentadas em 2020 e 2021 em instituições públicas ou financiadas com recursos públicos.
Na lista, apesar de muitos trabalhos meritórios, chama a atenção o número considerável de projetos com temas de relevância questionável, com forte teor político-ideológico. E a politização vai além dos cursos naturalmente mais politizados: a lista inclui uma dissertação de mestrado em Administração a respeito das questões de gênero em um baile funk e uma tese de doutorado em Educação Física sobre as consequências do neoliberalismo.
Veja abaixo oito trabalhos acadêmicos, de conteúdo bastante questionável, pagos com o dinheiro público:
Resumo: Baseado em entrevistas, esse trabalho analisa as táticas dos usuários de aplicativos de “pegação” gay.
Trecho: “Construímos uma discussão que possibilita pensar no imperativo da performance masculina normativa quanto ao corpo e ao nível relacional, bem como aos conflitos pessoais em face dos pressupostos sociais sobre masculinidades nas práticas de pegação.”
Curso: Mestrado em Psicologia na Universidade Federal de Pernambuco
O que diz o autor: Não respondeu ao contato da Gazeta.
Resumo: Nas palavras da autora: “Esta pesquisa teve como intuito responder ao seguinte problema: como se manifestam o gênero e as subjetividades negras periféricas no organizar de um baile funk na cidade de Belo Horizonte?”
Trecho: “Diante de uma matriz heteropatriarcal que busca cercear corpos a partir de processos distintos de normalização, a partir da heteronormatividade, busca-se também ditar verdades sobre os corpos funkeiros. Essas questionam moralmente as masculinidades ou feminilidades produzidas no contexto do funk, mas que não podem ser captadas por um olhar heteronormativo, colonizador, racista, classista e patriarcal.”
Curso: Mestrado em Administração de Empresas, Universidade Federal de Minas Gerais
O que diz a autora (Danielly Mendes dos Santos): “Pesquisar temas ditos ‘politizados’ incomoda, pois tensiona a sociedade a olhar para seus problemas mais enraizados. Manter a estrutura como está é extremamente benéfico aos que estão no poder. As críticas superficiais revelam o quanto a sociedade desconhece o papel da Universidade Pública, ou finge não conhecer. Ao considerar um tema mais ‘digno’ do que o outro, os sujeitos portadores desse discurso, além de estarem sendo preconceituosos, utilizam da retórica do bom gosto para afirmar o que entendem como ciência ou não. A Universidade serve a sociedade, mas não está a seu serviço.”
Resumo: O autor faz longas digressões sobre conspirações “neoliberais” internacionais em uma tese que deveria tratar de Educação Física. No papel, o objetivo é investigar como a gestão “neoliberal” da Prefeitura de Porto Alegre afetou o ensino da Educação Física nas escolas públicas.
Trecho: “A eleição do governo Marchezan, gestão 2017-2020, em Porto Alegre, foi um reflexo de uma grande onda neoliberal arquitetada pela direita e pela ultradireita política mundial. Esse processo, no Brasil, teve início em junho de 2013, com grandes manifestações populares nas ruas das principais cidades brasileiras; cresceu muito em 2014, após os resultados da eleição presidencial; e culminou em 2016, com o processo de impeachment (golpe de Estado) da presidenta Dilma Rousseff.”
Curso: Doutorado em Educação Física - Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
O que diz o autor: Não respondeu ao contato da reportagem.
4) Lute como uma gorda: gordofobia, resistências e ativismos
Resumo: A autora, que se define como “pesquisadora-ativista”, faz um relato em primeira pessoa da sua jornada até se transformar em uma militante contra a “gordofobia”. Um dos vilões da história é o “capitalismo”.
Trecho: “Assim que comecei a seguir vários canais em português e em língua espanhola, tanto da América Latina como da Espanha, vi que vários movimentos ativistas discutiam a temática do corpo gordo não necessariamente como doente, muitos com focalização na autoaceitação e no empoderamento. Foi libertador. Comecei a seguir coletivos de mulheres gordas que aceitavam seu próprio corpo e, mais que isso, se sentiam lindas e saudáveis, mesmo que o mundo todo considerasse seus corpos gordos feios e doentes.”
Curso: Doutorado em Estudos de Cultura Contemporânea na Universidade Federal de Mato Grosso.
O que diz a autora (Maria Luisa Jimenes): “As pessoas que criticam projetos como o meu não entenderam, ou não leram, o meu trabalho. Pessoas gordas morrem por causa da gordofobia. O que eu estou propondo é dignidade para a vida das pessoas e respeito às diversidades. A universidade existe também para produzir conhecimento que modifiquem a maneira de violentar corpos, de excluir pessoas da sociedade ”
Resumo: A dissertação traça paralelos entre a novela Apocalipse, exibida pela TV Record, e a campanha eleitoral de 2018.
Trecho: “A narrativa é marcada por influências neofundamentalistas da Iurd com o objetivo de contrapor as agendas progressistas em evidência no período: direitos humanos, sociais e coletivos e o diálogo inter-religioso; e respaldar agendas políticas conservadoras em defesa da família tradicional, combate à globalização, à ciência moderna e denúncia moral do uso de drogas e da corrupção.(...) Os resultados apontam para uma intencionalidade da Iurd de deslegitimar o campo político progressista visando eleger candidatos conservadores no pleito de 2018”.
Curso: Mestrado em Ciências da Religião na PUC Minas (com financiamento da Capes por 24 meses).
O que diz o autor: Não respondeu ao contato da Gazeta.
6) ESPIRITUAL INFLUENCER: O DISCURSO DE ÓDIO DE SILAS MALAFAIA NO TWITTER
Resumo: O trabalho consiste numa análise, inclusive com métodos quantitativos, da atuação do pastor Silas Malafaia na rede social. A ideia é demonstrar o perigo do “discurso de ódio” propagado por ele.
Trecho: “Refletindo acerca das transformações da sociedade contemporânea a partir do desenvolvimento tecnológico, sobretudo da internet, esta dissertação tem como objetivo abordar a temática do discurso de ódio do pastor evangélico Silas Malafaia na rede social Twitter, bem como sua interação com outros expoentes do campo evangélico nesse ambiente. Para tanto, fez necessário uma abordagem teórico que cobrisse os principais temas abordados – evangélicos no Brasil, discurso de ódio e redes sociais.”
Curso: Dissertação de Mestrado em Sociologia e Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (com bolsa da Capes por 24 meses).
O que diz o autor: Não respondeu ao contato da Gazeta.
Resumo: Em primeira pessoa, a autora - que também participa da organização da Marcha das Vadias no Recife - problematiza o governo Bolsonaro, o conservadorismo, o capitalismo e o patriarcado.
Trecho: “Na Marcha das Vadias Recife, o que pude observar é que as mulheres buscam subverter padrões estéticos com seus corpos. É onde peitos grandes e peitos pequenos ficam a mostra, mulheres gordas mostram seus corpos. É possível ver pernas e axilas sem depilar. Esses corpos 'imorais' e 'fora dos padrões' ocupando o espaço público questionam padrões de feminilidade, normas sociais e o paradigma machista e patriarcal que forja nossa sociedade.”
Curso: Mestrado em Antropologia na Universidade Federal de Pernambuco.
O que diz a autora: Não respondeu ao contato da Gazeta.
Resumo: A autora defende a tese de que existe um modo indígena de pesquisa, diferente do “ocidental”, e argumenta que a ciência precisa ser “descolonizada”.
Trecho: “A ciência indígena, ou nativa, é uma metáfora para uma ampla variedade de processos de percepção, pensamento e ação que evoluíram através da experiência humana em contato com o mundo natural. Para compreendermos seus fundamentos, devemos nos abrir para as funções da sensação, percepção, imaginação, emoção, símbolos e espíritos, assim como para as do conceito, da lógica e do empirismo racional.”
Curso: Doutorado em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista (UNESP), com financiamento do CNPq.
O que diz a autora: A UNESP não respondeu ao contato da reportagem.
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