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Inclusão total de crianças com deficiência em escolas comuns é a melhor saída? O que dizem os especialistas
STF julgará ação que questiona o Plano Nacional de Educação Especial 2020, que flexibiliza matrículas de crianças e adolescentes em escolas especializadas| Foto: Acervo IRM/ Pat Albuquerque

O Supremo Tribunal Federal (STF) promoveu, nesta última semana, audiências públicas sobre o ensino especial com o objetivo de ouvir expositores favoráveis e contrários à Política Nacional de Educação Especial (PNEE), lançada pelo Ministério da Educação (MEC) em setembro do ano passado por meio do Decreto 10.502/2020. Convocada pelo ministro Dias Toffoli, a audiência norteará a decisão da Corte quanto a uma ação no Supremo que pede que a proposta do MEC seja declarada inconstitucional.

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A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6590, ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) em outubro de 2020, cita que a normativa da pasta de Educação seria discriminatória ao permitir a separação dos educandos com e sem deficiência por meio das escolas e classes especializadas para crianças e adolescentes atendidos pela educação especial.

Ainda no ano passado, Toffoli suspendeu cautelarmente os efeitos do decreto, e a decisão foi referendada pelo Plenário. Agora, a partir das exposições na audiência pública, a Corte fará o julgamento definitivo sobre o tema.

O que diz a Política Nacional de Educação Especial

Como diretriz central do documento, a PNEE 2020 permite às famílias matricular crianças e adolescentes com necessidades educacionais especiais – educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimentos e altas habilidades ou superdotação – em escolas especializadas no atendimento a essas pessoas.

Críticos da proposta sustentam que a medida é contrária aos princípios de inclusão e que todos os educandos especiais devem permanecer em escolas comuns convivendo com alunos sem deficiência. A alegação, entretanto, é motivo de controvérsias – especialistas consultados pela reportagem apontam que há uma minoria de estudantes com deficiência que precisam de cuidados mais aprofundados para conseguirem aprender e se desenvolver; atenção essa que nem sempre é possível em escolas comuns.

“Se pegar o total das pessoas com deficiências, para 90% o melhor é, de fato, estar na escola comum. Mas há um pequeno percentual que tem prejuízos, porque nesses locais é mais difícil entregar a atenção que eles precisam”, afirma o psicopedagogo Lucelmo Lucerda, que é doutor em Educação, pós-doutor em Psicologia e pesquisador em autismo e inclusão escolar.

“Para esse percentual, em torno de 10%, o ideal é estar numa escola especial ao menos em princípio, para desenvolver as habilidades necessárias para que ele aumente seu potencial de aprendizagem e possa aproveitar a escola comum”, ressalta.

Para Vitor Geraldi Haase, neuropsicólogo e professor do departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a política da inclusão total, que torna praticamente obrigatória a matrícula de estudante com necessidades educacionais especiais em escolas regulares, não leva em consideração as necessidades individuais, uma vez que há alunos que se beneficiarão da inclusão na classe regular e outros que não terão esses benefícios.

“Às vezes atendemos crianças que estão numa escola regular e não estão se desenvolvendo, aí passam para uma escola especial e a criança melhora. Um tempo depois, a escola especial não está mais ajudando e é hora de voltar para a escola regular. Essa política prevê uma flexibilidade e uma diversidade de opções, e não um modelo único para todo mundo”, observa.

Por outro lado, para Luiza Correa, coordenadora de Advocacy do Instituto Rodrigo Mendes, a PNEE 2020 sinaliza retrocesso e perda de direitos para os estudantes com deficiência. “Nesse modelo de escolas especializadas, que já superamos, há consequências tanto para as crianças com deficiência quanto para as demais. A inclusão é positiva para todo mundo. Ela movimenta a escola no sentido de melhorar as técnicas pedagógicas, a metodologia e a convivência e ensina também habilidades como empatia e comunicação”.

A PNEE 2020 também dá maior flexibilidade aos sistemas de ensino. A partir da norma, as escolas poderiam ofertar alternativas como classes e escolas comuns inclusivas; classes e escolas especiais; e classes e escolas bilíngues de surdos.

Na nota de introdução da proposta, o ministro da educação, Milton Ribeiro, ressalta que a norma não obriga as famílias a matricularem seus filhos em escolas especiais, mas permite que cada família opte pela inserção da criança ou adolescente no modelo de escola que preferir, de acordo com as necessidades específicas do estudante.

“Os direitos foram ampliados para que famílias e estudantes, além da garantia do acesso à escola comum, tenham também o direito a escolas especializadas, sempre que estas forem consideradas, por eles mesmos, como a melhor opção”, diz o ministro.

O documento também traz outros aspectos relacionados à escolarização das pessoas com deficiência e à formação continuada de professores, incentivando práticas pedagógicas baseadas em evidências científicas. De acordo com o Censo Escolar 2019, 94,2% dos professores da educação básica não têm formação continuada em educação especial, o que prejudica o desenvolvimento dos estudantes com necessidades educacionais especiais.

“Essa política em essência traz aspectos fundamentais que precisamos resolver em termos de educação especial no Brasil. A ideia de práticas baseadas em evidências científicas, por exemplo, apareceu pela primeira vez num documento público no caderno da PNEE 2020”, declara Lucerda.

O psicopedagogo aponta, no entanto, que a redação da proposta trouxe problemas mais no sentido político e filosófico do que técnico. Para ele, as declarações recentes do ministro sobre o ensino especial também prejudicaram a discussão técnica sobre o tema.

“O texto não faz uma clara declaração de valor de que a inclusão é a prioridade, e claro que tem que ser, porque é isso que está estabelecido a nível internacional e também constitucionalmente falando. Essa declaração estaria em consonância com o texto. Faltou uma identidade com o campo da educação inclusiva no Brasil”, destaca Lucerda.

Contrários às escolas especializadas alegam que proposta do MEC não promove inclusão

Na ADI 6590, o PSB sustenta que a proposta do MEC representa um retrocesso na promoção do direito das pessoas com deficiência e viola normas que tratam da inclusão dessas pessoas, como a Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), internalizada pelo ordenamento jurídico brasileiro com status de Emenda Constitucional, a Constituição Federal e a Lei 13.146/2015, conhecida como Lei Brasileira de Inclusão (LBI).

A sigla também aponta que os princípios da PNEE 2020 também são opostos àqueles defendidos pela norma anterior, que estava em vigor desde 2008 e que foi responsável pela desmobilização das escolas especiais. Na ação que tramita no STF, cita-se que essas instituições “têm como objetivo reafirmar um modelo segregador e preconceituoso, o qual objetiva excluir as PcD do convívio das pessoas sem deficiência”. Educadores que defendem o modelo de inclusão total veem um avanço em termos de inclusão no aumento de matrículas de educandos com deficiência nas escolas regulares.

A respeito da liberdade de decisão aos pais e responsáveis quanto ao modelo de escola para os estudantes, Luiza, do Instituto Rodrigo Mendes, avalia que as famílias não têm 100% do poder decisório sobre os filhos. “As próprias famílias estão sujeitas a situações que as pressionam a matricular nas escolas especiais, como a oferta concomitante de terapias nessas instituições e até mesmo o preconceito quanto à capacidade das pessoas com deficiência”.

Ela sustenta que ao destinar recursos públicos para as escolas especiais deixa-se de destiná-los para a inclusão. “Esse aspecto do financiamento da política pública é central para que a convivência dos dois modelos seja algo negativo”, declara.

Especialistas apontam que inclusão total ignora necessidades individuais dos estudantes

Quanto ao conceito de, em nome da inclusão, extinguir as escolas especializadas, Lucerda explica que a ideia teve início a partir da década de 70, inicialmente nos Estados Unidos, e depois em países da Europa. Na década de 80, esse conceito ganhou força e passou-se a implementar políticas desse tipo em diversos países. Na década seguinte, diz o psicopedagogo, países como Estados Unidos e Inglaterra passaram a mensurar os resultados da medida e concluíram que houve prejuízos aos estudantes.

“Esses países, então, voltaram atrás e passaram a estabelecer políticas mais seguras e gradativas e mantiveram um sistema em que existem escolas especiais e salas especiais, porém a prioridade é a escola regular inclusiva. É assim nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Finlândia, na Holanda e em todos os países civilizados do planeta”, diz o pesquisador.

O pesquisador em inclusão escolar diz que enquanto o mundo todo reavaliou a questão, o Brasil optou por manter o modelo de inclusão total. “Uma parte da academia, no Brasil, que estuda a escolarização das pessoas com deficiência foi pervadida por uma noção pós-modernista com uma grande identidade com a literatura de autoajuda indicando a ideia de que basta ter um coração bom para que a inclusão aconteça e todo mundo aprenda”, afirma.

“Isso virou uma espécie de mantra e ignorou-se os encaminhamentos técnicos para o processo de inclusão escolar. Por outro lado, os países desenvolvidos têm adotado o que chamamos de práticas baseadas em evidências, que significa adaptar a abordagem à medida que as evidências avançam e estabelecer processos que respondam às necessidades individuais”, ressalta o psicopedagogo.

De acordo com Haase, criou-se, nos últimos anos, uma espécie de ideologia da inclusão em classe regular que não leva em consideração as necessidades das pessoas. Para ele, o modelo atualmente empregado é mais excludente do que includente.

“O que posso dizer como clínico com 40 anos de observação das famílias é que houve uma política deliberada de boicote às escolas especiais. As instituições que eram mantidas pelo Estado foram fechadas, só sobraram as Apaes, porque não são governamentais. Os repasses públicos também diminuíram demais”, afirma.

Audiência pública sobre o PNEE 2020

A audiência pública sobre o decreto que instituiu a PNEE 2020 contou com a exposição de 58 especialistas em educação inclusiva de instituições governamentais e da sociedade civil, que apontaram visões distintas sobre o tema.

Os primeiros expositores do primeiro bloco da audiência, realizado na segunda-feira (23), foram Mizael Conrado de Oliveira e Lucas Vargas, ambos pessoas com deficiência vinculados ao Comitê Brasileiro de Organizações Representativas das Pessoas com Deficiências (CRPD). Eles destacaram a importância das escolas especializadas em suas trajetórias e no trato com estudantes com necessidades educacionais especiais. Vargas registrou que permaneceu por 15 anos em escolas regulares sem evoluir em seu aprendizado e passou a ter resultados positivos nas instituições especializadas.

Representante do MEC, a secretária de Modalidades Especializadas de Educação, Ilda Ribeiro Peliz, disse que a PNEE 2020 está relacionada à liberdade de escolha das famílias. Ela apontou que a PNEE de 2008 teve o mérito de aumentar o número de matrículas de estudantes com deficiência nas escolas regulares, o que fez com que milhares de alunos fossem beneficiados com o acesso às classes comuns.

Ilda ressaltou, no entanto, que nem todas as crianças e adolescentes da educação especial têm na classe comum sua melhor alternativa, e que a normativa busca garantir o atendimento especializado com foco nas especificidades dos diferentes grupos. “Isso não pode ser confundido com a promoção da discriminação e da segregação dos alunos com deficiência. Atender a todos os educandos de maneira igual pode beneficiar alguns, mas não garante a inclusão plena de todos”, apontou.

No segundo bloco da audiência, a doutora em Educação e pesquisadora Mônica de Carvalho Magalhães Kassar, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), defendeu que a separação entre alunos com e sem deficiência é um comportamento discriminatório. “Hoje as pesquisas têm uma outra perspectiva sobre a educação e o desenvolvimento das pessoas com deficiência e mostram que todas as pessoas aprendem independente das deficiências e em todas as idades”, salientou.

Eduardo Vieira Mesquita, da Federação Nacional das Apaes (Fenapaes), apontou impactos negativos a partir da desmobilização das escolas especiais brasileiras. “A política da matrícula em um ambiente único e apenas um contraturno fez com que aqueles que precisam de apoios mais contínuos e múltiplos ficassem sem acesso à escola, e isso gerou esse prejuízo. Nós acreditamos que será possível sim a coexistência das escolas”.

Após sua fala, Mesquita apresentou um vídeo em que Eliane Kotsko – mãe de Rodolfo, que atualmente possui 25 anos e possui deficiência intelectual –, conta que desde criança tentou a inserção no sistema educacional em três escolas regulares. “Não tivemos êxito, porque nenhuma estava preparada para atendê-lo de forma satisfatória”.

Eliane disse que a partir do momento em que Rodolfo foi matriculado em uma escola especializada foi possível incluí-lo no sistema educativo. “Pela primeira vez, ele teve acesso a profissionais capacitados, ambiente educacional adequado e o apoio indispensável para sua aprendizagem”, registrou.

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