• Carregando...
A iniciativa de criar bibliotecas em áreas afegãs em conflito é de Matiullah Wesa, na foto ao centro, com o irmão e as sobrinhas | Andrew  Quilty/NYT
A iniciativa de criar bibliotecas em áreas afegãs em conflito é de Matiullah Wesa, na foto ao centro, com o irmão e as sobrinhas| Foto: Andrew Quilty/NYT

À primeira vista, não parece uma biblioteca: são duas prateleiras com cerca de 1.600 livros e revistas em um cômodo no subsolo, em uma viela poeirenta cheia de casas de adobe, no distrito rural de Panjwai, sul do Afeganistão; os colchões e cobertores empilhados a um canto reforçam o ar de quarto de hóspedes que o salão já foi.

As visitas ao local mostram, porém, como parte da comunidade, principalmente os jovens, valoriza cada vez mais a chance de saciar a curiosidade de aprender em um lugar que viu de perto a ascensão do Talibã original, nos anos 90, e se tornou o símbolo da tragédia e da privação resultantes da guerra.

Hassanullah, 18 anos, leu “História Geral”; Muhammad Rahim, 27 anos, estava à procura de “Os Fogos do Inferno”, que devolveu no dia seguinte e foi imediatamente emprestado a Nabi, de doze anos. Taher Agha, 15 anos, preferiu “Sobre o Amor e o Ser Amado”, que leu em dez dias. Outro jovem, prestes a se casar, ligou antes para ter certeza de que “Cuidando da Casa” estava disponível. E foi buscá-lo de bicicleta, percorrendo uma distância de dez quilômetros.

A corrupção endêmica também pesa; muitos colégios que constam no orçamento do governo, por exemplo, estão totalmente abandonados – são as chamadas “escolas fantasmas”, erguidas para permitir que as autoridades recebam ajuda financeira sem fornecer nenhum serviço

A biblioteca de Panjwai é, em grande parte, obra de Matiullah Wesa, um estudante de 22 anos de Kandahar que está na Índia para concluir os estudos e se formar em Ciências Políticas. Há mais ou menos oito anos, a Pen Path, organização voluntária que o jovem fundou quando ainda era adolescente, vem se empenhando para reabrir as escolas fechadas por causa da violência e levar livros a algumas das áreas mais afetadas pelo conflito.

“A inauguração foi em janeiro e recebemos 24 visitas só no primeiro mês”, vibra Muhammad Nasim Haidary, que cuida das instalações, abrigadas na casa da própria família.

Wesa reza para que a violência diminua e não destrua as pequenas bibliotecas Andrew Quilty/NYT

Entretanto, o interesse de algumas leitoras, que procuraram as mulheres da família de Haidary por causa da leitura, gerou um pequeno dilema em uma sociedade que se recusa até a mencionar nomes femininos em público: como manter os registros dos livros se não é possível escrever os nomes delas?

Uma sugestão foi a de usar pseudônimos substituindo os nomes verdadeiros nas fichas, mas isso geraria um novo problema: como é que o coitado do Haidary ia se lembrar de quem era quem?

O conflito dos últimos 14 anos afetou mais as regiões sul e leste do Afeganistão e a província de Kandahar, que inclui Panjwai, está entre as mais atingidas. Com o controle do distrito se alternando entre o Talibã e o governo afegão – incluindo seus aliados norte-americanos –, a sobrevivência se tornou prioridade. A educação, que sempre foi artigo raro ali, despencou para o fim da lista e, em muitos lugares, as escolas continuaram fechadas mesmo depois da expulsão dos insurgentes.

A corrupção endêmica também pesa; muitos colégios que constam no orçamento do governo, por exemplo, estão totalmente abandonados – são as chamadas “escolas fantasmas”, erguidas para permitir que as autoridades recebam ajuda financeira sem fornecer nenhum serviço em troca.

“O problema também é que grande parte da iniciativa está voltada para os centros urbanos; é preciso começar dos vilarejos. Se esta biblioteca estivesse na cidade, teríamos umas cem visitas por dia, mas para mim vale mais os cinco que vêm nos ver aqui diariamente”, afirmou Wesa durante visita a Panjwai, em fevereiro.

Obras não devolvidas

Sua organização começou uma campanha nacional no ano passado, reunindo aproximadamente vinte mil livros graças a uma iniciativa nas redes sociais. A competitividade pelo status social é extremamente arraigada no país e foi dela que Wesa se aproveitou para encorajar as ofertas: assim, até a doação mais insignificante era mencionada on-line, com direito a foto do doador e uma palavra de agradecimento.

6 filmes com histórias de professores inspiradores

Leia a matéria completa

Os livros ajudaram a estabelecer sete bibliotecas modestas em províncias que ficaram conhecidas como palco das maiores violências de guerra: Helmand, Kandahar, Khost, Kunar e Wardak.

Para os ocidentais, Panjwai, que fica a uma hora de carro da cidade de Kandahar, está ligada a uma terrível atrocidade: o massacre de 16 civis cometido por um sargento norte-americano que saiu da base antes do amanhecer, em março de 2012. Para os moradores, porém, o lugar se transformou em um inferno muitos anos antes.

América Latina tem 20 milhões de jovens “nem-nem”

No mundo, pessoas de 15 a 24 anos que não estudam e nem trabalham chegam a 260 milhões

Leia a matéria completa

“Panjwai era um forno de padaria: quem entrasse ali, se queimava. Se você dissesse que era daqui, o pessoal ficava com medo”, lembra Haidary.

A iniciação de Wesa no ativismo educativo começou em sua cidade natal, Maruf, hoje disputada pelo Talibã. Seu pai abriu uma das primeiras escolas ali, antes que a violência forçasse a família a se mudar para Spinbaldak, centro comercial fronteiriço.

A semente, porém, já havia sido plantada: Wesa, um dos onze filhos, continuou a acumular livros na biblioteca que a família tinha levado com a mudança.

“Toda vez que ganhava um dinheirinho ele voltava para casa com mais livros”, conta o irmão mais velho, Wali Muhammad, oficial do Exército.

E essa coleção familiar de Spinbaldak, hoje aberta ao público como parte da organização de Wesa, tem quase quatro mil volumes organizados em prateleiras de metal. No meio da sala acarpetada há um aquecedor a gás para os dias de inverno e um cinzeiro e cuspidor para aqueles que não dispensam o cigarro ou o tabaco de mascar.

A circulação de seus livros é baseada principalmente no sistema de honra. O registro é mínimo, em parte porque o outro irmão de Wesa, Atta Muhammad, que é quem cuida das instalações, mal sabe ler e escrever.

“Se é uma pessoa que conheço bem, só anoto o número de livros que levou; não preciso discriminar os títulos”, explica ele.

Quando os livros não são devolvidos no prazo, Atta tem que sair telefonando ou ir até a casa dos relapsos – e apesar da vigilância, dezenas de livros se perderam, a maioria por nunca mais ter sido devolvida depois de retirada.

Wesa pretende abrir diversas outras bibliotecas menores ainda este ano e expandir a iniciativa com uma rede mais organizada de voluntários por todo o país. E até que ponto ele está disposto a ir se mostrou em uma conversa recente que teve com um empresário bem-sucedido no leste do país. O homem lhe fez uma oferta: doaria vinte mil livros para uma biblioteca em sua região, sob a condição que o estabelecimento ganhasse o nome de seu pai.

Wesa ficou tão feliz que até se esqueceu dos tabus culturais e do que é aceitável socialmente ao lhe dar a resposta: “Eu disse que, contanto que oferecesse todos aqueles livros, a biblioteca podia ganhar até o nome da mãe dele.”

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]