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O que é o teste de fluência (que alguns educadores brasileiros desprezam)
| Foto: Marcello Casal/ Agência Brasil

O Ministério da Educação (MEC) deve anunciar na próxima semana como será a execução de uma parte importante da nova Política Nacional de Alfabetização (PNA), o Programa de Alfabetização Escolar que vai introduzir, entre outras medidas, uma avaliação da fluência das crianças – basicamente, a quantidade de palavras que um aluno é capaz de ler com precisão e correta entonação em um determinado tempo.

Embora a importância da prática seja reconhecida e o teste seja adotado em outros países há bastante tempo, será novidade no Brasil, onde apenas alguns municípios, de forma isolada, testam a fluência de leitura.

Críticos, não apoiados em pesquisas científicas, afirmam que a medida é desnecessária, pois a fluência em leitura não demonstra que a criança entende o que lê. Especialistas no assunto, ao contrário, explicam como funciona essa avaliação e por que ela é importante no processo de alfabetização.

Importância da fluência

Um bom leitor é aquele capaz de decodificar palavras com velocidade, associando sons às letras, e compreender sem dificuldades o conteúdo do texto. Para que o cérebro funcione bem, e chegue à compreensão e à produção de ciência, é preciso realizar algumas etapas desse processo com fluência, com rapidez, otimizando a memória cerebral.

Tendo em conta que, de um lado, a capacidade cognitiva humana é limitada e, de outro, a leitura e o aprendizado demandam considerável carga cerebral, quando algum processo consome muita memória, não “sobra” memória de trabalho para a compreensão. Por isso, é importante ensinar as crianças a associar com velocidade as letras e seus sons correspondentes, uma meta alcançada com eficácia pelas abordagens fônicas – também criticadas no Brasil, principalmente por sistemas construtivistas.

"Sabemos que uma das coisas que mais dificultam a compreensão [de textos] é quando a criança ainda não domina o código e, ao não dominar o código, ela lê tão devagar que esquece o que leu nas frases anteriores", explica Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovações em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "Com isso, a compreensão do texto sai prejudicada".

Uma comparação seria tentar ler um texto em um idioma desconhecido, utilizando um dicionário após a leitura de cada palavra. "Ao fim de um parágrafo, você vai estar exausto, e pode querer desistir. Agora, imagine uma criança de sete anos, para quem ler é como pegar o dicionário e ficar quebrando as palavras. O processo é muito frustrante", afirma Augusto Buchweitz, doutor e pesquisador o Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (Inscer).

Em outras palavras, a criança que lê com fluência consegue "aliviar" carga cognitiva e preparar o cérebro para atividades mais complexas. Dito ainda de outra forma, quando a criança é capaz de utilizar menos memória para decodificar (a decodificação entra em uma espécie de "piloto-automático") ela passa a ser capaz de compreender textos cada vez mais difíceis. Grosso modo, a fluidez demonstra que a primeira etapa da alfabetização foi realizada com sucesso, pois há um alívio no "hard drive" do cérebro humano.

Como Sobral mede fluência

No Brasil, ainda não há uma política de fomento federal para medir a fluência das crianças em leitura. Há conhecimento, porém, de municípios que atuam, de forma isolada, para testar essa competência. É o caso de Sobral, no Ceará, referência em ensino e índices educacionais. Sustentado em materiais elaborados pelo Instituto Alfa e Beto, o município adota três principais métricas para medir a fluência de leitura. São os indicadores: velocidade, precisão e prosódia.

"A primeira [métrica] é sobre o número de palavras que se lê por minuto, obviamente dependendo da dificuldade do texto. O segundo, o número de erros que se comete, e o terceiro, a qualidade da leitura, que é uma medida mais subjetiva, e tem a ver com a entonação, modulação da voz", explica o presidente do instituto, João Batista Araujo e Oliveira.

O indicador de rapidez, que contabiliza palavras lidas por minuto (ppm), possui diferentes escalas, a depender da série e idade do leitor. No final do primeiro ano do ensino fundamental, por exemplo, o instituto considera como ideal a capacidade de ler 80 palavras por minuto. Já ao fim do quinto ano, espera-se que o leitor seja capaz de ler até 140 palavras por minuto, e a leitura de 180 palavras por minuto, desejada para o 9º ano do ensino fundamental, é considerada ideal para adultos.

Essa velocidade, no entanto, como explica Araujo e Oliveira, está associada à dificuldade do texto. "Em uma leitura chamada de dinâmica, posso ler 300 palavras por minuto em um jornal, a ponto de conseguir saber notícias do dia. Mas se estou lendo para estudar um assunto novo sobre biologia, por exemplo, a leitura tende a ser mais lenta. De outro modo, se estou lendo e estudando para fazer uma prova, o número de palavras lidas por minuto é ainda mais reduzido", diz.

A rapidez de leitura também está diretamente associada à precisão, e o ideal é que a porcentagem de erros não ultrapasse o limite de 10%, segundo o instituto. "Quando lemos e erramos, voltamos atrás e repetimos e, aí, há um desconto na velocidade pelo erro. E quando se tem mais de 10% de erros, isso começa a prejudicar a compreensão", explica o presidente do Alfa e Beto. Segundo o especialista, em quase todos os casos esses erros estão associados à dificuldade de decodificar palavras - falha no processo inicial de alfabetização.

O terceiro parâmetro, mais subjetivo, mede a exatidão do ritmo e da entonação da leitura. A entonação, ao ler uma poesia, por exemplo, deve ser diferente da entonação da leitura de uma notícia ou uma receita de bolo. "Temos conseguido, em nossos trabalhos, inclusive em Sobral, ao final do 8º ano do ensino fundamental, que os alunos leiam 80 palavras por minuto, com o máximo de 10% de erros", diz Araujo e Oliveira. Os testes propostos pelo instituto são padronizados e de periodicidade mensal, e os registros são individuais para cada aluno.

A eficácia de seguir essa etapa – e medi-la por meio de testes de fluência – é atestada em várias pesquisas. Por exemplo, um dos relatórios mais conceituados entre os pesquisadores da área é o divulgado em 2000 pelo National Reading Panel, antigo órgão norte-americano, constituído com objetivo de realizar estudos sobre a eficácia de diferentes abordagens utilizadas para o ensino da leitura e escrita. Após rigorosas análises, foram identificados cinco pilares essenciais para uma alfabetização efetiva, dentre os quais está a fluência. São eles: consciência fonêmica, instrução fônica sistemática, fluência de leitura, o vocabulário e a compreensão de textos. Esses princípios norteiam, por exemplo, a nova Política Nacional de Alfabetização e a elaboração de políticas públicas em diversos países.

Outro estudo publicado pela Society for the Scientific Study of Reading (SSSR) em 2001 chegou à conclusão de que um alto número de palavras lidas corretamente por minuto indica uma base robusta de conhecimento de vocabulário e compreensão significativa do texto. "Por outro lado, uma baixa taxa de ppm sugere habilidades ineficientes de reconhecimento de palavras, um vocabulário pobre e habilidades de compreensão de texto com defeito", afirma o relatório.

Crítica

Para críticos, medir fluência de leitura não passa de uma "pressão" a mais sobre os estudantes. Eles também interpretam que quem defende e realiza testes de fluência de leitura ignora os diagnósticos de compreensão de texto.

É conhecido que fluência pode não significar compreensão, e é por essa razão que Sobral e outros países que adotaram os testes não desprezam a importância de, mais do que saber se o aluno é capaz de ler rapidamente, sem erros, e com a entonação certa, saber se ele consegue entender o que lê.

É completamente possível, como afirma o pesquisador Buchweitz, analisar essas duas competências separadamente. "Esse tipo de métrica e avaliação tem que ser entendido pelo que ele é. Não dá para criticar cobra porque ela não tem perna", diz. "Fluência não é compreensão, e há dois testes diferentes para entender essas duas questões. É importante, sim, medir fluência e saber se as crianças estão conseguindo atingir a velocidade de leitura necessária para não sobrecarregar o cérebro". Relatórios obtidos desses testes, sobretudo, podem servir como base para elaboração de políticas públicas, como os cadernos de alfabetização.

O relatório do National Reading Panel afirma, além disso, que "os professores precisam saber que a precisão do reconhecimento de palavras não é o ponto final das instruções de leitura". "A fluência representa um nível de experiência além da precisão do reconhecimento de palavras, e a compreensão da leitura pode ser auxiliada pela fluência. Leitores qualificados leem as palavras com precisão, rapidez e eficiência. As crianças que não desenvolvem fluência na leitura, por mais brilhantes que sejam, continuarão a ler devagar e com muito esforço", diz o documento.

Para o especialista, críticas quanto ao estresse causado nos alunos durante os testes de fluência são, na verdade, "palavras jogadas ao vento sem nenhuma avaliação psicológica fundamentada". "Não se criam traumas. No mundo todo se avalia muito mais do que no Brasil e não há criança traumatizada. Essas palavras são usadas como opinião", diz.

Araujo e Oliveira, além disso, lembra que os testes não causam pressão nos alunos de forma a prejudicá-los.

"É preciso saber deixar a criança à vontade, prepará-la. O objetivo do teste não é dar nota, mas, sim, fazer um diagnóstico", explica. "Se você faz um teste para dar nota, há um pouco mais de pressão, mas ninguém faz teste de fluência para dar nota".

Desdém

Para Luiz Carlos Faria da Silva, doutor em Educação pela Universidade de Campinas (Unicamp) e professor no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM), que integrou o Grupo de Estudos da Academia Brasileira de Ciências (ABC) sobre Aprendizagem Infantil, críticos a medidas como essa não compreendem ou desdenham os achados da ciência cognitiva da leitura, firmada, especialmente, nos últimos 20 anos. Nas academias de ensino, não parece haver conhecimento ou domínio sobre a questão.

"Todo mundo tem o seu pitaco a dar sobre educação, principalmente sobre a alfabetização. Mas precisamos olhar as evidências mais robustas que existem hoje, bem fundamentadas, que avançaram. Isso, sim, pode nos fornecer bases seguras para o ensino eficaz de leitura", defende.

É preciso, em suas palavras, acertar o passo entre os achados da ciência cognitiva da leitura e as práticas pedagógicas, como aconteceu em outros países de forma muito semelhante. "Esses documentos [produzidos pela ABC, NRP e SSSR], que são pilares da ciência cognitiva da leitura, indicam que a fluência é a 'pedra de toque'", explica. "A alfabetização, quando tropeça na fluência, tropeça na compreensão".

"Nos termos do conhecimento científico acumulado, se considerarmos todos os achados que se confirmaram, faz todo sentido se preocupar com estratégias de ensino que treinem a velocidade, precisão e entoação", diz.

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