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Em 2020, a taxa de inadimplência do Fies subiu quatro pontos percentuais em relação a 2019; nos últimos meses variou de 50% a 53%, afetando 1 milhão de contratos que somam cerca de R$ 6,6 bilhões em débitos atrasados.
Em 2020, a taxa de inadimplência do Fies subiu quatro pontos percentuais em relação a 2019; nos últimos meses variou de 50% a 53%, afetando 1 milhão de contratos que somam cerca de R$ 6,6 bilhões em débitos atrasados.| Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil

A despeito da sua relevância social, a proposta que o governo federal anunciou, nesta quinta-feira (30), para renegociar dívidas e anistiar contratos antigos de inadimplentes do Fies (Financiamento Estudantil) vem deixando em segundo plano uma discussão fundamental: essa política pública de acesso à educação superior é sustentável sob as regras vigentes?

Um dos pontos principais a ser analisado é se o pagamento do empréstimo vinculado à renda, como descrito na Lei 13.530/2017 vai funcionar, o que evitaria outras anistias no futuro. Mas há quem defenda novas mudanças para aperfeiçoar essa cobrança.

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Depois do descontrole nos contratos firmados entre 2010 e 2014, o Fies passou por uma reformulação em 2017. De um lado, a nova lei trouxe mais transparência e responsabilidade fiscal para o programa; por outro lado, a queda no número de financiamentos concedidos – que foi agravada pela pandemia, mas que antes disso já era expressiva – joga dúvidas sobre a capacidade do país em ampliar o número de matrículas no ensino superior, que é uma das metas previstas no Plano Nacional de Educação (PNE).

Em 2010, foram firmados 76 mil contratos pelo Fies; quatro anos depois, esse número chegou à marca de 732 mil. Em 2015, em meio à crise política do governo de Dilma Rousseff (PT), o Congresso Nacional solicitou ao Tribunal de Contas da União (TCU) a análise de diversos programas sociais, como o do financiamento estudantil. O próprio governo refez algumas regras (como dar prioridade a cursos com nota 4 e 5 e beneficiar estudantes de famílias com renda per capita de até 2,5 salários-mínimos) que resultaram na efetivação de apenas 287 mil contratos naquele ano, caindo para 203 mil em 2016; 176 mil em 2017; 82 mil em 2018 e 85 mil em 2019. A partir de 2020 o número de vagas elegíveis ao Fies ficou em torno de 93 mil, mas na prática parte delas nem foi preenchida.

Devido às consequências da pandemia, o programa está em uma encruzilhada que afeta tantos os contratos antigos como os novos. A taxa de inadimplência subiu quatro pontos percentuais em relação a 2019; nos últimos meses variou de 50% a 53%, afetando 1 milhão de contratos que somam cerca de R$ 6,6 bilhões em débitos atrasados. Mas os jovens que ainda almejam uma formação também vivem um cenário desafiador, observa Cláudia Costin, diretora do Centro de Inovação e Excelência em Educação da Fundação Getulio Vargas (Ceipe/FGV).

Apesar dos problemas, financiamento é fundamental

“Se pensarmos que as escolas públicas ficaram quase dois anos letivos inteiros fechados, em um país que tem problemas de conectividade e de acesso a equipamentos para os mais pobres, imagina o que aconteceu em termos de perdas de aprendizagem e crescimento da desigualdade educacional. Tudo isso para dizer que o impacto na educação é muito grande. Não à toa, quando veio o Enem, a principal porta de entrada ao ensino superior no Brasil, muitos alunos de escolas públicas não se sentiram preparados e não prestaram o exame”, relata a pesquisadora.

A baixa demanda gera reclamações por parte das instituições de ensino, que pedem por mudanças no Novo Fies. “O Fies era um programa social importantíssimo para a democratização do acesso ao ensino superior. Porém, com as modificações feitas desde 2015 deixou de ser um programa social e passou a ser puramente um programa financeiro, para atender as necessidades fiscais do governo”, afirma Sólon Caldas, secretário executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES). Segundo ele, como os alunos não têm renda, muitas vagas ficam ociosas.

“O programa é fundamental para o acesso ao ensino superior, uma vez que ele é eminentemente privado. O aluno precisa ter um recurso financeiro para poder arcar com o investimento da sua formação, ou o governo precisa oferecer uma política pública que dê condições para isso”, acrescenta.

Todos os especialistas ouvidos pela reportagem são enfáticos em defender um programa de financiamento para o ensino superior. Segundo acompanhamento feito pelo Observatório do PNE, em 2020 apenas 23,8% dos jovens entre 18 e 24 anos estavam matriculados nessa etapa de ensino; a Meta 12 do PNE prevê percentual de 33% até 2024. Como as instituições particulares representam 70% das matrículas no ensino superior, a ampliação passa necessariamente por elas. E para ingressar nessas instituições, muitos alunos necessitam de mecanismos como o Fies.

Cláudia Costin observa que o Fies deve andar junto com o Programa Universidade para Todos (ProUni), que concede bolsas de 50% a 100% a alunos carentes: “É preciso avaliar quem tem condições de arcar com financiamento e quem necessita de bolsa”. Nessa linha, ela critica as mudanças recentes que o governo federal fez no ProUni, observando que seus preceitos foram “desfigurados” e também não concorda com o perdão de dívidas. Ela sugere como caminho o adiamento da dívida.

“O Fies era visto como uma bolsa. Nossos clientes relatavam que os alunos não entendiam que teriam que pagar”, lembra Pedro Gomes, que comanda os serviços de consultoria da Hoper Educação. Ele destaca que após as novas regras e diminuição do número de contratos, muitas instituições tentaram oferecer financiamentos próprios, mas enfrentaram problemas ao tentar gerenciar os empréstimos.

Segundo Gomes, o setor poderia se beneficiar com algumas mudanças, mas ele não vê espaço para a reforma devido à eleição presidencial de 2022. “Depois que a crise e a pandemia passarem mesmo e com o resultado das eleições que vão determinar as políticas públicas, vai ficar mais claro quais as possibilidades de termos um fundo mais sustentável. O financiamento público é importantíssimo para ajudar no acesso à educação superior, é uma política fundamental em qualquer país”, finaliza.

Sistema tem regras mais rígidas e é sustentável, defende especialista

Um dos responsáveis pelo Novo Fies, Vicente de Paula Almeida Júnior, ex-diretor do Ministério da Educação (MEC) e pós-doutor em Educação, pondera que a inadimplência foi um caminho trilhado por muitos estudantes que estavam sob a modelagem antiga do programa e que não conseguiram emprego no cenário de crise. Independentemente disso, diz ele, o Novo Fies tem a sustentabilidade necessária para seguir como política pública de acesso ao ensino superior.

Segundo Almeida Júnior, os pontos cruciais na mudança foram: financiamento mediante capacidade de pagamento da família; nota acima de 450 pontos no Enem; curso com nota mínima de 3 na escala até 5 do MEC; seguro obrigatório para o estudante; compartilhamento do risco do crédito entre Tesouro Nacional e instituições de ensino; eliminação da carência de 18 meses para início do pagamento; e novo modelo de gestão e governança, instituindo pelo Comitê de Governança do Fies.

“Durante o curso o estudante já paga uma coparticipação da mensalidade, para não achar mais que é uma bolsa, e um seguro prestamista. O valor restante financiado será pago somente quando o estudante tiver emprego. Ele assina um termo em que os órgãos de governo como a Receita Federal capturem os valores das parcelas financiadas compulsoriamente. Assim, mitiga-se muito a inadimplência, diminui consideravelmente o risco para o governo e para as instituições, que também colaboram para a composição de um Fundo Garantidor”, resume ele.

Proposta prevê colocar Receita Federal em papel chave do Fies

O economista Paulo Meyer Nascimento, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), pesquisa o tema de financiamento estudantil há alguns anos, e defende reformulação no Novo Fies para adotar o pagamento vinculado à renda futura. Em um texto recentemente publicado (17/dez), ele apresenta o arcabouço institucional da proposta: uma reforma constitucional para incluir entre as atribuições da Receita Federal a cobrança futura de uma contribuição de alunos usuários de financiamento público ou privado.

Na opinião dele, a Lei de 2017 trouxe muitos avanços, mas não conseguiu copiar modelos exitosos da Austrália e Inglaterra porque não há participação ativa da Receita Federal. “A lei prevê o pagamento vinculado à renda. Desde então o governo tenta implantar isso por meio de outros descontos em folha, como e-Social, ou tenta bolar alguma novidade que permitisse que os pagamentos do Fies fossem retidos na fonte, como se fosse um consignado. O problema é que o Fies não é um consignado”. Ele diz que está “cético” quanto à possibilidade de uma fórmula que não envolva a Receita Federal. “Não tem uma instituição que chegue ao empregador e recolha da folha de salários, até porque precisa avaliar outras fontes de renda”, defende.

Pelos estudos que Nascimento fez, a Receita Federal só pode entrar no processo se houver lei específica para isso. Ele sugere alguns modelos a seguir, como o da contribuição patronal, que alimenta o Sistema S. “Há pelo menos uma dúzia de diferentes contribuições e em todas a Receita arrecada e repassa para um organismo que gerencia aquela arrecadação. Então poderia se pensar em um órgão que gerenciasse esse sistema vinculado à renda. Poderia inclusive regular o sistema privado, porque o financiamento poderia vir de bancos e fintechs, além do financiamento público. E esse órgão comunica com a Receita quais CPFs se valeram de financiamento estudantil. No momento em que tiverem um patamar de renda, destinam um percentual para o pagamento da dívida”, esclarece.

Segundo o pesquisador, um sistema desse já teria um Refis “embutido”, já que a pessoa só paga ao atingir um determinado nível de renda. Enquanto isso não ocorre, a pessoa permanece devedora, mas não se torna inadimplente. Um seguro cobriria o pagamento daqueles que não conseguirem atingir determinado patamar de renda. “Não tem o perdão; é o prazo de amortização que vai se ajustar à capacidade de pagamento. A recuperação do recurso poderá ser maior, ainda que possa levar mais tempo”.

Nascimento defende a proposta sob o ponto de vista de sustentabilidade do fundo e explica que ele poderia funcionar como um guarda-chuva para recuperar mais recursos bancados pelo governo. “No caso de um novo Fies, o ProUni poderia ser mais focalizado ainda, para aquele estudante que tem mesmo muita dificuldade financeira. O governo daria de graça a bolsa, mas dependendo da vontade política, o ProUni também poderia virar um financiamento vinculado à renda. Se no futuro a pessoa tiver uma renda razoável, por que não pode pagar de volta? Então o sistema vinculado à renda poderia ser um guarda-chuva para abrigar várias opções”, explica. A dificuldade, reconhece, está nas costuras políticas para modificar as atribuições da Receita Federal e bancar uma nova cultura de financiamento estudantil.

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