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Política Nacional de Educação Especial do governo federal dá alternativas às famílias
Plano Nacional de Educação Especial foi apresentado pelo governo federal| Foto: Bigstock

Os recursos públicos não podem pagar padres para benzerem represas para filtrar a água, pastores para orarem por cura no SUS e nem mesmo médiuns para ouvirem mortos em disputas patrimoniais. Ao recusar a utilização de dinheiro público para essas atividades, o Estado não está tomando partido sobre essas teses de fé, na verdade ele está dizendo o contrário, que fé é um tema privado e que o Estado é um ente de todos. Se o Estado brasileiro é laico, temos por derivação que a racionalidade e não a fé é a base de sustentação de sua presença social. Guarde este argumento, voltarei a ele em breve.

As escolas são instituições que se dedicaram historicamente a mudanças em comportamentos religiosos, valorativos, acadêmicos, de papeis de gênero, entre outros. Nos muitos meandros de nossa história, o signo fundamental da educação sempre foi a exclusão, seja porque era exclusiva de um pequeno grupo de elite, seja porque era negada às mulheres, negros, pobres, imigrantes, entre outros. Nessa extensa lista, a última fronteira inclusiva é a da pessoa com deficiência.

No século XIX, o Brasil ingressou nesta pauta com a criação das escolas para pessoas com deficiências sensoriais, surdos e cegos e pessoas com deficiência física dependeram até pouco tempo ou de uma estrutura arquitetônica que ocasionalmente lhes era favorável ou da dependência humilhante de outras pessoas para sua mobilidade.

Mas as pessoas com deficiências múltiplas e mentais sempre foram o maior desafio do processo de escolarização. Isto porque a grande questão em pauta não é a acessibilidade, mas os processos de ensino e aprendizagem, o que fez com que o Estado não respondesse a esse chamado e sim a sociedade civil, que em meados do século XX deu luz a instituições como APAE e Pestalozzi, para a escolarização deste grupo alheado deste direito fundamental.

A partir da década de 1980 tomou vulto a perspectiva de que as pessoas com deficiência seriam beneficiadas da escolarização em escolas comuns e não em espaços separados e que isso também seria de valia para estudantes sem deficiências, que teriam uma visão mais inclusiva do mundo. Esse movimento tomou corpo e ganhou expressões políticas e legais, como a Declaração de Salamanca e a Convenção de Nova Iorque.

Um programa de pesquisa ousado tomou conta do debate educacional nas décadas de 1980 e 1990 e a reflexão sobre a inclusão seguiu dois diferentes caminhos, um deles é o da produção de evidências sobre o tema, arranjando esquemas de escolarização com todos os recursos materiais e humanos disponíveis e avaliando sistematicamente os processos de aprendizagem e o outro caminho é o da afirmação da inclusão como uma questão moral e cujas vantagens diz mais respeito a nós, enquanto sociedade, do que às crianças como sujeito aprendente (ou não).

Esses processos desembocaram em um sólido corpo de dados, que tinha um mesmo fio condutor de ligação de todos os grandes balanços da literatura empírica, isto é, que de fato testava as ideias em discussão, a heterogeneidade dos dados. Ou seja, o que se verificou consistentemente nesse conjunto de pesquisas é que a grande maioria das pessoas com deficiência se beneficia da inclusão escolar, tem ganhos em habilidades como comunicação, imitação, comportamento adaptativo, habilidades acadêmicas, entre outras. Mas, e este “mas” é deveras importante, uma parte das pessoas com deficiência não só não apresenta benefícios, mas apresenta sim um conjunto expressivo de prejuízos, tanto acadêmicos quanto sociais (pasmem).

Esse é um primeiro achado deste conjunto de pesquisas, mas na verdade trata-se de um corpo de conhecimento bastante mais complexo que indica, talvez em primeiro lugar, que aqueles que se beneficiam da inclusão precisam não somente de uma boa vontade para com sua diferença, mas de um continuum de apoios que pode ir desde uma simples mudança na aula geral, que permite a estudantes com pequenas diferenças de compreensão linguística de compreenderem a discussão, até adaptações de materiais, atividades, avaliações, currículos, presença de acompanhantes, até equipamentos especiais, cada qual segundo sua necessidade individual (e não conforme a deficiência).

A partir deste ponto, fica solidificada, no campo da ciência, a perspectiva de que: a) a inclusão escolar é o ideal de escolarização em que a maioria das pessoas com deficiência deve estudar para desenvolver-se o mais plenamente possível; b) as escolas e classes especializadas são espaços excepcionais de escolarização, dedicados a casos de deficiência com quadros mais severos, que não se beneficiam da inclusão escolar. Nestes espaços as pessoas com deficiência podem aprender as habilidades fundamentais para se beneficiarem da inclusão escolar e serem nela inseridos progressivamente, ainda que nem todos os casos consigam este mesmo desenvolvimento; e c) a inclusão escolar não pode ser baseada em boas intenções, mas em Práticas Baseadas em Evidências. A saber, as evidências podem mudar no futuro, mas nenhuma tendência na literatura científica parece apontar neste sentido até agora.

Desta feita, todos os estados do mundo civilizado construíram e desenvolveram sistemas de educação inclusivos, compostos por escolas especializadas e salas especializadas para casos excepcionais e escolas comuns todas necessariamente inclusivas, em que todos os recursos possíveis são mobilizados para o pleno desenvolvimento das pessoas com deficiência. Os EUA, país que vanguardeou o debate sobre a Inclusão Total, seguindo os trilhos da ciência, abandonou completamente a perspectiva e implementou um sistema invejável para garantir que todos os que pudessem se beneficiar da inclusão, o fossem. No começo dos anos 2000, a luta dos pais de crianças com deficiência emplacou a lei Nenhuma Criança Deixada para Trás, que estipula que na Educação Especial não é permitida a utilização de quaisquer práticas que não possuam evidências científicas.

As exceções no cenário educacional no mundo são a Itália, que tinha um sistema de inclusão total desde muito antes do movimento com essa finalidade e que desenvolveu, paralelamente, a maior rede de escolas especializadas clandestinas de toda a Europa, como demonstrou Anastasiou e colaboradores em 2015 e o Brasil.

O caso brasileiro é bastante curioso, porque aqui a Inclusão Total ganhou rapidamente a legitimidade do Estado (note-se que é uma alternativa muito mais barata) e impôs sua perspectiva de modo quase absoluto, hegemonizando os processos formativos, os espaços acadêmicos e mesmo a interpretação jurídica dos dispositivos legais acerca da educação. Em 2008, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva, que seguiu à risca os preceitos da Inclusão Total, foi celebrada com entusiasmo.

A lei de criação do Conselho Nacional de Educação – CNE, prevê que é ele o órgão que escreve as diretrizes das políticas de educação do país. Para burlar essa regra e garantir o domínio total dos processos inclusivos, o Ministério da Educação de então publicou dez diretrizes sob o nome de “Fascículos” da PNEEPEI, em que o primeiro, denominado “Escola Comum Inclusiva”, traz nada menos do que 10 condenações a quaisquer adaptações de currículo, provas, atividades ou de qualquer outra natureza para as pessoas com deficiência, em oposição à LDB que determina que “Art. 59.  Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação: I - currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específicos, para atender às suas necessidades;”, note-se, portanto, que além de anticientífica, trata-se de uma disposição ilegal.

O texto ainda descreve textualmente que é a pessoa com deficiência que deve se adaptar ao currículo e que isso tudo acontece quando a escola é suficiente aberta à diversidade, ainda que em nenhum lugar do mundo tenha se documentado esse tipo de perspectiva na prática, com pessoas de fato aprendendo.

Outro grave problema da Política Nacional de 2008 é que, ao condenar a existência das escolas especializadas, passou-se fingir que elas não existiam, para que elas não fossem legitimadas, uma vez que falhou a tentativa de as fechar, na meta 4 do Plano Nacional de Educação, em 2010.

Então vejam a contradição, a Política afirma que a inclusão escolar não deve realizar nenhuma adaptação, contra toda a evidência científica disponível no mundo, o que produz necessariamente uma exclusão dentro da inclusão, produzindo uma massa de estudantes com deficiência matriculados nas escolas comuns, mas com uma aprendizagem muito aquém de seu potencial. Esse processo empurra parte desse contingente para as escolas especializadas, espaços que não são regulamentados, orientados e fiscalizados, que não têm a obrigação, como em todo o mundo civilizado, de compor o sistema inclusivo, preparando os indivíduos para a escola comum. A Política Nacional de 2008 tem o mérito de fortalecer o direito inequívoco à inclusão escolar, mas é também e sobretudo o círculo vicioso perfeito para processos ainda mais profundos de exclusão da pessoa com deficiência.

Da mesma forma que o Estado não pode dizer que Deus, Buda, Iemanjá existem ou não, deveria abdicar da profissão de fé de afirmar que basta boa vontade para que as pessoas com deficiência aprendam, pois se trata de uma afirmação que desafia todas as evidências científicas disponíveis e todas as práticas educacionais do mundo moderno, como podem testemunhar Finlândia, EUA, Cuba, Suécia, Inglaterra, entre outros. O decreto do Governo Federal que institui a nova Política Nacional de Educação Especial não traz em si nenhum conceito especial ou exaustivo de Educação Especial. Ele tão somente atualiza o ordenamento jurídico reconhecendo a existência das classes e escolas especializadas e o direito familiar de escolha, para que venham as Diretrizes, agora sim do órgão de direito, o Conselho Nacional de Educação, que podem estabelecer este ecossistema inclusivo ligando todos os processos de escolarização. Elas serão amplamente debatidas pela sociedade brasileira em consulta e audiência públicas, para determinar se o Brasil é de fato um país laico e seguirá as evidências científicas ou se a fé, bastando que não tenha ainda uma igreja formalizada, seja suficiente para ditar os rumos da escolarização das pessoas com deficiência do país.

* Lucelmo Lucerda é professor, psicopedagogo, doutor em Educação pela PUC-SP, com Pós-Doutorado em Psicologia pela UFSCar, pesquisador em autismo e inclusão escolar.

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