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Sem oferecer remuneração ou vínculo empregatício, municípios estão contratando educadores dispostos a trabalhar quase de graça – com uma ajuda de custo mensal de R$ 150 – no Programa Mais Alfabetização, do Ministério da Educação (MEC). A função proposta, em geral, é para trabalhar como auxiliar voluntário do professor regente, alfabetizador das séries iniciais do ensino fundamental nas escolas da rede pública. 

A iniciativa, regulamentada por uma resolução de fevereiro desse ano e em fase de implementação, está recebendo críticas de especialistas em educação. A principal delas é se, pagando tão pouco, o governo conseguirá atrair profissionais qualificados para auxiliar na alfabetização, capazes de reverter os déficits educacionais dessa fase. 

Depois, há o risco, ressaltam alguns, de que a função desses profissionais acabe sendo deturpada e essas pessoas sejam utilizadas como mera mão de obra barata. Atualmente, segundo o governo federal, 4.348 prefeituras já aderiram ao programa.

Em uma pesquisa rápida na internet, é possível encontrar vários editais de seleção de assistentes voluntários. Entre os municípios com editais abertos, estão as prefeituras de Caicó (RN), conforme reportagem já publicada pela Gazeta do Povo, e a de Irineópolis (SC). 

A cidade catarinense, por exemplo, quer preencher quatro vagas e os candidatos devem ter, no mínimo, formação de nível médio em magistério ou estar cursando pedagogia ou curso de pedagogia completo, conforme informa o edital

“O programa é nacional, estamos seguindo orientações do MEC”, diz Lillian Eliane Batschauer Ferreira, secretária de Educação do município. “Os valores repassados [os R$ 150 mensais aos voluntários] não entram nos cofres públicos, pois a transferência de recursos se dá via PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola)”, completa a secretária. 

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Esse valor, segundo informou a assessoria de imprensa do MEC, pretende auxiliar na compra dos materiais necessários e a bancar também parte das despesas com transporte e alimentação dos assistentes de alfabetização. 

A ajuda de custo também pode ser de R$ 300 por turma quando os voluntários atuarem em escolas consideradas vulneráveis; assistentes de alfabetização devem ter no máximo quatro turmas em unidades escolares consideradas vulneráveis ou oito turmas em unidades escolares não vulneráveis. O selecionado terá carga horária diária mínima de 60 minutos por turma. 

É legal? Será eficaz? 

O Programa Mais Alfabetização se apoia na Lei 9.608/1998, que regula o trabalho voluntário.

“A Lei nº 9.608/98, prevê expressamente que o serviço voluntário não gera vínculo empregatício, nem obrigação de natureza trabalhista previdenciária ou afim. Essa ressalva, por sua vez, depende do correto manejo do trabalho voluntário em consonância estrita com os requisitos e previsões legais”, enfatiza Cláudio Gadelha, procurador e coordenador da Conap (Coordenadoria Nacional de Combate às Irregularidades Trabalhista na Administração Pública do Ministério Público do Trabalho). 

Esse “correto manejo” da legislação significa evitar qualquer exigência aos educadores que deturpem a essência do trabalho voluntário e os transformem em mão de obra barata. 

“O eventual manejo fraudulento do voluntariado, como mera substituição de força de trabalho sem vínculo empregatício ou concurso público, para se negar direitos e reduzir custos, pode sim ser considerada uma forma precarizada de trabalho. Eventual manejo fraudulento do voluntariado viola não só os preceitos de trabalho decente, como os próprios princípios da administração pública”, afirma Gadelha. 

O vice-presidente do Conap, o procurador Afonso Rocha, garantiu que o Ministério Público do Trabalho (MPT) estará atento à implementação do programa para “preservar o trabalho decente, coibir as irregularidades no âmbito de suas atribuições”. 

O perigo de que algum educador acabe sendo utilizado como mão de obra barata não é apenas o único ponto de atenção do programa. Outra questão em jogo é se o governo encontrará pessoas qualificadas interessadas em prestar esse serviço praticamente de graça. 

Para o pesquisador do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), Alexandre Santos, o peso das responsabilidades, o curto prazo para capacitação e desenvolvimento das habilidades necessárias de suporte à alfabetização das crianças, especialmente daquelas que demandam por estratégias didáticas e pedagógicas mais sofisticadas, trarão dificuldades para que o dinheiro gasto nessa iniciativa traga resultados. 

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“A falta de uma boa estratégia de capacitação dos voluntários pode não ser eficaz para o alcance das metas do programa, e podendo até mesmo prejudicar os resultados iniciais. Sem melhoria efetiva, o prejuízo é o próprio investimento realizado, que poderia ser investido em outras ações comprovada e tecnicamente eficazes”, avalia Alexandre Santos, pesquisador do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). 

Segundo o pesquisador, é preciso ação de estímulo ao voluntariado. “Acredito que engessar e ditar regras rígidas de cima para baixo, sobre como deve ser o processo de voluntariado não me parece ser a melhor estratégia para construir esse engajamento”, segue.

Cenário preocupante 

Um dos argumentos do MEC para a implementação do programa Mais Alfabetização é o combate aos dados de um cenário preocupante revelado pelos resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) de 2016, divulgados pelo (Inep), no final de 2017. 

De acordo com a ANA, os níveis de alfabetização das crianças brasileiras em 2016 são praticamente os mesmos que em 2014. Os resultados revelaram que 54,73% dos estudantes acima dos 8 anos, faixa etária de 90% dos avaliados, permanecem em níveis insuficientes de leitura. Encontram-se nos níveis 1 e 2 (elementares). Na avaliação realizada em 2014, esse percentual era de 56,1%. Outros 45,2% dos estudantes avaliados obtiveram níveis satisfatórios em leitura, com desempenho nos níveis 3 (adequado) e 4 (desejável). Em 2014, esse percentual era de 43,8%. 

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O desempenho dos estudantes do terceiro ano do ensino fundamental matriculados nas escolas públicas permaneceu estatisticamente estagnado na avaliação durante esse período. Os resultados revelam ainda que parte considerável dos estudantes, mesmo tendo passado por três anos de escolarização, apresentam níveis de proficiência insuficientes para a idade. A terceira edição da ANA foi aplicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) entre 14 e 25 de novembro de 2016. Foram avaliadas 48.860 escolas, 106.575 turmas e 2.206.625 estudantes. 

Repasses 

O MEC prometeu investir R$ 523 milhões em seu programa nacional de alfabetização, para os anos de 2018 e 2019. Uma parte generosa desse total, R$ 200 milhões, será destinada ao programa Mais Alfabetização. 

“Orçamento garantido para que os municípios possam se planejar focando em qualidade e eficiência, e também agregando a figura do assistente de alfabetização, que vai auxiliar os professores nessa missão extremamente importante”, disse o ministro da Educação, Mendonça Filho (DEM-PE), na época do anúncio dos repasses. 

Os recursos para cobertura de despesas de custeio corresponderão ao valor estimado anualmente a partir do Plano de Atendimento da unidade escolar. O cálculo é feito de acordo com o número de matrículas e de turmas informados no Censo Escolar do ano anterior ao ano da adesão, consideradas as turmas com, no mínimo, dez matrículas de 1º e/ou 2º anos do ensino fundamental, informa o MEC. 

Mais sobre o programa 

O MEC implementou um sistema de monitoramento para a aferição dos resultados do Programa Mais Alfabetização. 

O monitoramento nas unidades escolares será realizado em sistema e acompanhamento específico, acessado por meio do PDDE Interativo, no qual as escolas deverão registrar as informações referentes aos professores alfabetizadores, coordenadores, assistentes de alfabetização, estudantes, turmas e plano de atendimento. Essa ação é condição necessária para participação no programa em exercícios subsequentes. 

Não responderam aos questionamentos da Gazeta do Povo sobre a aplicação dos recursos repassados, as prefeituras de Mandirituba, no Paraná, de Piranguinho, em Minas Gerais, de Itaberaí, em Goiás e Caicó, no Rio Grande do Norte.

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