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Professores, estudantes, integrantes de movimentos sociais e centrais sindicais, no Campus Maracanã da Uerj, durante ato em “defesa das universidades públicas e da educação”  | Tomaz Silva/
Agência Brasil
Professores, estudantes, integrantes de movimentos sociais e centrais sindicais, no Campus Maracanã da Uerj, durante ato em “defesa das universidades públicas e da educação” | Foto: Tomaz Silva/ Agência Brasil

No começo de 2018, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) retomou as atividades após três meses de paralisação. O movimento, motivado por atrasos salariais e falta de verbas, resultou na perda do semestre letivo — aliás, o calendário da instituição está um ano atrasado, em razão das greves sucessivas. A situação da Uerj se arrasta há três anos e foi desencadeada pela redução dos repasses da Secretaria da Educação do estado. Segundo a reitoria, entre 2014 e 2016, cerca de R$ 157,7 milhões previstos no orçamento não foram cumpridos. 

Em setembro de 2017, o governador Luiz Fernando Pezão assinou a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), com o intuito de desbloquear o acesso a verbas federais e colocar a casa em ordem. Mas o Tesouro Nacional impôs condições para liberar a quantia – cerca de R$ 3,5 bilhões. Além disso, a União sugeriu a adoção de medidas de austeridade administrativa. Uma delas foi descrita como “revisão da tarefa do ensino superior”. Muita gente compreendeu o texto como um pedido velado para o Rio de Janeiro privatizar as universidades estaduais. 

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A especulação teve o efeito de um tiro de canhão na Uerj e provocou manifestações de estudantes e professores em todo o Brasil. Se a pauta da cobrança de mensalidades em Instituições de Ensino Superior (IES) públicas é pivô de controvérsias, a desestatização soa quase como uma declaração de guerra. O tema, a rigor, pode encobrir a verdadeira batalha que deve ser travada pelas instituições em busca da eficiência administrativa.  

Gastos de primeiro mundo, resultados de terceiro

O tema privatização do Ensino Superior é constantemente retomado em momentos de crise. Na prática, porém, o debate jamais saiu da esfera especulativa. Não há projetos ligados ao tema nas instâncias federais. Além disso, diversos especialistas não consideram a medida uma saída plausível para superar os problemas do segmento. “Não conheço nenhuma proposta séria neste sentido. Em todo o mundo, governos financiam a educação superior, ainda que em níveis e formatos distintos”, afirma o cientista político Simon Schwartzman, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

A ingerência do setor privado na educação pública brasileira se limita a algumas experiências do Ensino Básico. Em 2013, por exemplo, a prefeitura de Belo Horizonte (MG) assinou uma Parceria Público Privada (PPP) para a construção e manutenção de 51 escolas municipais, sendo 46 de Educação Infantil e cinco de Ensino Fundamental. O contrato firmado com a empresa InovaBH vai até 2032 e não inclui a gestão de serviços pedagógicos. Pioneira no país, a ação adotada pela capital mineira tem se mostrado um acerto; a construção de todas as unidades foi finalizada em 34 meses, dois antes do prazo estabelecido. 

A eficiência de governança alcançada pelo setor privado é um dos principais alicerces das PPPs. E o debate em torno da privatização do Ensino Superior parte desse pressuposto. Em linhas gerais, quem aponta para a desestatização mira uma melhoria gerencial das IES públicas. Dados do Banco Mundial validam quem defende esse ponto de vista. O relatório “Um Ajuste Justo”, divulgado pela instituição em novembro de 2017, fez uma análise sobre a eficiência dos gastos públicos no Brasil. De acordo com o documento, as despesas com IES federais cresceram 7% ao ano, em termos reais, desde 2010. O número de matrículas, porém, subiu 2%. Isso significa que a elevação dos custos com alunos chegou a 5% nesse período. O nível é semelhante ao de países com o dobro do PIB brasileiro e superior ao de algumas nações europeias, como Espanha e Itália. 

Um estudo do Ministério da Educação (MEC) confirma a evolução dos gastos. Em 2009, as despesas com as IES públicas ficaram em torno de R$ 33 bilhões. O montante passou dos R$ 46 bilhões em 2016 — um aumento de 40%. Vale ressaltar que essa injeção de recursos está longe de ser injustificada. 

“A educação superior de qualidade não é apenas uma questão de investimento, mas de sobrevivência. Em uma sociedade cada vez mais tecnológica e competitiva, abrir mão disso é perder a soberania nacional”, defende a socióloga Arabela Oliven, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

O problema, entretanto, pode estar na maneira como o dinheiro é utilizado: o Banco Mundial aponta que 25% das receitas das IES federais são desperdiçadas pela má gestão. A entidade também comparou os gastos por aluno dos sistemas federal e privado. Entre 2013 e 2015, o custo médio por estudante ficou em R$ 13.725 ao ano nas instituições particulares. Já o valor das universidades federais foi de R$ 40.900. As estaduais gastaram R$ 32.200. Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), por exemplo, o custo passa dos R$ 81 mil por discente. Mas a explicação para a discrepância não pode ser colocada apenas na conta da imperícia administrativa. 

Esteio científico 

O relatório do Banco Mundial não menciona o fato de as universidades públicas concentrarem a maior parte da produção de pesquisas científicas do país. Isso, por si só, eleva os custos de modo substancial. 

“A sustentação desse trabalho exige que as universidades mantenham professores titulados e uma estrutura que é geralmente muito superior à da média do setor privado”, ressalta Roberto Lobo, consultor de ensino superior do International Entrepreneurship Center (IEC-EUA) e ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP). Boa parte das pesquisas feitas por essas instituições são dirigidas ao governo e aos setores produtivos, revertendo benefícios tangíveis e intangíveis ao mercado. 

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A excelência acadêmica é mesmo um dos pontos fortes das IES públicas. Não à toa, elas dominam a maior parte das avaliações de desempenho. Um ranking organizado recentemente pelo jornal Folha de São Paulo, por exemplo, tem apenas duas universidades privadas entre as 30 primeiras posições. Já a lista elaborada pela revista Times Higher Education (THE) apresenta quatro instituições públicas brasileiras entre as 10 melhores da América Latina. No levantamento de 2017, a liderança ficou com a Universidade de Campinas (Unicamp), que tomou o posto antes ocupado pela USP. Ambas são mantidas com verbas estaduais. 

Apesar de perder a liderança, a USP foi considerada pela THE como o melhor ambiente de pesquisa entre as instituições analisadas. “As universidades estatais desenvolvem a maior parte da pesquisa nacional e é justamente o caráter público que lhes dá condições para definir os trabalhos que atendem os interesses da sociedade”, reforça Arabela Oliven, da UFRGS. Por outro lado, isso não as exime de apresentar deficiências de gestão.  

Estrutura inchada 

O governo de São Paulo destina cerca de 4% do ICMS do estado para financiar a USP. Em 2018, o orçamento da instituição ficou em torno de R$ 5 bilhões. É pouco menos do que a verba de custeio reservada pelo MEC para todas as universidades federais do país — R$ 5,9 bilhões. Ainda assim, para 2018, a instituição de ensino projeta um déficit superior a R$ 287 milhões. Será o quinto ano consecutivo no vermelho. Até aqui, a universidade tem utilizado uma reserva técnica para cobrir os rombos — mas a fonte está secando, e a poupança deve abrir 2019 com menos de R$ 25 milhões disponíveis. Em 2013, o saldo passava de R$ 3 bilhões. 

A sangria da USP começou na virada da década, quando a folha de pagamento inchou depois da concessão de benefícios além da inflação. O valor do vale-refeição, por exemplo, subiu 74,16% entre 2010 e 2013. Já a inflação no período foi de 24,16%. O quadro de funcionários, por sua vez, passou de 16.185 para 17.448. As informações foram reveladas na publicação “Universidade em Movimento: Memórias de uma Crise", organizada por Jacques Marcovitch, ex-reitor da USP. Entre outros temas, a obra aborda os problemas administrativos vividos pela instituição. Hoje, a USP gasta mais de 97% de seus recursos com pessoal. 

O funcionalismo é, de longe, a conta mais pesada das IES públicas. No Paraná, essa rubrica representa 98% do orçamento das universidades estaduais. Uma das soluções indicadas pelo Banco Mundial para diminuir o gasto é não substituir os profissionais aposentados e aumentar o número de estudantes por docente. Mas há visões mais amplas em relação ao problema, que identificam uma distorção conceitual no desenho do ensino superior estatal. 

Apesar de a excelência do setor derivar do capital humano, o modelo de aproveitamento da força de trabalho pode estar equivocado. Isso porque os professores recebem por tempo integral, embora nem todos se dediquem de modo permanente às universidades. 

“Imagina-se se que eles deveriam trabalhar o tempo todo, dando aulas e fazendo pesquisas, mas isso não acontece. Só uma parcela pequena efetivamente faz pesquisa de qualidade”, afirma Simon Schwartzman. A saída para isso pode estar na mudança do paradigma de atuação das universidades.  

Caminhos possíveis 

O país poderia estabelecer diferentes classes de universidades públicas, tornando algumas delas mais enxutas e eximidas das tarefas de pesquisa. “Em nenhum país do mundo o Ensino Superior é todo oferecido por universidades de pesquisa. Não haveria recursos suficientes para isso. Nesse modelo, as instituições públicas estão fadadas a estagnar”, prevê Roberto Lobo, do IEC-EUA. O consultor vai além e traça um paralelo com a atuação das entidades privadas. 

As universidades pagas representam quase 88% do Ensino Superior brasileiro, conforme o Censo da Educação Superior de 2016, organizado pelo MEC. Em 1998, o percentual era de 62%. O crescimento se acentuou nos últimos dez anos, a partir do impulso dado por políticas públicas de fomento à formação superior, como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Mas a qualidade dessa expansão pode ser relativizada. “Há uma grande amplitude de matrículas em instituições privadas com fins lucrativos que aplicam mensalidades insuficientes para sustentar um ensino com a qualidade mínima desejada”, diz Lobo. As universidades públicas, segundo ele, teriam condições de ocupar esse espaço. 

O ex-reitor da USP coloca em xeque a enorme oferta de vagas privadas de baixo custo e sugere a criação de um programa estatal de universidades sem pesquisa que obedeçam ao mesmo molde. “Se não for possível ter um bom ensino superior a esses custos, então por que o governo permite seu funcionamento?”, contesta. Outra possibilidade é a alteração do regime jurídico das organizações, convertendo-as em entidades públicas de direito privado. 

Nessa condição, as universidades continuariam pertencendo ao poder público, mas obedecendo a normativas comuns ao direito privado e com maior maleabilidade administrativa. “Muitas das principais universidades americanas e inglesas, por exemplo, são geridas como fundações que fazem uso de recursos públicos e privados obtidos pelo desempenho de suas atividades”, explica Schwartzman. As Organizações Sociais (OS) operam em um modelo semelhante, embora possuam caráter privado. 

Em 2017, o presidente Michel Temer chegou a ventilar a possibilidade de transformar as universidades públicas em OS, com o intuito de ampliar os horizontes de governança e de captação de recursos. Não chegaria a ser uma novidade. Isso porque o país já possui algumas experiências exitosas na área: entre 2001 e 2011, o governo de Pernambuco repassou a administração de 20 escolas de Ensino Médio de período integral para instituições privadas sem fins lucrativos. 

A estratégia turbinou a qualidade do ensino e derrubou a taxa de desistência — de 24,5% para 3,5%. O estado desativou o projeto para não criar ilhas de excelência no ensino público. Em 2016, o governo de Goiás iniciou um processo semelhante, mas vem sofrendo embargos legais por parte do Ministério Público.  

Maleabilidade e eficiência 

As OS também estão no Ensino Superior. Um dos melhores exemplos é o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), localizado no Rio de Janeiro. O Impa foi fundado em 1952, com a proposta de fomentar o ensino e a pesquisa no campo da matemática. À época, a entidade era um órgão público ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). A mudança de caráter social ocorreu em 1991. A partir de então, o Impa firmou contratos com o MCTIC e com o MEC para continuar desenvolvendo suas atividades. A instituição oferece mestrado e doutorado, programas de especialização para professores e cursos livres. Com exceção de alguns desses cursos, as demais modalidades são gratuitas. 

Atualmente, o Impa possui 190 alunos – cerca de 100 deles no doutorado. Todos recebem bolsas de organismos federais, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq). O contrato com a União cobre a maior parte do orçamento da entidade, definido em R$ 93 milhões para 2018. Em contrapartida, o Impa deve cumprir 18 metas anuais, divididas em áreas como pesquisa, ensino, divulgação científica e Educação Básica. 

Os objetivos são acordados com a União. “A iniciativa parte dos dois lados. Algumas metas são da vontade e da própria natureza do instituto. Já outras vêm por demanda”, explica Marcelo Viana, diretor geral do Impa. Um dos programas de maior abrangência é a Olimpíada Brasileira de Matemática (OBMEP). Dirigida a escolas públicas e privadas brasileiras, a ação foi criada em 2005 para incentivar o estudo da disciplina e envolve mais de 54 mil instituições. 

A OBMEP é um case de eficiência do Impa. Ao todo, a iniciativa abrange mais de 18 milhões de estudantes. O custo não chega a R$ 2 por aluno. Isso se deve à autonomia gerencial da entidade. Como OS, o instituto não está sujeito a licitações. “Conseguimos preços mais baixos do que os órgãos públicos. A busca por valores competitivos resulta em economicidade real”, diz Viana. 

Outro exemplo é o quadro de funcionários: o Impa não possui servidores públicos. Eles são vinculados à CLT. O diferencial permite uma maior maleabilidade para contratações. “É importante na área de pesquisa, pois podemos trazer especialistas para trabalhos pontuais”, destaca Viana. Já o vínculo com os docentes dura quatro anos. E isso não diminui a qualidade do quadro de colaboradores. Um exemplo é o matemático Artur Avila. Em 2014, ele venceu a Medalha Fields, considerada o Nobel da Matemática. Avila mora na França e leciona apenas seis meses por ano no Impa. Se operasse com uma gestão rígida, como a maior parte das IES públicas, o Impa não teria como contar com esse tipo de profissional. 

O modelo da instituição também atrai o interesse de professores estrangeiros. A última seleção disponibilizou duas vagas e reuniu 43 candidatos de 27 nacionalidades. Essa flexibilidade se estende à captação de recursos. A OS recebe doações vultosas da iniciativa privada. Os aportes se dividem entre os de livre alocação e aqueles com finalidades específicas, como a pesquisa científica numa área determinada pelo financiador. O salário de Artur Avila, por exemplo, é pago por uma doação de Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central. 

Anualmente, contas da universidade passam por dois tipos de auditoria, interna e externa. Além disso, o Impa é gerido por um Conselho de Administração formado por membros de diversas áreas da instituição e oriundos de organizações públicas e civis – como o CNPq e a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). O instituto chegou a considerar a possibilidade de privatização quando houve o debate sobre a mudança da natureza jurídica. Após 17 anos, a entidade avalia como positiva a decisão de ter se transformado em OS. 

“Continuamos fazendo as mesmas coisas, mas muito melhor e em um patamar de qualidade que talvez nunca tivéssemos conquistado como órgão público”, define Viana. “O conceito pode ser contestado por questões ideológicas, mas não se pode discutir a eficiência do nosso modelo.”

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