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UEL registra caso de intolerância ideológica
UEL registra caso de intolerância ideológica| Foto: : José Fernando Ogiura/ANPr

Na Universidade Estadual de Londrina (UEL), uma das maiores instituições públicas de ensino superior do Paraná, a intolerância ideológica pode ter sido a causa do encerramento de um projeto que buscava justamente promover maior pluralidade dentro do ambiente universitário. A denúncia é feita pelo professor Gabriel Giannattasio, que desde 1994 faz parte do Departamento de História da universidade.

Segundo ele, desde o início do projeto, criado no final de 2017, houve falta de apoio das instâncias oficiais da UEL, e boicotes organizados por movimentos de esquerda existentes dentro da universidade. Em 2020, o pedido para a prorrogação do projeto acabou sendo negado pelo Conselho de Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH) da UEL, colocando fim às atividades da Casa da Tolerância. Para o professor, o desfecho seria mais uma prova de que a intolerância de pensamento ronda a comunidade universitária.

Procurada, a reitoria da UEL não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre o projeto Casa da Tolerância nem sobre os supostos casos de intolerância ideológica ocorridos dentro da universidade e se limitou a dizer por meio de nota que “preza pela pluralidade de ideias e pela liberdade de pensamento e que em 2019 o Conselho Universitário, principal órgão da instituição, aprovou resolução específica sobre a liberdade de cátedra”.

Pluralidade

A ideia inicial do projeto de extensão Casa da Tolerância era promover atividades que pudessem incentivar o debate entre correntes distintas de pensamento dentro do ambiente universitário. “Desejávamos apresentar a universidade como um exemplo a ser seguido pela sociedade, um microcosmo fundado na liberdade de pensamento, no direito ao contraditório, no debate respeitoso e civilizado das ideias”, explica o professor. Rapidamente, a ideia mostrou-se de difícil execução.

Entre as atividades propostas pelo projeto, em 2018, estava a realização de mesas-redondas e debates entre professores da área de Ciências Humanas da UEL e especialistas de diversas áreas. Mas a ação não pôde ser realizada simplesmente porque não houve interesse. Ninguém queria sentar-se à mesa de debate com alguém que pertencia a um campo ideológico distinto do seu.

Professores que se identificavam com o pensamento de esquerda não aceitavam debater com professores conservadores. Progressistas não queriam ouvir o contraponto conservador. A programação acabou sendo cancelada. “Foi quando começamos a nos dar conta de que a situação era mais grave que aquela inicialmente imaginada”, lamenta Giannattasio.

Estudantes que integraram o projeto também perceberam resistência. Otávio Humberto Pfau Pedriali, administrador de empresas formado pela UEL, conta que desde os primeiros dias de aula percebeu que o ambiente universitário não apresentava espaço para debater diferentes visões de mundo e por isso se interessou pela Casa da Tolerância.

“O projeto foi recepcionado com hostilidade pela comunidade acadêmica desde o início, quando boicotaram nossos eventos. O tratamento raivoso e intolerante com que fomos recebidos já atesta o que nos propúnhamos a estudar: a UEL, de fato, não é um ambiente tolerante com ideais divergentes”, ressalta.

Mapeamento

Paralelamente, a Casa de Tolerância começou a ser vista como um referencial para a exposição de casos de intolerância dentro da universidade. Estudantes e professores que passaram por situações de desconforto e isolamento no ambiente universitário depois de declarar seu posicionamento ideológico ou crença religiosa buscaram o projeto para denunciar a situação. Todas as denúncias foram registradas na Ouvidoria da UEL, órgão responsável por fazer a averiguação e encaminhamento dessas situações.

Na tentativa de compreender melhor o histórico da situação, a Casa da Tolerância também se propôs a realizar um levantamento de casos com indícios de intolerância ideológica dentro da UEL, no período de 2009 até o início de 2019. A pesquisa tomou por base os arquivos de processos, queixas e sindicâncias motivados por intolerância registrados no Sistema de Arquivos da UEL (Sauel).

Um dos casos listados no dossiê mostra uma queixa falsa, de teor ideológico, feita contra três professores e dois estudantes de Medicina da UEL. Na denúncia, encaminhada de forma anônima ao Colegiado do curso, os cinco são acusados de “ferir o Código de Ética Médica ao apoiarem tortura e desrespeitarem os direitos humanos”. A denúncia, sem fundamento, acabou arquivada.

Um dos estudantes citados foi Dalton Alexandre Burci Ferreira, na época um dos articuladores do grupo UEL Livre, que reunia estudantes que se identificavam com o pensamento liberal ou de direita.

“Parece que aquele livro do George Orwell, 1984, virou uma realidade. Ninguém tem liberdade de se posicionar. Eu mesmo já deixei de me manifestar, me afastei das redes sociais para evitar esse desgaste”, conta.

O relato documentado dos casos foi transformado em um dossiê, entregue ao reitor da universidade, Sérgio Carlos de Carvalho, durante reunião dos integrantes da Casa da Tolerância com a reitoria em março do ano passado. Segundo o professor Giannattasio, a entrega do dossiê foi um gesto simbólico. “Entendíamos que, para além das ideologias, o intelectual no exercício de sua função pública deveria ser capaz de reconhecer a gravidade do problema e agir”, conta. Segundo ele, não houve retorno da universidade em relação ao material.

 “Fascismo”

A partir da entrega do relatório, o projeto passou a sofrer intensa campanha contrária por parte de organizações estudantis de esquerda. Além de eventos paralelos marcados para esvaziar as atividades da Casa da Tolerância, manifestações hostis tachando o projeto de “fascista” começaram a surgir dentro da universidade e nas redes sociais. Estudantes e professores que participavam das iniciativas da Casa eram expostos de forma pejorativa, simplesmente por fazerem parte do projeto.

Duas semanas após a entrega do dossiê da Casa da Tolerância, o movimento estudantil se reuniu com reitor Sérgio Carlos de Carvalho e se declarou contrário ao projeto. Uma nota de repúdio ao projeto, intitulada “O fascismo travestido de tolerância” foi divulgada. Na nota, se tentava associar as atividades da Casa da Tolerância com o movimento fascista, ideologia política ditatorial e ultranacionalista italiana.

Segundo os autores da nota, o projeto seria uma “tendência militarista de aumentar o controle para evitar que os jovens possam exercitar a liberdade de pensamento e de crítica, banindo das universidades qualquer resquício de rebeldia e defesa dos interesses dos trabalhadores e da nação”.

Mesmo não fazendo parte do projeto Casa da Tolerância, a biomédica Maiara Piva, que cursava mestrado em Genética e Biologia Molecular na UEL, acompanhou o caso. Ela relata ter percebido que a postura liberal dentro da universidade é encarada muitas vezes de forma pejorativa. “Os estudantes acreditam erroneamente que ser de direita envolve apoiar ideologias criminosas como o fascismo ou o nazismo, ou ainda que tenhamos algum saudosismo ou negacionismo em relação à ditadura militar”, explica.

Para ela, essa ideia equivocada faz com que alguns estudantes tenham medo de se posicionar por receio de serem excluídos ou tachados negativamente, além de prejudicar a formação profissional e humana dos jovens.

“Ser de direita confere aos alunos um rótulo instantâneo de má pessoa, e isso não poderia estar mais distante da realidade. Já os estudantes [que aceitam a doutrinação de esquerda] acabam entrando no mundo profissional com certezas equivocadas que foram moldadas para servir a uma agenda política específica”, ressalta.

Corredor polonês

Um dos episódios mais lamentáveis envolvendo o embate entre integrantes de movimentos de esquerda contra iniciativas da Casa da Tolerância e outros grupos conservadores da UEL, foi a exibição do documentário “1964: o Brasil entre armas e livros”, promovido pelo grupo UEL Livre – que reunia estudantes liberais – em abril do ano passado.

Para acessar e sair da sala de exibição, no Centro de Ciências Humanas da UEL, o público precisou passar por dezenas de estudantes de esquerda, que gritavam palavras de ordem, xingavam, cuspiam e faziam gestos obscenos às pessoas. Vídeos que circularam pela internet atestam a situação absurda.

“Uma senhora da idade acabou desmaiando”, conta Dalton Alexandre Burci Ferreira. Segundo ele, membros do movimento estudantil de esquerda chegaram a simular afogamentos com baldes d’água, numa alusão à prática de tortura usada durante a ditadura militar. “Quem assistiu ao documentário sabe que não tem nada a ver com a defesa da ditadura. Ninguém estava fazendo apologia à tortura”, desabafa.

Alunos de esquerda simulam ato de tontura durante exibição de documentário promovido pelo grupo UEL Livre. Crédito: Casa da Tolerância/Reprodução
Alunos de esquerda simulam ato de tontura durante exibição de documentário promovido pelo grupo UEL Livre. Crédito: Casa da Tolerância/Reprodução

João Vitor Angeli Gouveia, estudante de agronomia, conta que a administração da UEL pouco fez para impedir os ataques.

“Tomamos tapa, cuspe e a universidade não deu nenhum apoio. Até chamamos a polícia, mas a polícia foi proibida de entrar na universidade”, relata.

Para ele, há tratamento desigual quando há conflitos envolvendo grupos de esquerda e de direita dentro da universidade.

“Eles ficam de olhos fechados quando é de esquerda e de olhos muito abertos quando é de direita. Então, quem é de direita não tem nenhuma voz dentro da universidade, desde professores até alunos”, diz.

O fim da Casa da Tolerância na UEL

Depois de dois anos, o projeto Casa de Tolerância teve seu pedido de prorrogação reprovado pelo Conselho de Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH) da UEL, sendo, portanto, oficialmente encerrado.

O pedido de renovação do projeto por mais 12 meses foi apresentado em dezembro de 2019, sendo posteriormente aprovado pela Comissão de Extensão Departamental em março de 2020 e em abril pela Comissão de Extensão do Centro de Letras Ciências Humanas da UEL. O trâmite legal seria a votação do pedido pelo Conselho de Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH) da UEL.

Na reunião do Conselho, realizada em abril deste ano, os conselheiros disseram não ter elementos suficientes para avaliar o pedido de prorrogação e aprovaram a criação de um grupo de trabalho para analisar melhor o projeto. A principal justificativa, constante na Ata da Reunião do Conselho, era de que o pedido de prorrogação e o relatório de atividades do projeto Casa da Tolerância, enviado por Giannattasio, não estavam de acordo com as normas vigentes.

O pedido de prorrogação foi votado na reunião seguinte do CLCH, em maio de 2020 e reprovado por unanimidade. A conclusão do Conselho foi de que o relatório de atividade do projeto seria “inconsistente”, não contendo informações como número de estudantes participantes, público-alvo atendido, instrumento de avaliação, entre outros itens. O documento também questiona a realização do levantamento de casos de intolerância dentro da UEL, uma vez que o mesmo não estava previsto na proposta inicial do projeto.

Giannattasio conta que tentou recorrer da decisão do Conselho, apresentando um relatório mais detalhado das atividades da Casa da Tolerância, mas a decisão pela não renovação do projeto foi mantida. Para ele, a decisão não foi técnica, mas ideológica.

“Ficou evidente que a intolerância ideológica é um problema real que foi documentado e se tornou público. E agora as instâncias superiores de avaliação da universidade realizaram a mais completa inversão de valores: quem expôs o problema deve ser punido e censurado. E por isso a prorrogação foi indeferida”, afirma.

Por meio da Coordenadoria de Comunicação Social, a UEL não deu detalhes sobre o processo de prorrogação do projeto Casa da Tolerância nem se posicionou a respeito do possível viés ideológico da decisão, levantada pelo professor. Por meio de nota, a UEL apenas confirmou que o projeto não foi renovado e que a Pró-reitoria de Extensão, Cultura e Sociedade (PROEX) ainda aguarda a apresentação do relatório final do coordenador do projeto.

“É nítido que temos trabalhado muito dentro do projeto. Todo esse engajamento não tem sido visto com bons olhos por alguns professores, pois estamos juntamente mostrando que não há tanta liberdade dentro da nossa universidade como tanto falam”, salienta Emanuel Evangelista, estudante de Pedagogia e participante da Casa da Tolerância.

Para ele, a universidade deveria permitir outros tipos de posicionamento, sem nenhum tipo de constrangimento ou coação para direcionar o pensamento dos alunos. “A nossa defesa é esta – retomando o pensamento iluminista de Voltaire: ‘Posso não concordar com uma só palavra sua, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-la’”, salienta

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