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Para apresentar argumentos contrários à “Escola Sem Partido”, a Gazeta do Povo entrevistou o doutor em Educação, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense e integrante da Frente Nacional pela Educação, Fernando Penna.

Confira também o que disse o procurador do Estado de São Paulo e fundador e coordenador do Movimento Escola sem Partido, Miguel Nagib.

O debate sobre a “Escola sem Partido”

Projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados e no Senado discutem a chamada “doutrinação” nas escolas e dividem pais, professores e a sociedade em geral.

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Como o senhor avalia a proposta da Escola sem Partido?

Fernando Penna: O que venho argumentando é que é um projeto que, a princípio, fala sobre a ética profissional do professor. Mas o principal problema é que ele não envolve os professores na discussão. Os professores não foram chamados para participar da tramitação e das audiências públicas que aconteceram. Então, esse é um primeiro dado que eu acho que tira a legitimidade do projeto.

Outro ponto é que é um projeto que está vinculado a um movimento. Um movimento que insiste que os professores não são educadores, que eles não podem falar sobre a realidade do aluno, que eles não podem discutir valores em sala de aula. Então, eu tenho chamado de um projeto de escolarização, que remove da escola o seu caráter educacional. E esse é um ataque grave, porque a dimensão educacional da escola é muito importante. Quando você fala que o professor não é educador, isso é uma afronta direta a esse coração da nossa profissão.

Isso, vinculado ao discurso deles nas redes sociais, que é um discurso de ódio voltado aos professores, explica um pouco da reação contrária dos professores ao projeto.

Nesta linha, a Escola sem Partido seria a escola de um partido único. É essa sua visão?

Não sei nem se é uma escola de um partido único. Na verdade, é uma escola na qual você não poderia ter discussões importantes para a formação cívica dos alunos, formação para a cidadania, do cidadão crítico.

O primeiro critério que eles colocam para identificar o professor doutrinador é: “você pode estar sendo vítima de doutrinação ideológica quando seu professor se desvia frequentemente da matéria, objeto da disciplina, para falar o noticiário político internacional”.

Como o professor não pode discutir o que está acontecendo na sociedade? Qualquer professor sabe que os alunos, na segunda-feira, chegam perguntando sobre a polêmica que está acontecendo. Então, essa retirada seria uma escola sem vida, sem debate, seria uma ameaça muito grande à uma educação que é a educação que os professores defendem.

Caso a proposta venha ser aprovada, qual prejuízo ela pode trazer para a educação, para a formação dos alunos?

Quando você fala que o professor não pode realizar nenhuma atividade que possa ir contra a crença de qualquer uma das famílias, várias temáticas seriam tabus. E qual é o mecanismo que eles criam para coibir isso: o aluno poderia denunciar anonimamente o professor. A escola, enquanto espaço de debate, seria arruinada. Como o professor poderia pensar debates que não fossem contra a crença de nenhum dos alunos em turmas super-heterogêneas, ainda mais imaginando que ele poderia ser denunciado anonimamente, injusta ou justamente? Isso fragilizaria a escola enquanto espaço de debate. Essa, eu acho, é a ameaça maior. Como a escola vai ser este espaço de debate se o professor não tem liberdade de expressão, não pode usar um pluralismo de concepções pedagógicas, não tem a sua liberdade de ensinar?

Como consequência, então, isso traria prejuízos à formação do cidadão?

Com certeza. Eu já participei de debates com pais e, quando eles veem essa apresentação, eles falam: “essa não é a escola que eu quero para o meu filho. Eu não quero que o meu filho não tenha acesso à uma série de debates, eu quero que ele debata tudo”. Eu acho que essa é uma ameaça importante.

Acompanhamos uma palestra sua na qual o senhor comentou sobre a questão de a proposta levar o valor privado das famílias para o valor público. Pode voltar a este ponto?

Um dos fundamentos do projeto é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. E ela, no seu artigo 12, fala que os pais ou tutores têm direito a que seus filhos recebam a educação moral e religiosa de acordo com suas crenças. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos visa proteger as famílias em seus espaços privados da intervenção do estado.

Eu defendo que as famílias, no espaço privado, têm todo o direito de educar seus filhos de acordo com seus valores. Agora, o equívoco está em transpor isso para uma prestação de serviço, para uma escola pública. O pai não pode, de acordo com as suas crenças, tentar censurar o que é dito na escola. Porque a escola é o espaço de formação para a cidadania. Você tem que aprender a conviver com outros valores, com a diferença, e se o professor não puder discutir essas temáticas, como fica essa formação para a cidadania?

[Deve-se] respeitar o direito dos pais a educarem seus filhos no espaço privado de acordo com seus valores. Mas, esses filhos, quando vão para a escola pública, não podem se negar a dialogar com os valores dos outros. Isso é muito importante para a formação, para o convívio no espaço democrático.

O senhor também falou sobre a inconstitucionalidade de alguns pontos da proposta e da sua impossibilidade de aplicação. Pode retomar esta questão?

O projeto se propõe a determinar quais são os princípios que orientam a educação nacional. Só que esses princípios já estão estabelecidos na nossa constituição. Quando analisamos quais são os princípios do projeto, percebemos que eles estão amputando dispositivos constitucionais.

A constituição fala em pluralidade de ideias e concepções pedagógicas, mas eles vão e retiram o pluralismo de concepções pedagógicas. Eles falam na liberdade de aprender do aluno e excluem a liberdade de ensinar do professor, chegando ao extremo de dizer que o professor não tem liberdade de expressão em sala de aula.

Quando eles se propõem a proibir a prática de doutrinação ideológica e não definem o que é isso. Como proibir uma prática sem defini-la?

O artigo terceiro do projeto nº 867/2015, que é o que está tramitando na Câmara, quando diz que quer proibir o professor de realizar qualquer atividade que possa ir contra a crença de qualquer uma das famílias. Isso é inaplicável, então é inconstitucional.

E não sou eu quem estou falando. Muitos juristas têm argumentado que um dos maiores problemas do projeto é usar termos sem definição clara, é contradizer o que já está estabelecido na constituição. Os argumentos são múltiplos.

Um dado importante é o de que o Ministério Público já se posicionou afirmando a inconstitucionalidade do projeto, a AGU [Advocacia Geral da União] também já se posicionou e o projeto recentemente foi denunciado por uma associação de diretos humanos à ONU [Organização das Nações Unidas] por desrespeitá-los. Acho que já tem um corpo consistente de crítica à questão da constitucionalidade do projeto.

Qual é a avaliação que o senhor faz da escola, hoje? Ela faz esta doutrinação que os defensores da proposta apontam?

Primeiro, temos que definir o que está sendo chamado de doutrinação. Quando eles dizem que doutrinar é falar sobre a realidade do aluno, eu não acho que seja doutrinação. Para mim, isso é educar. Então, a primeira etapa é pensar o que está sendo chamado de doutrinação.

Segundo: quais são os dados usados para dizer que esta doutrinação existe? As pesquisas que eles citam são muito fracas, são formuladas de maneira tendenciosa, eu não as vejo como um recurso.

Agora, se a opinião pública julga que existe esse problema, o que não temos base de pesquisa empírica para justificar, volto ao ponto que falei no início: podemos discutir a ética profissional dos professores, mas eles têm que ser incluídos nesta discussão desde o início. Coisa que não foi feita com o projeto, que vem com o nome de uma associação que divulga discursos de ódio voltados ao professor.

Precisamos discutir o que, precisamente, é este termo doutrinação? Quais são os dados que dizem que este é um problema nacional?

Se isto é visto como um problema, vencido este projeto da Escola sem Partido, que é ilegítimo por tudo o que já falei, creio que nenhum professor se negaria a fazer uma discussão com a sociedade civil sobre os limites da sua ética profissional. Mas uma discussão que tem que incluir esses professores.

É possível ao professor e à escola educar, formar um cidadão crítico e consciente sem aplicar ideologia, seja ela qual for?

O termo ideologia é problemático, mas eu acho que é possível que o professor forme para a cidadania sem, por exemplo, sem fazer propaganda partidária – um dos elementos que aparecem no projeto. Eu não acho que o professor deva fazer propaganda partidária em sala de aula, isso é algo que pode ser discutido. Agora, muitos elementos ali se misturam com o que a gente chama de educação. Então, a gente tem que definir bem o que estamos chamando de doutrinação e, discutindo a questão da ética profissional do professor, incluir os professores. Eu tenho certeza que os professores seus sindicatos, seus grupos de pesquisa nunca se negariam a fazer essa discussão com a sociedade, mas eles precisam ser incluídos.

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