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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Pegue um livro. Não precisa ser um romance de mil páginas escrito por um irlandês genial. Pode ser um livrinho de 120 páginas sobre um grupo de jovens arrancados de suas rotinas para lutar na Primeira Guerra Mundial. Quando o escritor sabe lidar com as palavras e consegue colocar você dentro de uma situação ou da cabeça de um personagem – também é isso que faz um texto ser “complexo” –, o cérebro vai acionar regiões responsáveis pela experiência vivida e isso é absolutamente incrível: significa que ler um livro bom sobre a Primeira Guerra pode fazer você experimentar o conflito de certa forma. Não como se estivesse enfiado as botas na lama europeia, mas algo relativamente próximo disso.

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Descobertas assim foram feitas nos últimos anos por uma série de pesquisas envolvendo neurociências, psicologia e linguística.

59% de todos os links compartilhados em redes sociais nunca foram clicados por ninguém. Isso significa que seis em dez pessoas compartilham textos que não leram

Quando você lê algo desafiador, o cérebro avança sobre território virgem. Ele abre caminho a facão. Se o texto é capaz de fazer você sentir e pensar em coisas e de se envolver com personagens e situações, mais tarde, quando você se deparar com uma situação em que precisa acessar essas coisas em que pensou e que sentiu, ao escrever um texto, por exemplo, o seu cérebro vai saber por onde ir e vai levar você com ele.

Pesquisa

A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil – feita com mais de 5 mil entrevistados – não esconde que os índices de leitura não são lá motivo para fogos de artifício. Há muita lenha a queimar até que se tenha um país de leitores, com tudo o que demanda dessa conquista. Mas há avanços – e eles estão lá, nas entrelinhas, em pelo menos um a cada dez itens do levantamento.

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Foram duas pesquisadoras da Universidade da Flórida em Gainesville que chegaram a essas conclusões, Yellowlees Douglas e Samantha Miller. Elas realizaram um estudo em que conseguiram provar que a leitura de textos com vocabulários e sintaxes complexos torna você um escritor melhor.

O resultado da pesquisa acaba de ser publicado pelo International Journal of Business Administration e inspirou o texto “O que você lê importa mais do que você pensa”, de Susan Reynolds, para o “Psychology Today” e publicado também no “Quartz”.

A própria Reynolds é autora de livros que tratam de neurociência aplicada a objetivos específicos, o mais novo deles, “Fire Up Your Writing Brain”, usa pesquisas para aprimorar habilidades de escrita.

“Estudantes [com idades entre 23 e 42 anos] que leem publicações acadêmicas e textos de ficção e de não ficção escreveram com sintaxe mais sofisticada (com frases mais elaboradas) do que aqueles que leem só livros de gênero (mistério, fantasia ou ficção científica) ou exclusivamente plataformas na web como Reddit, Tumblr e Buzzfeed”, escreve Reynolds. O melhor desempenho foi de quem lê publicações acadêmicas. O pior, de quem se fia apenas em conteúdo taquigráfico para a web.

Exercício

Dá para imaginar um futuro em que médicos perguntarão para o paciente: “Você fuma? Faz exercícios regularmente? Pratica leitura profunda?”.

Se você lê só o que não presta – e abraçar redes sociais como fontes únicas de leitura e de informação não presta –, sua capacidade de compreender o mundo, de lidar com ele e com as pessoas que vivem nele está em jogo.

Eis a questão: escrever para quê?

Por sobrevivência

“Não há como sobreviver no mundo virtual hoje sem dominar a leitura e a escrita. E as nossas relações tem passado por essa lente”, diz Julie Fank, da Escola de Escrita. “Importante: quando a gente fala em dominar a escrita, não estou falando de ‘escrever bem’. No Twitter, por exemplo, o idioma é um, no WhatsApp, o idioma é outro – e isso não tem a ver só com correção linguística, mas com o domínio do gênero textual em que a gente está atuando no momento da fala.”

Para ler melhor

“O mais importante seria perceber que ler melhora o escrever e vice-versa”, explica o escritor e professor Luís Augusto Fischer. “Quando a gente escreve é que percebe como ler melhor, e o contrário também. A dissociação entre as duas atividades é uma das causas profundas do insucesso da escola brasileira.”

Porque é preciso

Para o escritor e professor Benedito Costa Neto, há vários tipos de escrita. “Algumas mais complexas e outras menos complexas. Um indivíduo com aspirações literárias terá de enfrentar toda a tradição literária que o antecede se quiser escrever algo de qualidade. Um historiador precisa escrever, assim como o sociólogo e o antropólogo. O agente do direito precisa escrever. E a pessoa comum também deveria saber escrever, pois pode precisar compor uma mera reclamação sobre um produto que comprou e não tem habilidades de escrita.”

Tenha em mente a pesquisa feita pela Columbia University com o French National Institute, noticiada pelo “Washington Post” em junho passado: 59% de todos os links compartilhados em redes sociais nunca foram clicados por ninguém. Isso significa que seis em dez pessoas compartilham textos que não leram.

“Sim, não apenas estudos, mas a prática mostra que as pessoas andam lendo pouco, mal, pela ‘superfície’, somente as chamadas, e por aí vai”, diz o professor, escritor e pesquisador Benedito Costa Neto. “Claro que existem pessoas que leem bem e em quantidade... mas o nível de leitura geral é terrível.”

Para Costa Neto, a leitura é “uma conquista que vem aos poucos”. Ler não é apenas decifrar uma escrita. “É tentar atravessá-la, resgatar o que há de sentido nela, ter um entendimento dela. Leitura e escrita são exercícios.”

Quando a edição mais recente da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil saiu há dois meses, muitos veículos – esta Gazeta entre eles – se concentraram na estatística mais evidente: 44% da população brasileira não tem o hábito de ler.

“Claro que existem pessoas que leem bem e em quantidade... mas o nível de leitura geral é terrível”.

Benedito Costa NetoEscritor, professor e pesquisador

Citando Costa Neto, leitura é mais exercício do que hábito. Fora isso, alguns dados escabrosos apareceram de maneira discreta na pesquisa. A pesquisa aceita que a Bíblia e gibis são “obras literárias” e considera leitor alguém que tenha lido apenas um trecho de livro nos últimos três meses. Não fosse assim, a quantidade de gente que lê no Brasil seria muito, muito menor do que os 56% apurados pelo Instituto Pró-Livro. O retrato é turvo.

Leitura profunda

“Pesquisas em ciência cognitiva, psicologia e neurociência demonstraram que a leitura profunda – lenta, imersiva, rica em detalhes sensoriais e com complexidade moral e emocional – é uma experiência distinta, bem diferente da mera decodificação de palavras”, argumenta Annie Murphy Paul em texto de 2013 para a revista “Time”.

Paul escreve sobre questões científicas e chegou a falar sobre aprendizado de fetos numa daquelas palestras chamadas de TED Talks. Quando trata do efeito da leitura no cérebro, ela argumenta que a “leitura profunda” não é exclusividade de livros, mas que o objeto de papel e tinta privilegia a imersão do leitor. E é essa imersão que faz diferença.

A forma como o cérebro assimila linguagem rica em detalhes, alusões e metáforas tem a ver, explica Paul, “com a criação de representações mentais que utiliza as mesmas regiões cerebrais que seriam ativadas se a cena estivesse se desenrolando na vida real”.

Que diferenças separam quem lê de quem não lê?

O sujeito pode ser extremamente culto, ler bem e ler muito, e ainda assim ser um crápula (veja Hitler).

O fato é que ler bem faz o cérebro funcionar melhor – o que você faz com isso é outra história. Porém, existem algumas qualidades visíveis e comuns entre os leitores experientes.

“Leitores costumam ter mais vocabulário, frases mais complexas, pensamentos mais matizados, na mesma medida em que expressam ideias e valores mais sutis, menos óbvios”, diz Luís Augusto Fischer, escritor e professor. Ele é autor de “Filosofia Mínima” (Arquipélago), livro que fala justamente sobre ler, escrever, ensinar e aprender. “Dito isso, é claro que não se trata de algo absoluto nessa diferença, porque eu ainda conheci gente do mundo rural que não sabia ler e mesmo assim tinha virtudes como as que mencionei antes.”

Existem desvantagens que pesam sobre quem não lê? (E esse “ler” tem a ver com o que os cientistas chamam de “leitura profunda”.) “Claro que sim”, responde Fischer, levando em conta um critério moderno “que avalia como positiva a consciência do indivíduo sobre sua vida e a vida coletiva”.

Quem não lê, é menos consciente

“Ler e escrever proficientemente ajudam cada um a conhecer-se mais e a perceber mais agudamente seu entorno, seu semelhante, a Cidade, o Estado”, diz Fischer. “Penso mesmo que seja uma questão de cidadania”, diz Benedito Costa Neto, também escritor e professor.

Reféns dos algoritmos

Julia Fank, fundadora da Escola de Escrita, faz a defesa das redes sociais. “Estamos lendo e escrevendo o tempo todo – e temos condições de nos manter bem informados e de ter contatos com textos bons mesmo no feed de notícias do Facebook”, diz. “A questão é que somos condicionados, a partir de algoritmos, a ler apenas aquilo que já lemos e consumir apenas aquilo que já consumimos culturalmente.”

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