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Alunos fantasiados de gari e atendente de fast food: supervalorização do vestibular | Reprodução / Facebook
Alunos fantasiados de gari e atendente de fast food: supervalorização do vestibular| Foto: Reprodução / Facebook

Na última semana, uma atividade pensada como descontração das pressões do vestibular causou polêmica e indignação em uma escola particular de Novo Hamburgo, na Grande Porto Alegre: convidados a se fantasiar com roupas das profissões que seguiriam “se nada der certo”, alguns estudantes foram ao colégio como faxineiras, caixas de supermercado e atendentes de uma rede de fast food. A repercussão negativa do episódio abriu caminho para o questionamento: estamos diante de uma geração que associa certas profissões ao fracasso? 

Em meio a uma crise de relações públicas, o Instituto Evangélico de Novo Hamburgo (IENH), onde o caso ocorreu, apressou-se a lançar uma nota de esclarecimento em sua página no Facebook, em que qualificava o episódio como um “mal entendido”. De acordo com a instituição, a atividade buscava “trabalhar o cenário de não aprovação no vestibular”, e a pergunta que motivou a caracterização dos estudantes não estaria relacionada ao “não dar certo na vida”. 

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O caso, porém, já havia tomado proporções nacionais, e a nota não apaziguou os ânimos. Ligados à escola ou não, internautas encheram a página do IENH com comentários criticando a ação – até o momento, mais de 5,6 mil comentários foram registrados em resposta à nota. Uma delas, que diz ser mãe de aluna matriculada na educação infantil, lamentou a falta de “um plano de retratação”. Outro argumentou que a nota “reforçou a conivência da instituição com uma prática que tratou muitas profissões como deboche”. 

A reportagem da Gazeta do Povo ouviu a psicóloga educacional do IENH, Patrícia Neumann, que orientou os alunos do 3º ano do Ensino Médio após eles próprios escolherem a temática. Segundo ela, a atividade integrou um projeto conhecido como Dia D, que visa promover a “descontração quanto ao peso da pressão de aprovação no vestibular”, e “em nenhum momento houve a intenção de discriminar ou desqualificar profissões”. De acordo com Patrícia, em outros anos foram abordadas temáticas como o retorno à infância, filmes e a moda dos anos 80 e 90. 

A psicóloga diz que a escola está buscando preservar os estudantes após a repercussão, e garante que o constrangimento causado pelo tema já está motivando reflexão em sala de aula. “A prática de projetos sociais já acontece e é muito incentivada na escola. Novos projetos e ações em relação à temática estão sendo pensados para serem desenvolvidos junto aos estudantes”, afirma. 

Quem já passou por isso 

Em meio às críticas geradas pela atividade do IENH, uma escola de Porto Alegre também passou para o centro da polêmica. No Colégio Marista Champagnat, atividade semelhante foi realizada pelos alunos do 3º ano do Ensino Médio em 2015. Já na época, a equipe pedagógica percebeu a inadequação do tema e impediu que novas ações do tipo fossem realizadas – mas as fotos do “Se nada der certo” ocorrido ali seguiram disponíveis no site da instituição, e foram redescobertas na esteira da polêmica envolvendo a escola de Novo Hamburgo. 

O Marista Champagnat também lançou uma nota de esclarecimento nessa semana, explicando que o episódio era antigo e já havia sido trabalhado internamente na instituição. À Gazeta do Povo, a escola afirmou que os estudantes se fantasiaram de determinadas profissões “por admirá-las, por se identificarem de alguma forma ou conhecerem alguém que as exerce. Esse era o intuito”. Segundo a assessoria de comunicação, “dois jovens que abordaram essas profissões na época as exercem hoje”. 

Assim como o IENH, o colégio de Porto Alegre argumenta que a atividade foi pensada para discutir opções profissionais em caso de não aprovação – ou não realização – no vestibular. Segundo a assessoria da escola, os alunos do 3º ano de 2015, já formados, voltaram a se reunir no início desta semana com o intuito de elaborar uma carta de desculpas e esclarecer a motivação da atividade. A carta deve ser entregue aos representantes de categorias profissionais que se sentiram discriminadas. 

Atividades refletem visão equivocada

De acordo com especialistas ouvidos pela reportagem, o próprio esclarecimento das escolas evidencia uma situação mais complexa: a centralidade do vestibular e do Enem na vida dos jovens, que transforma o ensino em uma espécie de preparatório para o ingresso na universidade. “Não dar certo”, nessa visão, é não ter acesso ao curso superior.  

“A atividade realizada pelos jovens mostra, sem cinismo, as relações que objetivamente existem na sociedade”, entende Conceição Paludo, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Essas profissões são de pessoas com baixa escolaridade e objetivamente não são valorizadas”. Para a professora, o episódio chama a atenção para a desvalorização das profissões que não exigem título universitário.

Segundo Conceição, a educação historicamente direciona à formação de mentalidades adequadas à sociedade que a rodeia – e as críticas suscitadas pelo episódio seriam uma oportunidade de repensar a maneira como a escolarização lida com isso. “A atividade dos jovens nos direciona a uma reflexão mais séria sobre o que se está fazendo com a educação deles: que ser humano estamos formando para a sociedade”, diz a professora. 

Cultura do processo seletivo 

Luciano Bedin da Costa, professor de Psicologia da Educação na UFRGS, chama a atenção para o fato de que a cultura do processo seletivo é tão entranhada que não se restringe às escolas particulares, onde os índices de aprovação servem para conquistar matrículas: “uma aluna minha me contou que vivenciou uma atividade com esse mesmo nome em uma escola pública estadual. Esse ideário, é algo de que a sociedade compartilha”. 

Para o professor, é preciso deixar de lado a ideia de confronto causada pela polêmica, e aproveitá-la como uma forma de repensar a maneira como encaramos essas profissões. “Eu acho perigoso cair nessa coisa maniqueísta de bem e mal. Se colocarmos o outro como detentor do lugar de maldade, como o ‘burguês’, isso não nos ajuda a olhar o problema”, argumenta Luciano. “Esses acontecimentos são como espelhos para nós mesmos. Essa lógica de culpabilizar é uma forma de lavar as mãos”, diz.

Na opinião do especialista, uma das abordagens sugeridas pelos críticos da atividade, como convidar profissionais das áreas representadas para conversar com os alunos, pode trazer benefícios se for elaborada corretamente. “Não pode ser uma conversa para recuperar o exótico, como ir a um zoológico: é preciso utilizá-la para conseguir dialogar com o outro e ver o que ele tem a dizer sobre sua história até ali. É paliativo, porque a questão é ampla e diz respeito a toda a sociedade. Mas é pertinente”, conclui Luciano.

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