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Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash

"Já é mais do que hora" de entrarmos em discussões maduras e baseadas em achados científicos a respeito de alfabetização no Brasil. Se não o fizermos, permaneceremos prejudicando o desenvolvimento de milhares de alunos e alcançando lamentáveis patamares em rankings que aferem nosso desempenho".

Foi esse o tom de uma mesa redonda ao vivo realizada nesta terça-feira (2) entre João Batista Araujo e Oliveira, doutor em Pesquisa Educacional pela Florida State University e presidente do Instituto Alfa e Beto, e Pedro Caldeira, português, especialista em educação infantil e professor na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). A conversa foi mediada por Eduardo Calil, professor-associado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

Ainda que os achados científicos indiquem os melhores caminhos para se alfabetizar - o que não implica, necessariamente, em estabelecer métodos de alfabetização - e que esses resultados tenham sido confirmados formalmente pela comunidade científica internacional, há, entre os linguistas, quem permaneça refratário."O problema não é errar. O problema é permanecer no erro contra evidências que estão postas", afirma Oliveira.

Essa área ainda é vista como campo de batalha político-ideológica. Críticos da nova Política Nacional de Alfabetização e outras ações da Secretaria de Alfabetização do MEC, capitaneada por Carlos Nadalim, acabam por associar, por exemplo, as abordagens fônicas com governos de direita e extrema-direita. Mas os especialistas são taxativos: "essa suposição é absolutamente infundada". Leia sobre isso abaixo.

Erros conceituais

Segundo Oliveira, nossa atual condição se deve, sobretudo, a uma série de erros conceituais, deslocamento de conceitos e abusos de linguagem presentes em diretrizes elaboradas pelos governos passados, como nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de 1998 e, hoje, em determinados pontos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Durante pelo menos 20 anos, políticas públicas votadas à educação e, portanto, documentos oficiais e materiais didáticos, se utilizaram de propostas envelopadas e aglutinadas - que vão de Noam Chomsky a Emília Ferreiro, por exemplo - a respeito da alfabetização. Entenda nesta matéria publicada pela Gazeta do Povo.

Sabe-se que o linguista Chomsky foi responsável por grandes descobertas no campo da ciência cognitiva. Seus achados permitiram entender, por exemplo, que há uma pré-disposição existente de forma unânime - salvo exceções, como distúrbios - no cérebro humano para a aquisição da linguagem verbal. Isso significa que, uma vez inseridos em ambiente letrado, aprenderemos, naturalmente, a falar.

O equívoco dos linguistas, no entanto, foi exatamente a ação de deslocar os conceitos estabelecidos por Chomsky para o campo da alfabetização, considerando que esses se aplicariam ao processo de aquisição da linguagem e escrita. Além disso, somam-se outras teorias, como a Psicogênese da Língua Escrita, da psicóloga Emília Ferreiro, discípula do construtivismo do psicólogo Jean Piaget.

Como resultado, entre os educadores brasileiros consolidou-se a ideia de que a língua é um objeto social, de que crianças devem ser autônomas e aprender pela própria descoberta e que, portanto, o papel do professor se resume à mera mediação. O ensino explícito, para essa corrente de pensamento, é "totalitário" e "opressor".

Mas a mesma neurociência, que revelou que nosso cérebro é programado para adquirir a fala, esclareceu muitas das incertezas a respeito de como o cérebro aprende a ler e escrever, em meados da década de 70. O veredito: a alfabetização não se dá sem ensino explícito, sobretudo, porque o alfabeto é um código inventado pelo homem.

"É importante dizer que algumas das afirmações de Piaget, por exemplo, foram confirmadas, outras modificadas e outras, jogadas fora. Porque a ciência evolui, e isso em nada diminui a grandeza e importância de Piaget em determinados aspectos", afirma Oliveira. "Na linguagem, está comprovado que nascemos com certas programações que nos permitem fazer coisas de certa forma".

Durante a mesa redonda, o professor pontuou a relevância de se ter bons estudos, com amostragem significativa e revisão sistemática para que vereditos sejam estabelecidos a respeito do tema. "O estudo de Emília Ferreiro, alicerçado em Piaget, por exemplo, foi desenvolvido com base em uma pesquisa com 13 crianças, e 8 delas eram de classe média. Do ponto de vista científico, isso não tem credibilidade e não encontra respaldo na realidade".

Linguagem não "ingênua"

Quanto às diretrizes curriculares passadas, as quais, em nenhum aspecto, levavam em conta o que a ciência havia revelado até então, o presidente do Instituto Alfa e Beto destaca o que considera como abuso e manipulação da linguagem. Em um primeiro momento, os detalhes aparentam ser inofensíveis, mas, veladamente, são carregados de "segundas intenções".

"Durante o primeiro estágio, previsto para durar em geral um ano, o professor deveria ensinar o sistema alfabético de escrita (a correspondência fonográfica) e algumas convenções ortográficas do português - o que garantiria ao aluno a possibilidade de ler e escrever por si mesmo", diz uma parte dos PCNs. O professor chama a atenção para o fato de que a palavra destacada em negrito não teria sido colocada neste tempo verbal de forma "ingênua".

"Essas dicotomias têm, por trás, alguma intenção, que é exatamente a de colocar em questionamento a identidade de cada parte do ensino da língua", explica. "Esse termo na condicional... não é garantiria, é garante! É um uso da linguagem para se insinuar coisas que vão além do que os fatos permitem observar".

"Na área acadêmica, o abuso da linguagem, muitas vezes, passou, e passa, despercebido. Isso causa muitos problemas. As premissas falsas que aparecem em documentos oficiais levaram o Brasil a um patamar cujo custo é enorme", lamenta Oliveira.

O especialista ainda aponta para outro problema: o uso das estruturas semânticas nos Parâmetros Curriculares com o fim de diminuir a força de determinados argumentos. "Alfabetizar não é apenas ensinar códigos de língua escrita, não deve de maneira alguma ser um processo mecânico, hoje não basta apenas saber ler e escrever, mas que se saiba fazer uso da leitura e escrita", afirma, em outro momento, o documento.

"Não apenas, mas também'. Essa é uma retórica muito utilizada para se diminuir a força de algum argumento. Mas ela é, sim, alguma coisa. O 'mas que' também serve para dizer que [a alfabetização] não é importante, que não interessa, pois foi isso que aconteceu no Brasil - a ideia de que interessa apenas a compreensão, descobrir o sentido, ver os gêneros. Isso tudo aconteceu em função do abuso da linguagem", explica Oliveira.

A BNCC, documento que, quase que em sua totalidade, vai na contramão do que a neurociência preconiza, também é criticada pelo professor. "A escolha de um texto justifica-se pela qualidade da experiência de leitura que possa propiciar, e não pela possibilidade de exploração de algum conteúdo curricular. Portanto, a presença de pseudotextos, criados única e exclusivamente com objetivos didáticos, não se justifica".

"Primeiro, essa afirmação não pode passar no vestibular. Se eu não posso ter um texto didático, cujo objetivo é explorar o conteúdo curricular, então não posso ter autor de livro didático, não posso ter nada", diz. "Então, o que é que justifica a existência de livros didáticos? Esses erros conceituais prejudicam gravemente o entendimento da alfabetização".

Ensino explícito

Pedro Caldeira, por outro lado, trouxe diferentes contribuições para os linguistas durante a reunião. Fez apontamentos que contestam conceitos amplamente difundidos por Magda Soares, professora da UFMG, tida como figura emérita no que diz respeito à alfabetização no Brasil.

A professora já chegou a contestar o National Reading Panel, um dos mais robustos documentos científicos a respeito de alfabetização, elaborado nos Estados Unidos, e que incentivou a formulação de diversas políticas públicas. Entre outros itens, o documento esclarece quais sãos os componentes essenciais a serem adquiridos no processo de alfabetização, como a consciência fonológica, a consciência fonêmica, o aprendizado da decodificação e a fluência de leitura.

"Magda, no entanto, não contestou as evidências científicas do relatório, o que a incomodou foi o fato de que as recomendações levavam em conta a necessidade de haver ensino explícito, direto e sistemático", afirma Caldeira. "Isso relaciona-se com aquilo que são as ideias derivadas, por exemplo, da Psicogênese da Leitura Escrita, de Emília Ferreiro".

Para Magda, ainda, linguistas que adotam esses componentes, incluindo o ensino explícito, como preveem abordagens fônicas, são considerados "radicais". Métodos de alfabetização, segundo a professora, remetem a regras rígidas e processos puramente mecânicos.

Caldeira recorre, então, à uma imagem de, supostamente, um pai que ajuda sua filha a aprender a se equilibrar na bicicleta. "Já fiz isso várias vezes na vida. Essa imagem é perfeitamente ilustrativa para o que é um ensino direto e explícito", afirma. "Esse é um exemplo do que o método fônico pretende fazer no que diz respeito à alfabetização".

Alfabetização não tem bandeira política

Questionado sobre a associação de governos de direita e extrema-direita com abordagens fônicas, Oliveira explica que não há bandeira política na discussão do tema.

"Essa é uma área muito conturbada ideologicamente, há pessoas que têm paradigmas científicos muito diferentes. Quando entrei, me disseram para me preparar para ter inimigos", conta. "Uma das pessoas que me ensinou sobre isso, inclusive, é comunista, não é de direita. Método fônico não tem partido político, foi desenvolvido há mais de um século, tem aperfeiçoamentos, mas isso é parte do ramo científico".

"Eu não estou falando de ideologia. Não estou falando de resultados malucos que vou buscar para comprovar meus posicionamentos", corrobora Caldeira. "Pessoas que olham isso do aspecto político-ideológico não irão longe, e quem sai prejudicado em processos de alfabetização que não respeitam a forma como o ser humano funciona são crianças de classes sociais mais baixas. Todos os pesquisadores em Portugal que conheço e que trabalham nessa área são de esquerda, e todos abraçam aquilo que se designa como abordagem fônica, 100% deles".

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