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Um pouco de história: como era a educação brasileira há 100 anos
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Em um cenário, vê-se uma escola bem organizada, com turmas separadas de meninos e de meninas. Dentro de sala de aula, estudantes sentados em fila, uniformizados e disciplinados. Com a palmatória por perto, a professora cobra um ditado de latim preparado especificamente para aquela série. Em outro cenário, os estudantes estão descalços, em um prédio improvisado, em que não há divisão por sexo, nem por idade: na mesma sala de aula, estudantes de quatro séries diferentes dividem a atenção da professora que, sem qualificação adequada, se esforça para repassar um mínimo de conteúdo. Os dois retratos são verdadeiros e refletem faces diferentes da escola pública brasileira de 100 anos atrás. Em comum, o método de ensino: a repetição.

A visão romantizada da escola tradicional, com alunos asseados e professores bem-instruídos, não é totalmente falsa. Mas ela retrata apenas uma parte da realidade daquele tempo: a das zonas urbanas nos estados mais ricos. Há um século, 70% da população brasileira vivia no campo. E, no cômputo geral, uma minoria das crianças ia à escola. No Paraná, aproximadamente 20% das crianças em idade escolar de fato frequentavam uma instituição de ensino no ano de 1914, segundo estimativa das autoridades da época.

Além disso, o sistema era amplamente descentralizado. Cada estado decidia como gerir seu modelo educacional e o currículo em sala de aula. Até 1930, não existia nem mesmo Ministério da Educação. Ali, teve início uma tendência centralizadora que se acentuaria nos anos 1960, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

Na década de 1920, a escola, em muitos aspectos, pouco diferia daquela dos jesuítas, os fundadores das primeiras instituições de ensino brasileiras. A Igreja Católica ainda exercia, direta ou indiretamente, uma grande influência sobre o sistema de ensino. Mesmo com a criação de escolas públicas, no período do império, o modelo tradicional se manteve: a leitura e a aritmética eram as bases do ensino, acompanhadas de algum ensino moral ou religioso e, posteriormente, de noções de história e geografia. A educação física era rara.

Em 1921, a revista “A Escola Primária", publicada no Rio de Janeiro para auxiliar o trabalho em sala de aula, instruía os professores: "O ensino deve ser dado em aula, em conjunto, em turmas de oito ou dez alunos, lendo o professor no quadro mural a lição do dia, fazendo os alunos, em conjunto e depois cada um de por si, repetirem-na muitas vezes e em voz alta. Reproduzindo-a depois o docente por escrito e por partes no quadro preto, faça os alunos copiar as letras, as sílabas, as palavras, as sentenças uma e muitas vezes, até que possa passar ao ditado (também no quadro preto) dessas mesmas ou de outras combinações semelhantes.”

Quando eram ensinadas, a geografia e a história tinham como objetivo principal não o desenvolvimento do “senso crítico” em crianças que pouco sabem sobre a origem do próprio país, mas pretendiam situar o aluno no espaço e fornecer bons exemplos de conduta. Em uma lição sobre a Proclamação da República, por exemplo, o material é simpático a Dom Pedro II apesar de celebrar o fim da monarquia: “Diga a mestra que o nosso imperador, Pedro II, era bondoso, justo e sábio, cercava-se mesmo de brasileiros ilustres, muitos dos quais prestaram relevantes serviços à Pátria, mas o mal estava na forma de governo", orienta o material, também publicado em 1921 por “A Escola Primária”.

Como o sistema era descentralizado, alguns estados adotavam currículos diferentes. No Paraná, por exemplo, há pouco mais de um século, o governo estadual introduziu aulas de higiene pessoal, política, agronomia e economia doméstica. Mas a maior autonomia não escondia os problemas do sistema de ensino.

Verônica Branco, doutora em Educação e professora da Universidade Federal do Paraná, destaca que os professores da época não eram preparados adequadamente. “A formação dos professores era muito precária. Ainda nos anos 1960, havia a possibilidade dos professores cursarem apenas uma escola normal ‘regional’, o que significa que eles faziam o ginásio (equivalente do sexto ao nono ano) como se fosse uma Escola Normal”. Ou seja: eram professores que não tinham nem mesmo o equivalente ao Ensino Médio.

Em muitos casos, a situação era ainda mais grave, como mostram os registros históricos. “A politicagem que tudo sofisma e corrompe anulou as instruções da lei, indicando, em regra, para cargos de professores provisórios não pessoas capazes, mas sim dóceis instrumentos do partidarismo local", queixou-se, em 1914, o Diretor-geral da Instrução Pública do Paraná, Francisco Ribeiro de Azevedo Macedo. Ele prosseguiu, lamentando a falta de critérios de avaliação dos professores: "Chegando a ocasião dos exames, ninguém temia ser reprovado, havia aprovações em massa de professores quase analfabetos, salvo poucas e honrosas exceções".

Mas, há 100 anos, a educação brasileira estava perto de um ponto de transição. Foi o auge do embate entre os tradicionalistas e os integrantes do movimento “Escola Nova”, que pretendiam atualizar o currículo, dar mais liberdade ao aluno e reduzir o rigor do ambiente escolar.

O ponto mais marcante da ruptura foi o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932. O texto, assinado por figuras como Anísio Teixeira e Cecília Meirelles, pedia um projeto educacional unificado, em vez dos modelos descentralizados, e advogava por um ensino universal, laico e gratuito, pelo menos dos 7 aos 15 anos de idade. “Se a educação está intimamente vinculada à filosofia da cada época, que lhe define o caráter, rasgando sempre novas perspectivas ao pensamento pedagógico, a educação nova não pode deixar de ser uma reação categórica, intencional e sistemática contra a velha estrutura do serviço educacional, artificial e verbalista, montada para uma concepção vencida”, dizia o texto. Pela nova doutrina, o aluno passaria a ser moldado de “dentro para fora”, e não de fora para dentro.

Em outra passagem, o manifesto ecoa ideias marxistas. “A escola tradicional, instalada para uma concepção burguesa, vinha mantendo o indivíduo na sua autonomia isolada e estéril, resultante da doutrina do individualismo libertário”. O texto ainda defende o fim da separação dos alunos por sexo e cobra uma ingerência maior do Ministério da Educação. “Esse foi um movimento pela popularização da educação, que era extremamente elitista e não alcançava toda a população brasileira”, diz o professor Gilberto Lacerda, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).

Mas, para o professor católico Hermes Nery, um estudioso do assunto, o manifesto de 1932 teve consequências negativas: “Até os anos 20, quando a Igreja Católica exercia uma influência decisiva, havia um alto nível de ensino. A mudança de paradigma veio com a revolução de 1930 e a criação do Ministério da Educação, quando a educação passou a ser influenciada pelos pressupostos ideológicos do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, afirma. A mudança foi gradual; pouco a pouco, o modelo tradicional foi substituído por um sistema mais dinâmico, que prevê uma participação ativa do aluno e que deixou para trás parte do conteúdo antigo, como o ensino do latim e do francês.

A escola de 100 anos atrás era, na maior parte das vezes, precária, com professores mal qualificados e em quantidade insuficiente. Ao mesmo tempo, priorizava e incentivava algumas virtudes, como o senso de hierarquia, a capacidade de concentração, a disciplina e o autocontrole. Talvez mais importante do que o método seja o objetivo final da escola: hoje, pais e professores concordam que, se bem-sucedida, a escola vai preparar os alunos para o “mercado de trabalho” ou, com sorte, para passar no vestibular.

O próprio manifesto da Educação Nova propõe uma escola "reconstituída sobre a base da atividade e da produção, em que se considera o trabalho como a melhor maneira de estudar a realidade em geral.” Há 100 anos, ainda havia uma concepção mais humanística e menos utilitarista. "Aquela escola buscava formar o aluno como pessoa em todos os aspectos, e não apenas no técnico. A educação visava formar uma pessoa capaz de ler, refletir pensar, escrever e desenvolver suas habilidades e potenciais por inteiro", afirma Nery.

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Crédito da imagem: Arquivo da EEPG Orozimbo Maia, Campinas. Disponível em: SOUZA, R. F. Fotografias escolares: a leitura de imagens na história da escola primária. Educar, Curitiba, n.18, p. 75-101, 2001. Editora da UFPR. Link: https://www.scielo.br/pdf/er/n18/n18a07.pdf.

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