Se no governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) os militares alcançaram uma projeção política inédita desde a redemocratização, uma eventual eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para um novo mandato no Palácio do Planalto pode reduzir drasticamente a influência das Forças Armadas nos rumos do país. Essa é a principal conclusão que se extrai de discussões recentes internas do PT, algumas delas externadas em documentos e entrevistas de lideranças importantes do partido ligadas aos militares.
Nessas manifestações, ficam claros alguns planos prioritários: a retirada dos oficiais de cargos de gestão da máquina pública, no Executivo principalmente; uma “subordinação” das Forças Armadas ao poder político eleito, na forma, por exemplo, da nomeação de um civil como ministro da Defesa; a retomada de uma integração com os demais países da América Latina, com colaboração na área militar para se contrapor a supostas tentativas dos Estados Unidos de tutelar o continente; e projetos de fortalecimento da indústria militar e de desenvolvimento científico e tecnológico, incluindo pesquisa em energia nuclear.
Alguns desses objetivos foram sintetizados em duas publicações recentes do PT: o Caderno de Resoluções do 6º Congresso Nacional do partido, realizado em 2017; e também o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, editado em setembro de 2020 pela Fundação Perseu Abramo, instituição de formulação programática e ideológica do partido. Detalhes de algumas dessas ideias foram expressados pelo fundador e ex-presidente do PT José Genoino numa entrevista concedida em novembro ao site Opera Mundi – parte de suas declarações basearam essa reportagem.
Genoino, que também foi deputado federal e assessor do ex-ministro da Defesa Celso Amorim, de 2011 a 2013, voltou a ter voz ativa nas discussões do partido e deverá participar da campanha de Lula à Presidência.
Por alguns dias, a reportagem ainda tentou contato com o ex-ministro da Defesa e atual senador Jaques Wagner (PT-BA), que hoje também integra o círculo mais próximo do ex-presidente. A assessoria dele, no entanto, disse que estava em viagem pelo interior da Bahia para atuar na recuperação de locais danificados pelas chuvas e não teria tempo na agenda. Depois, informou que ele não está participando dessas discussões.
A Gazeta do Povo também conversou com o ex-ministro da Defesa Raul Jungmann, que assumiu a pasta com a saída do PT do poder após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Para ele, algumas ideias do partido e de Genoino para a área não têm sentido – os comentários dele estão no final desta reportagem.
Abaixo, algumas das intenções do PT para as Forças Armadas caso volte ao poder a partir de 2023.
Volta dos militares aos quartéis
A primeira indicação de que os militares voltariam às atividades internas e inerentes à defesa do país está na resolução do congresso petista de 2017. O documento fala em “fortalecimento e reformulação do papel das Forças Armadas, com sua dedicação exclusiva à defesa nacional e a programas de integração territorial”. A publicação de 2020, por sua vez, critica o “progressivo desvirtuamento do papel das Forças Armadas de resguardar nossa soberania”.
Em sua entrevista de novembro, Genoino foi mais claro: “Temos que imediatamente devolvê-los às funções legais de ficar nos quartéis. Eles ocuparão cargos naquelas áreas do governo que são de natureza militar, como o Gabinete de Segurança Institucional, o Ministério da Defesa e ponto”, disse.
Para ele, o afastamento dos militares das atividades políticas também deveria ser normatizada, na forma de uma quarentena – no ano passado, a proposta do novo Código Eleitoral, ainda em discussão no Congresso, chegou a propor um período de quatro anos para que militares, policiais, juízes e promotores pudessem ter direito de se candidatarem a mandatos eletivos após deixarem os cargos.
Genoino disse que isso também deveria valer para ocupação de cargos comissionados. “Essas carreiras chamadas de Estado têm que ter o bônus e o ônus. Eles só têm o bônus. Quem prende, quem processa, quem pode matar não pode se igualar com quem vai disputar eleição.”
Ele criticou duramente a “militarização” das estatais e da política, concretizada, segundo ele, na ocupação de funções de chefia no Ministério da Saúde, no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), por exemplo. “O que está acontecendo é um desastre, essa militarização do Estado, são 8 mil cargos”, afirmou.
Ministro civil e subordinação ao poder político
Em vários momentos da entrevista, Genoino censurou a influência que, no período recente, os militares alcançaram nas altas decisões do governo e até mesmo do Estado brasileiro, com a presença de generais até em funções de assessoramento de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Antes de assumir a Defesa no governo Bolsonaro, por exemplo, o general Fernando Azevedo e Silva havia sido escolhido para assessorar Dias Toffoli na presidência da Corte, em setembro de 2018. E, em dezembro último, ele foi chamado para assumir a direção-geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
No alto escalão do Executivo, o Exército tem presença com o general Hamilton Mourão como vice-presidente. E teve nas passagens dos generais Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos na Casa Civil, e do general Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, no momento mais crítico da pandemia de Covid.
Outros miliares estão em cargos estratégicos no governo: o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, é oriundo da Marinha; Marcos Pontes, da Ciência e Tecnologia, veio da Aeronáutica; e Wagner Rosário, da Controladoria-Geral da União, e Tarcísio Freitas, da Infraestrutura, também foram oficiais do Exército.
Para Genoino, o próprio ministro da Defesa – atualmente, Braga Netto – não poderia ser um militar, porque, segundo ele, as Forças Armadas devem estar subordinadas ao poder civil. “A defesa nacional é uma política pública. Se é pública, está subordinada ao princípio da soberania nacional e aos poderes públicos, oriundos do voto”, disse. “O ministro da Defesa tem que ser um civil que representa o poder político nas Forças Armadas. E ao fazer isso, é autoridade política para conduzir os assuntos junto à tropa.”
A ideia, segundo o petista, seria substituir a influência que os militares têm atualmente nas grandes decisões pela subordinação ao poder político eleito. “É uma política dirigida pelo poder civil, pela soberania popular. Aí você vai discutir com o povo qual é a dotação orçamentária, quais são os projetos prioritários”, disse.
“A grande questão que está colocada é a supremacia política do poder civil, que comanda, dirige, define, enquadra, pune. Até para que as Forças Armadas recebam o tratamento para defesa nacional. Porque o aparato militar, que é essencial para a defesa, tem que estar subordinado à direção política.”
Integração militar na América Latina e afastamento dos EUA
Na publicação da Fundação Perseu Abramo, de 2020, as propostas do PT para a defesa nacional estão intimamente ligadas às relações exteriores e integram um mesmo capítulo do documento. Nesse trecho, fica clara a intenção de desfazer o estreitamento dos laços com os Estados Unidos observado durante o governo de Jair Bolsonaro, caracterizado pelos petistas como uma “política externa passiva e submissa, servilmente alinhada à extrema direita norte-americana e caracterizada por desconstrução da integração regional”.
O objetivo seria retomar alianças, inclusive na área militar, com países da América Latina, em desenvolvimento e do Hemisfério Sul. “A América Latina e Caribe, especialmente, a América do Sul, se tornaram aptos para resolver os próprios conflitos e, portanto, menos propensos a sofrer intervenções indevidas de potências externas. Para tanto, foi de relevo especial a criação do Conselho de Defesa, no âmbito da Unasul”, diz o documento.
Mais à frente, a resolução é um pouco mais clara quanto aos objetivos da integração com países latino-americanos. “O empenho na diplomacia e na cooperação e integração regional latino-americana continua sendo a mais eficiente política de dissuasão militar.”
Na entrevista de novembro, Genoino foi ainda mais explícito: disse que a integração sul-americana seria uma forma de se contrapor a ingerências dos EUA no continente. “Temos que ter uma unidade sul-americana para se confrontar com essa política dos Estados Unidos que diz que ‘a América é nossa’.” A seguir, ele disse: “Nós não temos um inimigo, temos de ter dissuasão para monitorar e, se for o caso, para se autodefender”.
Genoino faz eco à Fundação Perseu Abramo ao lembrar que, durante os governos de Lula, se intensificaram as relações do Brasil com países vizinhos por meio da criação da Unasul. A cooperação militar chegou, inclusive, a fazer parte da Estratégia Nacional de Defesa, formulada pela primeira vez em 2008 e depois revisada em 2012, 2016 e em 2020.
O dirigente petista mencionou a aproximação ali ensaiada com Venezuela, Colômbia, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Peru. “A dissuasão é para fora, para dentro é cooperação (…) Porque não temos conflito. Não temos conflito com a Venezuela, por que fica fazendo a política americana lá? Não temos conflito com Cuba, com Colômbia, com o Chile, com a Argentina.”
Em outro trecho, ele expressou preocupação com o interesse do “imperialismo americano” na região, em razão de suas riquezas naturais – como água doce, minérios e terras para agricultura e pasto – concentradas na Amazônia, na cordilheira dos Andes e na bacia do Prata. O litoral voltado para o Atlântico, além disso, também seria estratégico pelo acesso à África.
Por isso, a intenção do governo Bolsonaro de buscar a adesão do Brasil à Otan, a aliança militar ocidental liderada pelos EUA, seria prejudicial. “Não é para brigar com os americanos, mas a Otan não pode definir nossa política estratégica. Não podemos ser membros da Otan, porque quando você se incorpora a uma força superior, do ponto de vista militar, você fica a mercê dela”, disse Genoino.
Ao final, ele defende alianças estratégicas com a China, a Índia e com a Rússia “sem romper nem com a Otan nem com os Estados Unidos”. “Ao mesmo tempo dizer o seguinte: ‘O nosso cenário de aliados não são só vocês’. E aí fazer medição, fazer aquilo que é o poder ‘soft’, quer dizer, não vamos fazer o poder violento, mas também não vamos aceitar a tutela. Eu acho que isso é uma disputa política. E o Brasil tem que estar preparado para fazer a disputa diplomática e a disputa militar. O Itamaraty tem que estar vinculado com a questão militar e vice-versa, para poder caminhar no mesmo sentido.”
Nova formação militar e fim dos colégios militares
Uma das propostas da resolução do congresso do PT de 2017 era a “alteração dos currículos das escolas de oficiais”, que teria como objetivos “expurgar valores antinacionais e antidemocráticos como o elogio ao golpe de 1964 e ao regime militar que então se estabeleceu”.
A mudança na formação dos militares também foi defendida, com mais detalhes, por Genoino na entrevista de novembro. “A Escola Superior de Guerra é algo imutável, ali não muda nada. Ali tem uma medula doutrinária muito complicada”, disse. Ao lado disso, ele propôs também a extinção dos colégios militares, que foram reforçados no governo Bolsonaro e apresentados como modelos de disciplina e de boa qualidade no aprendizado no ensino básico.
Em relação à formação, Genoino indica ser necessário um redirecionamento nos conceitos ensinados nas academias militares. Ele critica, por exemplo, uma “visão conservadora” que predominaria nas disciplinas e que levaria oficiais a tratarem militantes sem-terra, índios, quilombolas, grevistas e até mulheres e homossexuais como “inimigos internos”.
Ele também ataca uma mentalidade de militares, que, segundo ele, consideram-se fundadores do Estado e atribuíram a si mesmos um papel de tutela do país. Essa ideia estaria baseada na criação da Marinha e do Exército antes mesmo da República, durante o período colonial, respectivamente na expulsão dos franceses do Rio de Janeiro, no governo de Mem de Sá, em 1567; e na Batalha dos Guararapes, em 1648, para derrotar os holandeses em Pernambuco.
“Nós associamos a formação do Exército e da Marinha a uma aliança com o colonizador português (…). Isso está na raiz de uma espécie de tutela cultural e ideológica dos ‘fundadores da pátria’. Eles se consideram ‘fundadores da pátria’, se consideram ‘donos do patriotismo’, exercem o monopólio do patriotismo”, criticou o petista.
Os colégios militares, para ele, seriam também incentivadores da formação de uma “casta” militar que, desde a juventude, se julgaria acima do povo. Para Genoino, o Brasil poderia criar uma academia militar que juntasse oficiais e civis para discutir uma política de defesa. “Tem que criar um centro de estudo que junte militares e civis, para fazer a discussão e o debate. Essa ideia de que militares são um corpo à parte, isso a experiência já mostrou que não serve.”
Desenvolvimento tecnológico e domínio da energia nuclear
O Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, de 2020, da Fundação Perseu Abramo, fala em “modernização da estrutura nacional de defesa” e “reorganização da Base Industrial de Defesa”. O objetivo seria “assegurar o atendimento às necessidades de aparelhamento das Forças Armadas apoiado em tecnologias sob domínio nacional, preferencialmente as de emprego dual (militar e civil)”.
Na entrevista de novembro, Genoino aprofundou o tema, elencando como áreas cruciais para as Forças Armadas, no campo da tecnologia, a defesa cibernética, o programa aeroespacial e, além disso, o “domínio do ciclo do combustível nuclear”.
Sobre o primeiro ponto, ele falou pouco; detalhou o que considera importante nos dois últimos. Criticou, por exemplo, a autorização, dada no governo Bolsonaro, para que Estados Unidos utilizem o Centro Espacial de Alcântara, no Maranhão, para lançarem foguetes e satélites. Para Genoino, foi um “crime”, porque satélites lançados dali dão visibilidade ao Nordeste e à Amazônia – “é uma área estratégica”, disse.
Em relação à energia nuclear, o petista lamentou o que ocorreu com o vice-almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, afastado em 2015 da presidência da Eletronuclear (que havia assumido em 2005, no governo Lula) por suspeitas de receber propina nas obras da usina nuclear de Angra 3, que ele mesmo havia retomado. Segundo Genoino, o afastamento abriu uma crise no desenvolvimento científico brasileiro para o “domínio do ciclo do combustível nuclear”.
A tecnologia, segundo ele, é fundamental para o submarino de propulsão nuclear e a vigilância do pré-sal na costa brasileira. Questionado se o Brasil também deveria investir em pesquisa para desenvolver uma bomba atômica, Genoino disse: “Dominando o ciclo da energia nuclear, dependendo da geopolítica e dos conflitos, todos sabem, dependendo da conjuntura, do que acontecer, você tem uma reserva estratégica que pode levar a esse tipo de pesquisa”.
Em outros momentos, no entanto, ele buscou minimizar essa aplicação. “Não tem nada a ver com arma atômica (…). A guerra que está se travando hoje não é mais com a bomba atômica, são guerras de outros tipos, mais regionais, as potências não se envolvem mais diretamente, estimulam o entorno estratégico”, disse.
O que pensa o ex-ministro da Defesa Jungmann sobre os planos do PT para os militares
Entrevistado pela Gazeta do Povo, Raul Jungmann, escolhido pelo ex-presidente Michel Temer para assumir o Ministério da Defesa em 2016, após o impeachment de Dilma Rousseff, disse que a maior parte das ideias de Genoino não têm sentido. “É um programa maximalista, que também não tem apoio das forças sociais e políticas do país e, acho eu, nem dentro do próprio PT”, afirmou ele. “Ele propõe praticamente refundar as Forças Armadas e o lugar delas dentro do projeto de nação e do contexto institucional brasileiro, que não tem suporte político e está descolada da realidade.”
Questionado sobre uma integração militar com a América Latina para se contrapor aos Estados Unidos, Jungmann disse que constituir uma força autônoma de defesa com os vizinhos seria um “delírio”.
“Em primeiro lugar, a América do Sul é plural em termos ideológicos, culturais e políticos. Como vai produzir unidade entre o [Gabriel] Boric [presidente recém-eleito do Chile, de esquerda] e a Colômbia [presidida por Iván Duque Márquez, de direita]? Como vai fazer unidade entre Venezuela e Colômbia, rivais históricas? Entre Bolívia e Chile, que têm disputa de saída para o mar? Isso é uma estultice, não há base de diálogo para isso”, afirmou Jungmann.
“E em segundo lugar, se contrapor aos Estados Unidos em defesa? O orçamento militar americano é maior que os 15 países abaixo deles e é a maior potência nuclear do planeta. Não estou propondo que transforme o país num ‘yes, man’. Mas se contrapor é uma coisa tão arcaica, uma doença infantil do esquerdismo”, disse o ex-ministro, em referência ao temor da esquerda de um imperialismo americano.
Por outro lado, Jungmann também criticou o que considera um papel “subserviente” aos Estados Unidos adotado no governo Bolsonaro. “Nós nos transformamos em parte da engrenagem diplomática dos Estados Unidos e o Brasil nunca foi isso. Embora reconhecendo as assimetrias que existem, que são absolutamente evidentes, o Brasil tem que procurar estabelecer uma relação nos fóruns multilaterais que vise à independência. Ter a capacidade de dizer não e as Forças Armadas ajudam nisso.”
Para Jungmann, uma integração com a Unasul deve envolver treinamentos, troca de informações e integração de cadeias produtivas, e não a criação de uma força autônoma contra os Estados Unidos. Para ele, em razão da disputa geopolítica entre Estados Unidos e China, o Brasil deve tirar vantagem sem aderir “acriticamente” a nenhum dos lados. “O nosso lado deve ser o Brasil.”
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