Eleitores de 5.569 municípios brasileiros vão às urnas neste domingo (6) para a votação do primeiro turno das eleições de 2024. E chegam diante de um cenário que opõe as suas preocupações diárias, como os buracos na rua, o preço da passagem de ônibus e as filas de atendimento nos postos de saúde, a uma certa apreensão da classe política de como os resultados deste pleito poderão influenciar o desenho das eleições daqui dois anos, quando serão eleitos presidente, governadores, deputados e senadores.
Por mais que a polarização, simbolizada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), esteja evidente nos embates locais, com discussões de temas que extrapolam os limites municipais e tentativas de candidatos de colarem — ou mesmo descolarem — seu nome e sua imagem aos expoentes atuais da direita e da esquerda, o dia a dia das cidades pode ainda ter mais peso na escolha para prefeito e vereador.
Durante o período de campanha, os eleitores responderam a centenas de pesquisas eleitorais, sendo que muitas delas buscavam entender as dores da população. De forma geral, os mesmos problemas surgiram como prioridades para serem resolvidos pelos próximos prefeitos e vereadores. A ordem mudava de acordo com a realidade local, mas as queixas sempre estavam lá: criminalidade, saúde, educação, transporte público, engarrafamentos, população de rua, e assim por diante.
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo observam que há uma contaminação de temas nacionais na disputa local, mas que, na hora do voto, o que ainda conta é a capacidade, ao menos teórica, de o candidato sanar os problemas da cidade. “O que prevalece para a escolha do eleitor são os fatos e interesses locais”, aponta o analista político e coordenador de estados e municípios da BMJ Consultores Associados, Aryell Calmon. “Embora a nacionalização da campanha municipal tenha sido observada, em alguma medida, em municípios como São Paulo, Porto Alegre e Fortaleza, ela opera apenas em um primeiro momento”, acrescenta.
O cientista político e professor do Insper em São Paulo, Leandro Consentino, destaca que a questão local sempre foi e continua sendo fator preponderante para o voto. Entretanto, em um ambiente contagiado, há uma dificuldade maior na escolha do candidato. “Talvez o eleitor esteja olhando mais as questões políticas, não necessariamente ideológicas. Mas é um eleitor perdido tentando entender qual candidato vai resolver os seus problemas”, diz. Da mesma forma, ele aponta que candidatos mais programáticos, que se pautam por propostas para a cidade, acabam encontrando mais dificuldades para convencer os eleitores.
Centrão fortalece presença nas eleições de 2024 para avançar em 2026
Uma prova de que o local sobrepõe ao nacional nas eleições municipais está na própria composição das alianças, que soam em diversos momentos como incoerentes — a partir do ponto de vista mais amplo. O PSD do atual prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, é apoiado pelo PT de Lula. O mesmo PSD do vice-prefeito de Curitiba, Eduardo Pimentel, tem a chancela de Bolsonaro — o vice Paulo Martins, aliás, é do PL do ex-presidente.
Em São Paulo, o PSB da candidata Tabata Amaral e do vice-presidente Geraldo Alckmin corre separado da campanha de Guilherme Boulos (Psol) que tem a vice do PT, Marta Suplicy. Em Recife, o mesmo PSB do atual prefeito João Campos concorre com o PT na coligação.
Essas aparentes incoerências fazem com que líderes políticos que vislumbram 2026 tenham uma postura mais comedida nesse momento, especialmente no primeiro turno. Não é por acaso que Bolsonaro e Lula se engajaram pouco em algumas campanhas municipais. Apesar de indicar Ricardo Mello Araújo (PL) como vice de Ricardo Nunes (MDB) em São Paulo, o ex-presidente manteve distância durante a campanha. E no Rio, apesar de apoiar Paes, o presidente Lula foi figura discreta nas últimas semanas, sob o risco de perder o apoio do PSD em pautas em Brasília.
O pleito municipal é também, como aponta Calmon, um momento para “testar nomes e força política”, por isso o distanciamento nas principais capitais deu o tom no primeiro turno. Enquanto Lula precisa manter a base no Congresso Nacional, Bolsonaro tenta conter uma eventual perda de influência no campo da direita. “Marcar posição em apoios nesse processo eleitoral representa um risco a esses interesses”, pontua o analista político.
O afastamento também contribui para o fortalecimento dos partidos que compõem o Centrão, enterrando de vez embates clássicos e antagônicos, como PT versus PSDB — ambos os partidos têm encontrado dificuldades em ter quadros competitivos nas principais cidades e têm optado por entrar em coligações que estejam alinhadas politicamente. De acordo com um levantamento da Gazeta do Povo, os partidos do Centrão contam com candidaturas competitivas em mais de 10 capitais.
Enquanto Lula precisa manter a base no Congresso Nacional, Bolsonaro tenta conter uma eventual perda de influência no campo da direita.
Siglas como PSD, MDB, União Brasil, PP e Republicanos se fortaleceram e extrapolaram a polarização entre Lula e Bolsonaro. “Todos esses grandes atores que formam a fina flor do Centrão é que ganham poder nas eleições municipais”, opina Consentino, do Insper, que complementa: “Ganham na eleição municipal para ganhar depois no Parlamento.”
Cenários imprevisíveis e caminhadas mais tranquilas à reeleição
Esse jogo de forças faz com que, em muitos casos, os resultados do primeiro turno tornem-se imprevisíveis, com duas ou mais candidaturas disputando voto a voto para avançar ao segundo turno. O caso mais evidente nas eleições de 2024 é o de São Paulo, com três candidatos competitivos: Guilherme Boulos, Pablo Marçal (PRTB) e Ricardo Nunes. A presença de Marçal quebrou a lógica de uma eleição que seria quase um reavivamento dos tempos de PT contra PSDB. Fora dos quadros políticos, o candidato do PRTB não só se tornou uma força, como também esquentou a campanha: recebeu uma cadeirada de Datena (PSDB), o assessor agrediu com um soco o marqueteiro de Nunes e ainda lançou ataques incisivos a cada um dos adversários.
A presença de Marçal quebrou a lógica de uma eleição que seria quase um reavivamento dos tempos de PT contra PSDB.
Em Belo Horizonte, o cenário é muito parecido, ao menos do ponto de vista de competição. O atual prefeito Fuad Noman (PSD), que assumiu a prefeitura com a renúncia de Alexandre Kalil para concorrer ao governo de Minas Gerais em 2022, tenta seguir no cargo, mas vê dois oponentes dividirem os holofotes: os deputados estaduais Bruno Engler (PL) e Mauro Tramonte (Republicanos). Na capital mineira, a esquerda, nas figuras de Duda Salabert (PDT) e Rogério Correia (PT), não conseguiu decolar.
A esquerda também chega enfraquecida em Curitiba, mesmo com a possibilidade de Luciano Ducci (PSDB) avançar ao segundo turno. O principal concorrente é o atual vice-prefeito Eduardo Pimentel, que teve a candidatura construída sob os cuidados do governador Ratinho Junior (PSD) e conquistou o maior tempo de televisão para crescer sobre os oponentes. Além de Ducci, Ney Leprevost (União Brasil) e Cristina Graeml (PMB) embolam as possibilidades no segundo turno.
Por outro lado, há capitais em que o período eleitoral seguiu como se não houvesse disputa. O atual prefeito de Recife, João Campos, por exemplo, caminhou sem dificuldades na campanha. Se em 2020, ele precisou bater Marilia Arraes no segundo turno, neste ano não viu nenhum oponente competitivo, demonstrando força não apenas para a eleição municipal, mas também para uma eventual candidatura ao governo de Pernambuco em 2026.
No Rio de Janeiro, Eduardo Paes também teve uma campanha sem percalços, apesar de Alexandre Ramagem (PL) ter o total apoio de Bolsonaro — Ramagem foi homem de confiança durante o mandato presidencial. A ida do ex-delegado ao segundo turno é incerta e, caso ocorra, terá sido pela presença mais ostensiva do ex-presidente na reta final.
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