Um decreto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para forçar um aumento da produção de gás natural e reduzir seu preço dividiu reações no mercado. Alguns especialistas o veem como uma intervenção e uma quebra de contratos capaz de afastar futuros investimentos no setor. Enquanto isso, a indústria que consome o combustível elogiou a medida.
A iniciativa do governo faz parte de um pacote de resoluções, projetos de lei e decretos assinados no início da semana para alterar as regras do mercado de gás no Brasil. No mesmo dia, Lula também criou um incentivo fiscal para a indústria naval e anunciou uma ampliação no programa que paga botijões para famílias de baixa renda.
O decreto 12.153, assinado pelo presidente, altera o decreto 10.712/2021, que por sua vez regulamenta a chamada Lei do Gás (14.134/2021). A lei e o decreto de 2021 estabelecem diretrizes sobre transporte, escoamento, tratamento e estocagem do gás natural.
O novo decreto concede à Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) poder para regular preços, alterar contratos e “determinar o aumento da produção de gás natural para campos em produção, inclusive os campos maduros”.
Em outras palavras, a agência reguladora poderá definir quanto uma empresa que já está em produção deve extrair de petróleo e de gás, e qual a proporção do gás que pode ser reinjetada no campo – decisão que normalmente cabe às empresas produtoras.
O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, pressiona a Petrobras desde o ano passado para que ela reduza a reinjeção e, portanto, aumente a oferta de gás para o mercado nacional. Essa foi uma das questões que motivaram discussões públicas entre Silveira e o então presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, que acabou demitido.
Embora seja formalmente vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME), a ANP é uma autarquia sob regime especial, dotada de autonomia patrimonial, administrativa, e financeira. Por ser uma agência reguladora, ela não é subordinada a outros órgãos e deve ter atuação independente, sem a obrigação de seguir ordens do governo.
Especialistas e setores divergem sobre o decreto que dá à ANP poderes para intervir em decisões do setor privado. Enquanto alguns setores comemoram e avaliam que a decisão é resultado de uma longa conversa do governo com a cadeia de produção, a leitura de outras áreas é que o Estado intervém em um mercado que deveria ser livre, o que traz insegurança jurídica, ameaça investimentos e onera as companhias, que terão dee ser adequar às mudanças.
Para aqueles que usam o gás como matéria-prima, a exemplo das empresas associadas à Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), a medida é necessária para regular o mercado de gás. A entidade entende que o esperado aumento da oferta de gás pode reduzir o preço do insumo, com redução nos custos de produção e nos preços ao consumidor final.
O presidente-executivo da entidade, André Passos Cordeiro, acredita que o decreto vai ajudar a aquecer investimentos e gerar mais renda e emprego ao ampliar a oferta e reduzir os preços do gás natural. A indústria química é a principal consumidora de gás natural como matéria-prima e fonte de energia – ela consome cerca de 25% a 30% do total ofertado no país.
“Com essas medidas adotadas hoje, temos a expectativa de começar a ter gás natural em oferta suficiente e preços que ajudem a melhorar a competitividade para a produção nacional de insumos químicos”, destacou Cordeiro.
Outros setores, principalmente o petroleiro, argumentam que o decreto é uma intervenção do governo para reduzir o preço do gás “goela abaixo”. Defendem que o mercado deveria ser livre.
A questão é que o petróleo é mais rentável que o gás natural. E aumentar a produção de gás significa reduzir a de petróleo, o que afeta o planejamento e o faturamento de empresas como Petrobras, Shell e Equinor, entre outras – que, ao arrematar concessões, calcularam investimentos e retorno com base na divisão que consideraram mais adequada.
Ou seja, ao dizer que cabe à ANP decidir a quantidade de gás reinjetado de cada campo, se uma companhia deve produzir mais óleo ou gás, o governo quebra essa lógica.
“O ponto central é que o petróleo está US$ 80 o barril, e o gás é muito mais barato. As empresas reinjetam o máximo de gás possível porque isso aumenta a pressão no reservatório e, com isso, a produção de petróleo. É muito mais vantajoso”, explica Armando Cavanha, consultor da área de petróleo e gás e professor da PUC-Rio.
Segundo ele, o gás não dá tanto retorno para as empresas e sociedade – através de royalties e impostos, por exemplo – quanto o petróleo.
“O governo defende que esse gás [reinjetado] poderia ser usados para muitas outras finalidades, como fertilizantes e termelétricas. Mas esse gás é cheio de CO2, não é puro”, argumenta Cavanha. “O Brasil importa gás, e não é barato. Contudo, sai mais barato que a perda de receita de óleo [provocada pela redução na reinjeção].”
Advogado diz que decreto do gás apenas esclarece política do governo; especialista vê quebra de contrato
Alexandre Calmon, sócio da área de Energia e Recursos Naturais da Campos Mello Advogados em cooperação com o DLA Piper, explica que um dos objetivos da Lei do Gás e do programa Gás para Crescer (programa criado em 2021, no governo Bolsonaro, e rebatizado de Gás para Empregar na gestão Lula) era celeridade aos gargalos do setor. Isso, porém, não aconteceu.
O decreto, diz, acaba sendo o resultado de meses de conversa do governo com várias partes da cadeira produtiva para resolver estas questões antigas que não foram solucionadas com a Lei do Gás e o programa. Segundo ele, a ANP já tinha poder de regular preços e reinjeção de gás – a diferença é que agora o governo deixou claro sua política.
“A agência [ANP] é uma executora do governo. O governo está deixando [com o decreto] claro que a sua política é a maximização das reservas de gás. A ANP tem que dar andamento”, pontua.
Calmon considera que o documento traz clareza para políticas que estavam truncadas antes, mas observa que o governo também precisa fazer sua parte, como oferecer condições e acesso à infraestrutura, uma das reivindicações do setor.
O advogado esclarece que o decreto não vale para planos já aprovados ou em andamento – a não ser que haja revisão, o que costuma ser feito pela própria empresa, segundo ele. Mas pondera que a decisão deve trazer conflitos jurídicos:
“Não se pode dizer que não haverá conflitos, mas, pelo menos, será embate técnico e com clareza de direcionamento do que governo quer. O que vai acontecer é que se não fizer sentido produzir gás, as empresas vão ter que comprovar tecnicamente que não faz sentido. Essa solução vai ter que ser técnica e econômica. Ninguém está dizendo que vai ter que vender a qualquer preço e sofrer prejuízo”, diz o especialista.
O consultor Armando Cavanha observa, entretanto, que rompimentos de contratos geram, também, quebra de expectativa do que será faturado. “Se não pode mais reinjetar, muda a perspectiva. A consequência para o mercado é perda de receita. Quem paga a conta?”, questiona.
Procuradas, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e o Instituto Brasileiro de Petróleo (IBP) disseram à Gazeta do Povo que estão analisando o decreto.
Em artigo publicado na terça-feira (27), o presidente da CNI, Ricardo Alban, defendeu que o mercado precisa de políticas públicas com transparência, articulação e governança entre os órgãos envolvidos para que o mercado de gás natural seja capaz de atender às transformações das cadeias de produção.
Segundo ele, o governo federal tem ouvido os representantes de diferentes elos da cadeia e traçado um diagnóstico acertado dos obstáculos. Entretanto, diz, ainda há grandes entraves para o desenvolvimento e a modernização do setor.
“Estamos diante de um momento decisivo para a evolução da indústria de gás natural brasileira. Para que isso se torne realidade, precisamos de um ambiente com maior previsibilidade, que estimule investimentos de longa maturação e ajude o país a ter uma oferta compatível com a demanda e com os projetos de expansão das empresas”, escreveu.
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