De acordo com o superintendente da Polícia Federal no Paraná, Luciano Flores de Lima, o contrabando, principalmente de cigarros, permite mais lucro às facções criminosas do que as drogas. | MARCELO ELIASMARCELO ELIAS
De acordo com o superintendente da Polícia Federal no Paraná, Luciano Flores de Lima, o contrabando, principalmente de cigarros, permite mais lucro às facções criminosas do que as drogas.| Foto: MARCELO ELIASMARCELO ELIAS

Quando o consumidor brasileiro acende um cigarro pelo qual pagou mais barato no comércio informal, não imagina que, sem querer, está na ponta final de uma cadeia que envolve uma série de práticas ilegais e personagens poderosos do crime organizado internacional. Nesse grupo estão desde grandes empresários e políticos paraguaios, até milícias, agentes públicos corruptos e trabalhadores em condições arriscadas ou degradantes. Por fim, bilhões de reais que deixam de ser arrecadados pelo Brasil em forma de tributos.

Estudos mostram que o impacto dessa indústria ilegal é significativo. Um levantamento do Ibope divulgado no final de 2018 pelo Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), demonstrou que mais da metade (54%) dos cigarros que circulam no País são irregulares, ou seja, não possuem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa. 

No Paraná, estado com fronteiras vulneráveis e que está na rota do contrabando, a marca líder de vendas, a Classic (com 34% do mercado), é irregular. Os cigarros ilegais representam 59% do mercado e movimentam R$ 549 milhões por ano, gerando ao Estado uma perda de R$ 292 milhões em arrecadação. 

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Mas as perdas não ficam só na arrecadação. As ramificações da atividade contrabandista repercutem em vários setores e estimulam outros tipos de crime, como o roubo de veículos para o transporte de mercadorias, homicídios ou a corrupção ou concussão de autoridades e agentes públicos - por exemplo, quando aceitam propina para liberar a passagem de itens ou mesmo para priviliegiar contrabandistas presos. 

Corrupção 

Um caso recente, em Guaíra, no Oeste do Paraná, resultou na prisão preventiva de quatro pessoas: um investigador e um agente de apoio da Polícia Civil e dois agentes temporários do Departamento Penitenciário. Investigações do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público do Paraná, e da Promotoria de Guaíra, apontaram facilitação de entrada de drogas e celulares na carceragem, bem como um preso com vaga privilegiada. 

De acordo com o coordenador da unidade de Foz do Iguaçu do Gaeco, o promotor de Justiça Tiago Lisboa Mendonça, esse preso era uma figura importante ligada ao contrabando de agrotóxicos, e pagou uma quantia alta, de cerca de R$ 50 mil, para ter benefícios na prisão, como uma suíte isolada com ar condicionado e acesso a celular. 

Mendonça conta que as ações têm se intensificado, mas não necessariamente porque a atividade criminosa tenha aumentado. "As informações têm chegado com maior frequência ao Gaeco, que goza de credibilidade perante a sociedade. As pessoas tinham receio ou não sabiam a quem recorrer", observa. "Hoje as pessoas têm se encorajado e denunciado", completa o promotor. 

Segundo Mendonça, é comum receber denúncias de pessoas que integram a ponta da atividade contrabandista - como os chamados "laranjas", que levam mercadorias com valor pouco superior à cota permitida. Se os itens acabam apreendidos, policiais mal intencionados acabam se apropriando da carga. "Essas pessoas ficam em situação complicada, pois perderam a mercadoria e precisam dar conta. Então elas têm se encorajado a denunciar esse tipo de comportamento", afirma. 

Sigilo 

O promotor também acredita que as denúncias vêm se intensificando porque a legislação permite que a identidade de testemunhas seja mantida em sigilo, bem como, se for o caso, o denunciante seja incluído em um programa de proteção. "Nunca tivemos problemas de ação de policiais contra testemunhas nossas. O próprio policial sabe que se adotar qualquer conduta de procurar essas pessoas corre um risco de ter prisão preventiva decretada e agravar ainda mais a situação dele", conclui. 

Na visão do superintendente da Polícia Federal no Paraná, Luciano Flores de Lima, o contrabando, principalmente de cigarros, permite mais lucro às facções criminosas do que as drogas. A afirmação foi feita à Gazeta do Povo na última semana. “Isso leva também ao aumento da corrupção de agentes públicos, que são mais suscetíveis a ceder a facilitação do contrabando de cigarros dos que ao tráfico de drogas, por exemplo”, acrescentou, lembrando que o contrabando também aumenta o cenário de violência no Brasil. “Por trás de cada caminhão de cigarro contrabandeado há um crime de corrupção, há um ato de estar colaborando com o fortalecimento de facções criminosas que atuam também praticando crimes violentos, como latrocínios”, indicou. 

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Na política 

Em março de 2014, a Gazeta do Povo produziu a série de reportagens Império das Cinzas, que mostrava por que a indústria do cigarro pirata montou suas fábricas no lado paraguaio da Tríplice Fronteira. Na época, a situação, ao menos institucionalmente, era ainda mais grave. Isso porque a relação entre o setor e o governo era tão profunda que o então presidente paraguaio, Horacio Cartes, era ao mesmo tempo dono de duas das maiores produtoras de cigarros do país - a Tabesa SA e a Tabacos del Paraguay. 

Juntas, elas respondiam por ampla maioria dos maços de cigarros apreendidos no Brasil (79 bilhões entre 2010 e 2013). Nada menos que as cinco marcas que mais entraram via contrabando no País naquele período eram produzidas nas fábricas de Cartes. 

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Os presidentes Jair Bolsonaro, do Brasil, e Mario Abdo Benitez, do Paraguai, durante reunião no Palácio do Planalto em Brasília, em março. Expectativa é de uma mudança de postura do país vizinho.NORBERTO DUARTEAFP

O novo presidente paraguaio, Mario Abdo Benítez, assumiu em agosto de 2018. Do mesmo Partido Colorado de Cartes, porém de uma ala diferente e sem ligações tão próximas com a indústria do tabaco, Benítez assumiu com a promessa de combater o contrabando e a informalidade. 

Na avaliação do presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, o Etco, Edson Vismona, têm sido positivas as primeiras aproximações entre os novos governos dos dois países. "O tema estava em pauta no último encontro dos presidentes. E o Paraguai tem aceitado como nunca antes. A postura mudou muito", declarou à Gazeta do Povo em março.

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