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As batalhas de Nikão
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Nikão chegou ao Athletico aos 23 anos, em janeiro de 2015, como um verdadeiro nômade da bola.

E por pouco não continuou assim, pingando de clube em clube, como havia acontecido 13 vezes — em quatro países diferentes — desde o precoce destaque nas categorias de base do pequeno Mirassol, do interior paulista.

O rosto redondo e inchado da primeira foto oficial com a camisa do Furacão o denunciava. O meia-atacante estava com 92 kg, exatos 20 kg acima do peso atual. A bebida era a principal culpada pela silhueta que não lembrava em nada um atleta profissional.

Fora da pré-temporada do elenco principal, em Marbella, na Espanha, ele permaneceu no CT do Caju para entrar em forma, com treinamentos em três períodos. E antes mesmo de estrear, descontente, pensou em seguir a rotina de boleiro cigano.

Nikão em 2015 no Athletico
Nikão na apresentação do Athletico, em 2015| Site oficial do Athletico/Bruno Baggio)

“Ele ligou me xingando, dizendo para eu tirá-lo lá do CT. Dizia que não estava treinando para a São Silvestre, pra correr maratona. Nós quebramos o pau”, recorda Wanilton César Silva, Cesinha, pai postiço do jogador.

A recíproca também era verdadeira. Com o passar do tempo, o presidente Mario Celso Petraglia acompanhou, insatisfeito, a pequena evolução física de Nikão, sua aposta pessoal, e deu um ultimato.

“O próprio Petraglia me ligou e disse que se o Nikão não melhorasse, ia mandá-lo embora”, confirma o empresário Carlos Roberto Souza Carvalho, dono do Centro de Treinamento Bolão, em Mirassol, onde o dirigente atleticano viu Nikão pela primeira vez aos 12 anos — e se encantou com o talento nato do moleque.

A primeira virada na história de Maycon Vinícius Ferreira da Cruz no Athletico, então, aconteceu na última rodada do Torneio da Morte do Paranaense 2015.

O time sub-23 já havia escapado do rebaixamento, mas a atuação contra o Nacional de Rolândia não deixou dúvidas. Um gol e duas assistências convenceram a diretoria de que ele não era mais um caso perdido.

Matéria da Gazeta do Povo sobre Nikão, em 2003
Em 2005, Nikão foi personagem de matéria da Gazeta do Povo como um prodígio do futebol.

Tragédias da vida

Nikão nunca foi caso perdido para Izabela Luz Sampaio da Cruz, esposa do jogador desde fevereiro de 2015. A dura e bem documentada trajetória de vida do mineiro de Montes Claros se entrelaça com a da namorada. Para o bem ou para o mal.

Maycon não conheceu o pai. Perdeu a mãe aos oito anos de idade e a avó, que o criou, aos 16. Dois anos depois, o irmão, que tinha envolvimento com tráfico de drogas, morreu em acidente de carro. Sua vida sempre foi o futebol. Para o bem ou para o mal.

Com 11 anos, após ser descoberto em um terrão por Cesinha, olheiro de uma escolinha em Minas, foi levado para o Mirassol, na época com as divisões de base administradas por Carlos Roberto.

Sua técnica, força e drible chamavam a atenção. Fez testes em times do exterior. No CSKA Moscou, da Rússia, por exemplo, foi apelidado de ‘Maradona Negro’.

Também passou pelo PSV, da Holanda, e por uma equipe da Arábia Saudita. Nunca se estabeleceu por questões de documentação — por lei, era necessária a presença de um responsável legal, o que nunca foi possível.

Em 2008, na base do Palmeiras, junto com os gols em profusão, vieram os vícios e más companhias. Se o garoto bebia desde os 12, nessa época o problema já havia se transformado em doença.

A partir do ano seguinte, no Santos, Nikão já vivia sob a supervisão de Cesinha e a esposa, Selma. Mas conter as noitadas era trabalho ingrato.

“Eu fazia o papel de pai, brigava para ele não beber, não sair. Mas bebida e mulher eram o ponto fraco dele”, diz Cesinha.

Izabela só apareceu na vida de Nikão em 2010, mesmo ano em que ele se profissionalizou no Atlético-MG. Três anos mais velha, a mineira percebeu que ele era o homem da vida dela no primeiro beijo.

Mal sabia a via crucis que precisaria superar para que o sonho se tornasse realidade.

Nikão Athletico
Nikão abraça o atacante Walter, que foi seu companheiro do Furacão| Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

Bebida e traição

Entre idas e vindas, o casal namorou por quase cinco anos. E só permaneceu junto por uma razão.

“A Izabela é uma guerreira. Foi humilhada, desprezada, traída, tudo de pior que você pensar…”, resume Cesinha, que inicialmente reprovava o namoro.

Ela era ciumenta e não queria a carreira de jogador para Nikão. O pai adotivo, por outro lado, pensava na profissão que poderia mudar suas realidades.

O relacionamento seguiu à distância na maior parte do tempo, já que o meia-atacante rodou por seis times (Vitória, Bahia, Ponte Preta, América-MG, Linense-SP e Ceará) antes de chegar ao Athletico.

Os hábitos dele, no entanto, não mudaram por causa da relação. A rotina de noitadas e excessos seguiu. Tudo isso, evidentemente, se refletia dentro de campo. O talento era suprimido por uma vida desregrada.

“Passei cinco anos sem saber quem era o Nikão”,  diz Izabela, que se converteu em 2011, quando passou a frequentar a Igreja Evangélica Assembleia de Deus.

Ela se apegou à fé para continuar um namoro que, para muitos, incluindo sua família, não tinha sentido.

Foi quando, no fim de 2014, Nikão pediu Izabela em casamento e eles vieram morar juntos em Curitiba. Exatamente quando o Athletico abriu as portas para o craque que se autossabotava.

O que era o prenúncio de uma transformação, contudo, precisava de mais uma prova.

Nikão em campo Athletico
Nikão em campo pelo Athletico em 2019| Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Fundo do poço

Em campo, as coisas até começaram a melhorar para Nikão, que virou titular, marcando gols e distribuindo assistências. Mas a vida particular chegou ao fundo do poço.

“Alugamos uma cobertura para morar e aí foi o pior momento. Problemas com bebida, mulheres, ele chegava em casa às 5 horas da manhã. Não tinha limite, nem noção do quanto estava se prejudicando. Por ter perdido a mãe, a avó e o irmão, não via mais sentido na vida. Se fechou e não pensava no amanhã”, descreve Izabela, que pediu ajuda à pastora Lucimar Aparecida de Oliveira, do Ministério Rocha Eterna.

“Ela me procurou para auxiliar na oração, na palavra. Estive na casa deles várias vezes e ele tinha bastante resistência, sentia que estava distante do que cremos, mas dava para ver que era um menino bom, de coração sincero e batalhador”, explica Lucimar.

No dia 12 de agosto, quando o Athletico jogou com o Flamengo, no Rio de Janeiro, pelo Brasileirão de 2015, algo aconteceu. Dias antes, o casal havia brigado feio.

“Ele me deu tapa, eu dei tapa nele. Nosso relacionamento era assim. Aí ele viajou e não me mandou mensagem quando chegou. Eu mandei mensagem cobrando e ele me respondeu, lembro como se fosse hoje: vai se f…”, fala Izabela, que naquele momento desabou.

No dia seguinte, porém, Nikão procurou a pastora Lucimar dizendo que não queria perder sua família e que estava disposto a recomeçar.

A partir dali, parou de consumir álcool e começou a se transformar de verdade, garante a esposa. “As pessoas falam que eu mudei o Nikão. Ninguém muda ninguém. Foi Deus”.

Meses depois, Izabela, que não podia ter filhos sem tratamento especializado, descobriu que estava grávida de três meses. Detalhe: ela havia feito uma lipoescultura dias antes de detectar a gravidez do filho, batizado Thiago Vinícius, em homenagem ao irmão falecido de Nikão.

Nikão, esposa e filho
Izabela, Thiago e Nikão| Divulgação

Racismo

Alvo de comentários racistas de torcedores do River Plate na internet, durante a primeira partida da Recopa Sul-Americana, Nikão já sofreu com atos desse tipo também no estádio.

Foi em 2017, contra o Deportivo Capiatá, pela Copa Libertadores. Chamado de macaco por parte da torcida paraguaia, o jogador foi defendido pela mulher nas redes sociais — assim como neste ano.

Situação semelhante aconteceu ainda em 2015, diante do Sportivo Luqueño, também do Paraguai, pela Sul-Americana.

"Ele é muito equilibrado. Eu sou muito explosiva. Em tudo que se trata do Nikão e do Thiago, vou defender sempre. Esses seres humanos que fizeram isso se comportaram pior que animais. Isso não existe", lamenta Izabela, que fez a postagem compartilhada pelo marido no Instagram.

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Meu nome é Maycon Vinícius Ferreira da Cruz, mas sou mais conhecido como Nikão, atleta profissional de futebol do Club Athletico Paranaense. Hoje, eu estou com 26 anos de idade e algumas vezes me deparei com uma situação tratada por muitos como “delicada”, mas que eu aprendi a classificar como INADMISSÍVEL. Ontem foi um dia desses. . Entramos em campo para disputar o primeiro jogo da final da Recopa Sul-Americana diante de uma das equipes mais tradicionais do continente e, outra vez, numa disputa esportiva de nações coirmãs, o racismo tomou forma. O Grafite e o São Paulo sabem porque eu disse “outra vez”. O Vasco e seu torcedor também. O Cruzeiro e o Tinga também. O Serginho, do Jorge Wilstermann, também... isso pra não citar o resto do mundo. Quantos mais? Dezenas? Centenas? Ou milhares? Quando isso vai acabar? Estamos no ano de 2019 e ainda somos obrigados a nos deparar com atitudes tão desumanas como esta. . Já ouvi dizer que isso é uma questão cultural, que é comum esse tipo de xingamento em alguns países da América do Sul e que a gente não deveria dar tanta importância. Também já vi falarem por aí que o preconceito nem existe de verdade e que é tudo vitimismo. Eu posso falar por mim: se uma atitude me machuca, corrói, afeta não só minha família, mas tantas outras pessoas que se sentem representadas por mim quando estou em campo, não passa pela minha cabeça aceitar. Essa ideia tem que ACABAR! . Apesar de acreditar que uma boa postura se aprende em casa, com boa educação, orientação e diálogo franco, por outro lado, tenho a certeza de que já passou da hora de a Conmebol ser mais enérgica com os casos de injúria racial. Já tivemos aqui no Brasil um grande exemplo de punição para o Grêmio, cuja torcida teve atitudes racistas, e o ato resultou na eliminação da Copa do Brasil. O recado é bastante claro: se o respeito não vem através de campanhas de conscientização e do diálogo, será necessário estabelecer punições mais severas, que mexam naquilo que mais importa para o torcedor e que deixem claro que cada ação tem uma consequência. (continua nos comentários)

Uma publicação compartilhada por Nikão11_?⚫️ (@nikao11_) em

Futuro

A fé mudou Maycon Vinícius, ainda mais após a descoberta de que seria pai. E a nova atitude pôde ser notada em campo. Mais regular, conseguiu fixar residência em Curitiba, algo inédito na carreira do então nômade da bola.

Já são mais de quatro anos como titular do Athletico e até festa de aniversário com o tema do clube ele já fez.

“Sempre digo que cheguei aqui num patamar e hoje me encontro em outro por tudo que eles [clube] me oferecem. Também tive que mudar algumas coisas na minha vida. Fui um jogador bastante viciado em bebida, então isso me prejudicou no começo da carreira. Mas hoje, graças a Deus, me libertei. E os frutos estou colhendo dentro de campo”, afirmou o camisa 11, em entrevista ao SporTV, após a conquista da Copa Sul-Americana, em 2018.

Nove meses depois, Nikão ganharia a Copa do Brasil e coroaria o resgate da carreira no Athletico.

“Agradeço ao presidente [Petraglia], que quando eu tinha 12 anos foi lá no Mirassol tentar me trazer para cá. Em 2013, acabou que já tinha sido anunciado pelo Athletico e também não deu certo. Entendo que é tudo no tempo de Deus. Tenho que agradecer a todos por acreditarem no meu trabalho”, emendou o jogador.

O clube já recusou pelo menos duas propostas oficiais para vender Nikão, que estendeu contrato até dezembro de 2021. O Tigres, do México, além de um time chinês e outro saudita já tentaram levá-lo.

A transferência não veio no meio da temporada 2019. Não era hora. Ainda.

“Mas agora temos a palavra do Petraglia de que, se chegar uma proposta boa para os dois, vai liberar. O Nikão tem o sonho de jogar no exterior. Para outro time do Brasil, não há como trocar o Athletico, por toda estabilidade que ele tem aqui”, garante Cesinha.

Casamento Nikão
Izabela e Nikão se casaram na Igreja em 2017
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