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 | Henry Milleo/ Gazeta do Povo
| Foto: Henry Milleo/ Gazeta do Povo

"O ECA não é só um projeto de lei, é um projeto de sociedade"

O começo da trajetória profissional da socióloga Graça Galhardo, em Fortaleza, Ceará, na formação de um dos primeiros conselhos municipais de direitos do país, coincide com a implementação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), no começo dos anos de 1990. "O ECA não é só um projeto de lei, é um projeto de sociedade. Ele convoca a família, o estado e a sociedade para se corresponsabilizarem por esse segmento no campo da política", resume.

De lá para cá, muito mudou. Se no início a sociedade civil organizada ocupou um espaço importante de referência na elaboração de metodologias usadas na área, muito por causa dos financiamentos da cooperação internacional, hoje o cenário é outro. "Essa nova inserção geopolítica brasileira de um novo pacto internacional, talvez um discurso muito centrado na sua autossuficiência, resultou numa drástica mudança do perfil dos financiamentos", explica a socióloga. Com isso, na análise de Graça, esse grande cacife da sociedade perdeu muita força e hoje aquelas funções que eram consideradas não exclusivas do estado, sobretudo no campo da assistência social, estão totalmente assumidas pelo estado.

Graça avalia que o grande desafio de hoje, tanto dos gestores públicos quanto da sociedade civil, é operacionalizar aquilo que o estatuto convoca há quase 25 anos e fortalecer a rede de proteção. (FT)

A proteção dos direitos de crianças e adolescentes é o foco da socióloga e especialista em políticas públicas Graça Galhardo há mais de 20 anos. E, às vésperas da Copa do Mundo, ela constata que a rede de proteção desse grupo mais vulnerável ainda está incompleta, especialmente em Curitiba. Circulando pelo país, a socióloga já visitou quase todas as cidades-sede e acompanhou o movimento naquelas capitais que tiveram jogos da Copa das Confederações. O que viu foi preocupante. Além de violações como trabalho infantil e exploração sexual, o consumo desenfreado de drogas – lícitas e ilícitas – e o abandono da população mais jovem saltaram aos olhos. Ainda assim, ela avalia que houve avanços em vários locais para minimizar possíveis transgressões aos direitos de crianças e adolescentes. Curitiba, porém, está atrasada nesse ponto, e ainda não apresentou as propostas de mapeamento da rede de proteção.

Graça também faz críticas à maneira como o governo conduziu os investimentos para o Mundial. "O Brasil se preocupou muito com infraestrutura e abandonou questões que poderiam ser muito importantes, como potencializar as ações voltadas para esporte, cultura e lazer", argumenta.

Em passagem breve por Curitiba, a socióloga conversou com a Gazeta do Povo sobre a situação da criança e do adolescente no contexto da Copa do Mundo.

Em meio à falta de articulação entre os atores sociais na área de proteção de crianças e adolescentes, como você vê a questão de o Brasil sediar grandes eventos como a Copa do Mundo e a Olimpíada?

Tenho visitado todas as cidades-sede e sentido um enfraquecimento muito grande da rede de proteção [às crianças]. A Copa é a oportunidade para a gente rever a situação, principalmente no campo de violações de direitos, mas ela por si só não pode constituir um elemento determinante. A gente sabe que há um incremento de casos nas regiões turísticas, onde a exploração sexual por motivação do turismo tende a crescer.

Dentro desse contexto da Copa, conseguimos avançar no que diz respeito à proteção da criança?

O Brasil se preocupou muito com infraestrutura, com estádios, prédios e ações, e abandonou questões que poderiam ser muito importantes nesse contexto, como potencializar as ações voltadas para esporte, cultura e lazer. O Brasil, com exceção de poucos estados, não tem incentivado a prática esportiva, nem oferecido opções de lazer, que são questões importantes consorciadas a uma política de educação, e que podem fazer a diferença na vida de milhares de meninos e meninas. Houve uma excessiva preocupação com obras físicas, com gastos enormes em relação a algumas metas que tinham sido pactuadas com a Fifa. E o que a gente constata hoje é que para a área da infância pouco se produziu. Também não se potencializavam outras ações do ponto de vista da própria educação, como trabalhar os professores e outros profissionais dessa área em questões que são elementares do ponto de vista de minimização do impacto da violência. Então, tínhamos cenários bem favoráveis para pensar ações que pudéssemos trabalhar com resultados mais positivos agora que a Copa se aproxima. A gente só espera que não aumentem as violações, que o legado não seja esse, mas o balanço é extremamente desfavorável.

Quais são os maiores riscos para os direitos das crianças e dos adolescentes?

A Copa é apenas o momento da oportunidade. Na verdade, independentemente dela, a situação da criança e do adolescente é muito grave, principalmente em relação a alguns aspectos que nós, sociedade e governo, não conseguimos resolver. Ainda são muito altos os índices de trabalho infantil e os indicadores relacionados à violência; há diferentes violações, principalmente no campo de violência sexual. Isso vem também de uma falta de processo de formação continuada das novas gerações e das antigas em relação ao padrão cultural a partir do qual crianças e adolescentes são percebidos. Tanto que essa forma de violência, sobretudo a sexual, tem características muito específicas: ela é relacionada à questão de gênero, de raça, de classe social, de geração.

O uso de drogas por jovens é preocupante?

Hoje ele é um elemento que não só é constitutivo do processo da violência, mas é concorrencial e cumulativo nesse processo. Estivemos acompanhando a Copa das Confederações e constatamos com muita tristeza um número elevadíssimo de adolescentes e jovens usando álcool sem nenhum controle. Outra coisa que nos preocupa é o abandono de crianças. São altos os índices de denúncias de negligência, de maus tratos, abandono material e de um conjunto de violações que estão no contexto da família. O que é que se fez com essa família? Hoje a situação é tão grave que não se pergunta mais se essa criança tem família, mas que família essa criança tem. E o que é que estamos fazendo em termos de políticas públicas para responder às diferentes e múltiplas formas de violação que são cometidas no contexto familiar? É outro desafio.

Você tinha uma agenda em Curitiba para saber como a rede de proteção da criança e adolescente está se articulando para a Copa. Como foi?

Acabou não acontecendo e esse foi mais um indicador negativo. O que nos pareceu é que não houve tempo hábil para mobilizar e o principal interlocutor solicitou o adiamento dessa reunião para esta semana, quando acontecerá a apresentação da proposta do mapeamento no conselho municipal da criança e adolescente. A expectativa é de que esse mapeamento seja produzido com a devida brevidade, considerando que já estamos a menos de 90 dias do mundial, num sentido de que minimamente a rede de proteção possa estar preparada, organizada ou que pelo menos a mídia e outros profissionais possam conhecer o que de fato em termos do sistema de garantia de direitos está sendo feito em Curitiba para minimizar possíveis impactos da violação de direitos de crianças e adolescentes.

E no resto do país, como está esse quadro?

No cenário nacional, essa realidade está um pouco mais avançada. Desde 2012 são feitas reuniões sucessivas, sob a liderança da Secretaria de Direitos Humanos, no sentido de, juntamente com a sociedade civil, se propor o que a gente chama de agenda de convergência. É um espaço em que estabelecemos um conjunto de princípios e diretrizes para que as cidades-sede possam estar minimamente preparadas durante e depois da realização dos jogos. Estão sendo construídos instrumentais, guias para implantação de plantões, para a realização de reuniões sistemáticas, espaços temporários na eventualidade de ocorrências de violações de direitos e melhor estruturação dos conselhos tutelares.

Quem observa uma violação dos direitos da criança sabe como fazer a denúncia?

Nós temos duas situações. O cotidiano, em que aquela ocorrência vem normalmente, não está dentro de um contexto de grandes multidões, grandes eventos. Esse do dia a dia até que tem sido bem acionado. Tanto que temos um Disque 100 que recebe um conjunto bastante significativo de denúncias por mês, em torno de 20 a 30 mil no Brasil todo. É bastante significativo, considerando que a gente sabe que o povo brasileiro não tem muito essa cultura de denúncia.

E na Copa, o que muda?

Com a experiência do carnaval de Salvador, que reúne um público até cinco vezes maior do que se espera na Copa do Mundo em qualquer cidade brasileira, pensamos no desenvolvimento de um aplicativo de celular que pudesse mapear toda a rede. Essa experiência foi testada em algumas ações realizadas em Salvador. É um aplicativo simples, gratuito, que agora tem o nome de Proteja Brasil. O governo federal tomou essa ideia como muito importante e apoiou esse processo no sentido de disponibilizar isso para sistemas mais atualizados de celulares. Você tem dentro do aplicativo o mapeamento da rede de proteção, o que significa um avanço no ponto de vista de usar a tecnologia a favor da proteção dos direitos da criança e do adolescente.

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