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Georges Mehdi expandiu o  judô para além da comunidade japonesa no Brasil. | YASUYOSHI CHIBA/AFP
Georges Mehdi expandiu o judô para além da comunidade japonesa no Brasil.| Foto: YASUYOSHI CHIBA/AFP

O francês Georges Mehdi fala um português perfeito e não tem dificuldade em se comunicar com os faixas pretas alinhados a sua frente. São suas lições de disciplina que os alunos não parecem entender.

“Quando começo a falar, vocês tem que sentar”, diz o mestre de 86 anos, exibindo a rara faixa 9º dan diante dos mais de cem judocas que assistem à aula magistral numa academia no Rio de Janeiro.

“Isto é judô, não é um lugar onde você vêm para dar risadas!”.

Surpresos, os brasileiros, todos adultos e muitos deles professores de judô, se calam e sentam.

O Judô, a mais que centenária arte marcial japonesa enraizada em noções de disciplina, respeito e hierarquia, pode culturalmente parecer a um mundo de distância do Brasil, um país tão extenso que algumas vezes beira ao caos.

Contudo, o Brasil se tornou uma superpotência do judô, com 19 medalhas olímpicas em sua história e expectativas de novas conquistas no mês que vem, quando o Rio sediará os primeiros Jogos Olímpicos na América do Sul (5-21 de agosto).

A transformação brasileira de ‘zero à esquerda’ no judô a habitué dos pódios é tão complexa quanto o mais complicado dos golpes da arte marcial.

O fundador do esporte, Jigoro Kano, expandiu o judô pela Europa e pelas Américas no início do século XX, mas o Brasil demorou para seguir a tendência.

Durante décadas o judô permaneceu amplamente restringido à comunidade de imigrantes japoneses que se instalou principalmente em São Paulo. Quando o Brasil conquistou a primeira medalha olímpica de judô, em Munique-1972, foi graças a Chiaki Ishii, um imigrante nascido e crescido no Japão.

Na época, porém, o esporte estava ganhando força e outros imigrantes - esta vez um francês naturalizado brasileiro e amante do Japão - teve sua parcela de responsabilidade.

Mehdi chegou ao Brasil no início do anos 1950, com 17 anos, deixando para trás sua cidade natal de Saint-Etienne e as dificuldades do pós-Segunda Guerra Mundial.

“Eu não queria ficar na França. Estava brigando nas ruas todos os dias”, explicou durante um curto recesso em sua aula. “Minha mãe não me aturava mais”.

Crescendo rapidamente pelos rankings do judô brasileiro, Mehdi ganhou a nacionalidade e foi várias vezes campeão nacional, inclusive lutando contra rivais bem mais pesados que seus 82 kg.

“Mas logo depois de ser campeão brasileiro em todas as categorias, me dei conta de que não sabia nada”, declarou. “Por isso decidi ir ao Japão”.

Valores mais profundos

Durante quase cinco anos sob os ensinamentos de mestres japoneses como o lendário Isao Kano, Mehdi afirma ter aprendido o que realmente estava faltando no Brasil: não tanto a técnica, mas sim as qualidades mais profundas do judô.

“Disciplina, educação, tradições e seriedade. Os brasileiros não tinham nada disso”, afirmou.

Na volta ao Rio, seguiu sendo um dos principais judocas do Brasil, conquistando medalhas nos Pan-Americanos de 1963 e 1967 e se tornando técnico da seleção nacional.

Com uma reputação de mestre severo e dedicado, Mehdi introduziu métodos modernos de treinamento e tirou o esporte do esquecimento, sempre atualizando o conhecimento com viagens regulares ao Japão.

O Brasil é atualmente o nono maior medalhista olímpico do judô, contando a União Soviética, e, apesar de seguir longe dos países tradicionalmente mais fortes como Japão, França e Coreia do Sul, integra a elite mundial do esporte.

Nos Jogos do Rio, a equipe de judô espera se beneficiar do fato de competir em casa, o que automaticamente garantiu judocas em todas as categorias de peso. Oswaldo Simões, um veterano da equipe olímpica de 1980 em Moscou, acredita que seis medalhas podem ser conquistadas entre masculino e feminino.

“O judô se tornou uma tradição no Brasil. Está em cada esquina e Georges Mehdi fez parte disso”, elogiou o ex-judoca e renomado professor, de 63 anos.

Disciplina à brasileira

Se a disciplina era o segredo de sucesso de Mehdi, sua veia purista também pode ter contribuído para sua queda.

Uma carreira de uma década como técnico da seleção e como judoca terminou com um sabor amargo, após uma briga com a Confederação Brasileira de Judô (CBJ) em relação a uma conduta da equipe que ele garante ter sido imprópria no Mundial de 1967, em Salt Lake City.

“Fui expulso da confederação porque sou muito severo”, declarou, afirmando que ainda acha que “os brasileiros são mal educados”.

Após a desavença, Mehdi se dedicou ao ensino da arte marcial, mas até após anos de convívio sua intensidade pega os compatriotas de adoção de surpresa.

Durante a aula magistral, Mehdi, que surpreende com golpes mortais apesar da idade avançada, frequentemente expressa sua exasperação.

“Quando chamo vocês, não se arrastem!”, esbraveja a um faixa preta. “No Japão você nunca faria isso. Você viria correndo. Agora recua e volta de maneira apropriada”.

Vania Benzaguen, uma judoca de 46 anos que treina regularmente com Mehdi, afirma que em algumas academias no Brasil “há gente deitada no tatame, conversando e rindo”. “Mas com ele, não”.

“Ele exige que prestemos atenção aos detalhes”.

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