Qual o futuro do Centro de Curitiba?
Revista tratou com bom inteligência e bom humor a identidade e o jeito de ser curitibano.| Foto: Daniel Castellano/Arquivo/Gazeta do Povo

“O curitibano é cauteloso, meio arisco. Mas não tímido: analítico”.

A síntese da personalidade do natural de Curitiba é de Paulo Leminski, impressa nas páginas da primeira edição da revista LeitE QuentE, publicação da Casa da Memória, da Fundação Cultural de Curitiba (FCC), produzida entre 1989 e 1992. Que em dez edições ofereceu a escritores, poetas, jornalistas e intelectuais, suas páginas para que apresentassem aspectos conhecidos e outros nem tanto da identidade curitibana, suas manias e peculiaridades. E que luxo para uma revista ter sua primeira edição escrita na íntegra por Leminski.

“O curitibano médio não pratica o relacionamento instantâneo dos litorâneos, de pronta chegada, rápida abordagem e intimidades súbitas. O jeitão ‘tudo-bem’ de cariocas e baianos, por exemplo. Nem é nossa empáfia gaúcha de quem chega dizendo ‘no más, e me espalho nos baizinhos, dou de prancha, nos grandes, dou de talho’, prosseguiu o poeta, escarafunchando a personalidade local.

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A edição em questão é de março de 1989. LeitE QuentE – com os dois últimos Es grafados em maiúsculas, para acentuar o sotaque– teve início quando a jornalista Maí Nascimento Mendonça assumiu a diretoria de patrimônio cultural da FCC naquele mesmo ano. “Resolvemos fazer algo que remetesse ao caráter curitibano”, explica, 34 anos depois. “Alguns estados do Brasil têm características bem marcantes, e Curitiba, ou o Paraná, não tinha nada que caracterizasse, que dissesse ‘[isso] é de Curitiba’”, relembra. A jornalista coordenou todas as dez edições – a última edição é de 1992.

A ideia de LeitE QuentE passava, então, pela reafirmação de uma identidade curitibana. Em um formato mais literário do que informativo, cada edição trazia um autor convidado. Nela, o escritor se debruçava sobre as idiossincrasias do curitibano em crônicas, a partir da vivência diária e da observação do comportamento local. Um outro autor assinava o texto de introdução – Maí assinou alguns. Sergio Mercer, Manoel Carlos Karam – que teve uma edição para chamar de sua – e Rosirene Gemael também estão entre os que redigiram textos de abertura da revista.

O número de estreia, assinado por Paulo Leminski. Foto: Dante Mendonça/acervo pessoal
O número de estreia, assinado por Paulo Leminski. Foto: Dante Mendonça/acervo pessoal

A escrita com sotaque

Jaime Lerner (1937-2021) estava em seu terceiro mandato como prefeito. Em reunião do conselho da fundação, nasceu a ideia de expressar, em um periódico, as personalidades múltiplas que compõem a cidade. Maí queria deixar claro algumas características do curitibano logo de cara, como quem busca gerar identificação na primeira impressão. E teve a ideia de dar à revista um nome capaz de revelar o sotaque local.

“Aí, o Jaime Lerner perguntou: ‘como você vai fazer para exemplificar o sotaque?’ Eu respondi que, graficamente, poderíamos utilizar o E maiúsculo”. Mas a ideia da revista nasceu na cozinha da casa de Maí. Ela e o marido, o também jornalista Dante Mendonça, junto com o arquiteto Fernando Popp, à época no Ippuc (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba), hoje no Instituto Jaime Lerner, conversavam sobre o que jornalista, então recém-empossada diretora, poderia fazer para falar do curitibano e reforçar sua identidade com humor e leveza.

Assinada por Leminski, a primeira edição teve como pauta a linguagem local. Muito além do sotaque, os textos do poeta de todo o comportamento e personalidade do curitibano, afetados pelo jeito de falar.

Leminski morreu três meses depois da publicação da revista, que saiu com o subtítulo “Nossa linguagem”. Maí se recorda da saúde já debilidade do autor, e da dificuldade que foi a produção daquelr número. “Foi quase um parto, mas ele conseguiu”.

A sede da Casa da Memória à época ficava na esquina das ruas Mateus Leme com Treze de Maio. Leminski produziu textos específicos para a revista, e somou com materiais escritos anteriormente. Ele e a então companheira, a cineasta Berenice Mendes, faziam visitas à casa durante a produção. As visitas resultavam em conversas sobre o material, publicado em março de 1989. “Ele demorou para concluir, foram vários dias”, resgata Maí. No fim, deu tudo certo. “Ele sempre foi um ser múltiplo em termos artísticos, e poderia falar de linguagem como algo mais amplo”, sintetiza.

Se a obra e a personalidade de Leminski despertavam discussões quentes, foi a segunda edição que, de fato, feriu suscetibilidades. O autor, Arthur Tramujas Neto, promotor público, mexeu num vespeiro ao afirmar, com provas extraídas de seus estudos sobre os tropeiros, que a origem da tradição do chimarrão quente era curitibana, e não gaúcha, como o país todo imagina. “Deu mais repercussão do que a do Leminski”, recorda Maí. A edição de nome ‘Passe a cuia, tchê’ obrigou o autor a se explicar. “O Tramujas teve de dar ‘trocentas’ entrevistas para as rádios de Porto Alegre, porque eles não se conformavam em perder a primazia do chimarrão. Mas ele prova [na revista] que a primazia é nossa”, completa. Entusiasta da cultura sulista, Tramujas utilizava o epíteto parano-gauchismo para se referir ao que defendia ser a real identidade paranaense.

A capa atleticana da revista que trouxe a visão de diversos autores sobre seus times de coração. Foto: Dante Mendonça/acervo pessoal
A capa atleticana da revista que trouxe a visão de diversos autores sobre seus times de coração. Foto: Dante Mendonça/acervo pessoal

Atletiba no campo das ideias

Para Maí, LeitE QuentE foi a primeira vez que o curitibano riu de si mesmo e falou de suas particularidades sem censura. A sexta edição, de outubro de 1990, reuniu autores rubro-negros e coxa-brancas sob o título ‘Atletiba literário’. Com duas capas – de um lado, a capa para os atleticanos, de outro, virando a revista de cabeça para baixo, a elaborada para os torcedores do Coritiba – contou com texto de introdução de Ernani Buchman. Paranista, estava neutro e, portanto, apto a introduzir a batalha entre os rivais, disputada no campo das ideias – sobre como cada autor se relacionava com seu time de coração e o futebol.

A capa coxa-branca. Foto: Dante Mendonça/acervo pessoal
A capa coxa-branca. Foto: Dante Mendonça/acervo pessoal

LeitE QuentE vinha empacotada com o talento de ilustradores, artistas gráficos e fotógrafos locais talentosos. A última edição, sobre as vicissitudes da boemia curitibana (‘NoitE QuentE’), elaborada por Paulo Roberto Marins, trazia na capa e ao longo das páginas ilustrações de Tiago Recchia.

Assinada por Abrão Assad, a capa de ‘A Cidade sem Mar’, a quarta edição, escrita por Karam, é uma obra de arte. Em crônicas, ele apresenta um ensaio sobre o comportamento do curitibano nas descidas ao litoral. Famoso pela ironia com que tratava assuntos diversos e pelo talento com que observava a vida, escreveu que “Curitiba tem apenas duas estações... ‘inverno’ e ‘Rodoferroviária’. E debochou, sem perder a ternura, do tempo em que as madames curitibanas recebiam amigos a beira-mar em Caiobá com os empregados vestindo uniformes.

A capa de ‘As Mocinhas da Cidade’, redigida por Maria Thereza Brito de Lacerda,  de agosto de 1991, coloca uma jovem com ares de início do século 20 para compor uma espécie de retrato art nouveau. E tem na escrita de Dalton Trevisan parte de sua inspiração: Maria Thereza faz uma análise sobre o que era a vida das jovens curitibanas nos anos 40 e 50. E registra o provincianismo da cidade à época, com orientações sobre boas maneiras e regras de comportamento.

Edição escrita por Manoel Carlos Karam, com capa de  Abrão Saad. Foto: Dante Mendonça/Acervo pessoal
Edição escrita por Manoel Carlos Karam, com capa de Abrão Saad. Foto: Dante Mendonça/Acervo pessoal

Cerveja, gengibirra e instalação de Leminski

Como se não bastasse a seleção de pesos pesados do jornalismo e do pensamento curitibano, as festas promovidas a cada lançamento de edição, na antiga sede da Casa Romário Martins, na Praça Garibaldi, eram um acontecimento. No lançamento da primeira edição, a festa contou com patrocínio da cerveja Brahma. Leminski aproveitou as latinhas da cerveja e fez uma instalação, ao vivo, enquanto bebia.

As festas contavam também com gengibirra, espécie de símbolo da cultura local, e cachorro quente. Maí lembra que estudantes de um cursinho pré-vestibular que ficava em frente à Casa Romário Martins aproveitavam a boca-livre para matar a fome e se divertir. “As festas de lançamento eram uma farra”, conta. “Juntava umas 400 pessoas, apinhadas na casa Romário Martins. Aquilo se expandia para o Largo da Ordem. Fazíamos uma exposição com [imagens] nas paredes relativas ao tema da revista, fazíamos coquetel, era muito divertido”. A edição ‘Os Catarinas do Paraná’ (agosto de 1989), de Deonísio da Silva, contou com lançamento também em Florianópolis (SC).

Encerrar a publicação no décimo número não foi algo premeditado. A jornalista migrou para a comunicação social da prefeitura em 1992, e quem assumiu seu lugar na diretoria de patrimônio cultural da FCC não deu sequência ao projeto. Todas as edições estão disponíveis para consulta atualmente na Casa da Memória, no São Francisco. Muitos dos autores e autoras que explicaram nas páginas da revista a personalidade curitibana já morreram, mas o legado que LeitE QuentE deixou permanece vivo, reflete Maí. “Quem leu a revista na época e lê hoje, se reconhece como curitibano”, conclui.