O Corcel azul nas ruas do Boqueirão em “Coração de Neon”, de Lucas Estevan Soares.
O Corcel azul nas ruas do Boqueirão em “Coração de Neon”, de Lucas Estevan Soares.| Foto: Gregory Bull/divulgação

Esqueça a Curitiba dos pontos turísticos famosos pelo país, das grandes áreas verdes, do circuito gastronômico variado e gourmet. A cidade apresentada no longa-metragem “Coração de Neon”, do diretor e ator Lucas Estevan Soares (32) é a do dia a dia. O Boqueirão, bairro onde o filme foi rodado (e onde Lucas nasceu e morou até o início da vida adulta), é uma espécie de representação de todos os cantos periféricos da cidade, a que acorda cedo, encara filas nos tubos, se aperta em alimentadores e biarticulados, franze a testa dentro dos carros parados no trânsito, não tira os olhos da tela do celular à espera do carro do aplicativo. É a Curitiba que o Brasil ainda não conhece.

Em cartaz nas principais capitais do país desde o dia 9 de março, o filme conta a historia de Laudércio (Paulo Matos) e Fernando (Lucas), pai e filho que se dividem no comando de um carro de telemensagens, um velho Corcel 1 azul decorado com luzes de neon e um sistema de som, que circula pelas ruas do bairro do Boqueirão. Eles sonham em levar o serviço de telemensagens de amor por encomenda aos Estados Unidos, mas uma tragédia mancha de sangue o sonho de vencer na América, e revela uma espiral de violência de gênero e a visão que uma parte significativa das autoridades têm das periferias do país.

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Com orçamento de R$ 1,6 milhão (incluindo custos de distribuição), Coração de Neon foi feito sem financiamento público, com recursos levantados pelo próprio diretor junto a apoiadores por meio da produtora IHC (International House of Cinema, que também atua nos Estados Unidos), de Lucas e sua esposa, Rhaíssa Gonçalves, produtora executiva do filme.

A história escancara a violência contra a mulher, uma realidade áspera e cruel, e a luta diária da população dos bairros mais afastados.  Os números são bastante doloridos, e constam no boletim Elas vivem: dados que não se calam, lançado no início de março pela Rede de Observatórios da Segurança, que registrou 2.423 casos de ataques contra a mulher em 2022 – 495 deles, feminicídio. Ao preferir o Boqueirão como locação em vez dos manjados pontos turísticos de Curitiba, a história traz as questões a um plano ainda mais real.

O diretor e ator Lucas Estevan Soares ao volante em cena de 'Coração de Neon'. Filme estreou no dia 9 nas principais capitais do país. Foto: Gregory Bull/divulgação
O diretor e ator Lucas Estevan Soares ao volante em cena de 'Coração de Neon'. Filme estreou no dia 9 nas principais capitais do país. Foto: Gregory Bull/divulgação| Gregory Bull

O Boqueirão como personagem

As cenas filmadas nas ruas de um dos bairros mais populosos de Curitiba aumentam a verossimilhança que uma história sobre um Corcel velho transmitindo mensagens de amor em pleno 2023 precisa. Ao utilizar todo o vocabulário das ruas do Boqueirão, o time de futebol de várzea local (e a rivalidade com outro time amador, em uma briga de torcidas cenográfica que quase se tornou real) e personagens do bairro – um deles, um morador de rua que não estava no roteiro, aparece e, de forma involuntária, se apresenta como um grito paralelo a outro tipo de violência assistida diariamente nas esquinas do país –, o longa transforma a região em uma espécie de personagem coadjuvante.

O elenco, formado quase que integralmente por atores e atrizes da cidade (a convocação para os testes se deu pelo Instagram), reforçou aspectos regionais. É o arcabouço necessário para fazer de ‘Coração de Neon’ o provável filme mais curitibano já produzido.

Lucas tem pretensões para o filme. Não se trata de uma produção de arte. A ideia é alcançar o máximo de espectadores possíveis pelos cinemas do país, e quem sabe entrar em alguma plataforma de streaming mais adiante. Para o diretor e ator, antes de tornar a história local demais, a escolha por um bairro periférico para rodar o filme, e todas as gírias e maneirismos empregados pelos personagens, universaliza a discussão, porque faz conexões com jovens das periferias espalhadas pelo Brasil.

A briga fictícia de torcidas filmada em um dos terminais da cidade é um aspecto duro, porém real, da rotina da periferia de Curitiba. Foto: Gregory Bull/divulgação
A briga fictícia de torcidas filmada em um dos terminais da cidade é um aspecto duro, porém real, da rotina da periferia de Curitiba. Foto: Gregory Bull/divulgação | Gregory Bull

É 100% guerrilha

“Enxergo o cinema de guerrilha como o dos verdadeiros apaixonados, porque você arrisca suas finanças pessoais, pode entrar em grandes dívidas, mas é como qualquer empreendedor. Quanto mais alto seu sonho, mais você se arrisca”, avalia Lucas. Mas o diretor vê no modelo uma vantagem, que entende não teria se tivesse captado recursos via lei de incentivo: a liberdade. “Por mais difícil que seja produzir com poucos recursos, você tem total liberdade com a obra. Não fica engessado a nenhum modelo”.

Para Lucas, esse modo ‘faça você mesmo’ de produzir cinema, com poucos recursos e livre de fórmulas, é a essência do documentarista. “Coração de Neon”, detalha, é sua jornada empreendedora somada à experiência de ator, diretor e músico, tudo dentro de um único projeto.

A centelha da ideia surgiu em 2014, quando Lucas conta ter imaginado um carro de mensagens em uma perseguição. Graças aos trabalhos feitos com a IHC nos Estados Unidos, mais economias próprias guardadas - ele é casado com Rhaíssa Gonçalves, produtora executiva do filme – conseguiu recursos bancar o próprio filme. O roteiro foi escrito em 2018; as filmagens tiveram início no final de 2019, “mas veio a pandemia e a gente praticamente foi a falência”, conta. O longa foi concluído no ano passado e então tomou o circuito dos festivais.

A atriz Ana de Ferro e Lucas em cena do filme, que pode virar série dependendo do sucesso obtido nos cinemas do país. Foto: Gregory Bull/divulgação
A atriz Ana de Ferro e Lucas em cena do filme, que pode virar série dependendo do sucesso obtido nos cinemas do país. Foto: Gregory Bull/divulgação

Uma série? Depende da bilheteria do filme

Lucas deixa a modéstia de lado em conversas com jornalistas logo após a pré-estreia em Curitiba, no início de março. Vê 'Coração de Neon' superior a algumas produções nacionais recentes que contaram com mais verba. Ele não está de todo errado. A estética do filme feito na raça, da câmera que corre ao lado dos personagens e parece querer se envolver nas tretas e nas cenas românticas, a qualidade do áudio e a fuga do fácil ao optar por um bairro suburbano em vez dos pontos turísticos da cidade fazem de 'Coração de Neon' uma obra independente que ousa pedir um lugar nas listas de melhores filmes nacionais de 2023.

Um spin off do longa, em forma de série, está em discussão, mas vai depender do sucesso do filme nas telas. Enquanto isso, o diretor já trabalha em uma co-produção Brasil-Argentina, ainda sem previsão de lançamento, sobre o orgulho da miscigenação.

“'Coração de Neon’ é um bom filme", sintetiza. "Tenho muito orgulho dele. Só que eu não tenho como controlar o gosto das pessoas, é sempre uma incerteza. Mas a reação que eu tive das plateias que viram o filme foi sempre positiva. E isso me dá mais medo ainda, porque gera expectativa", assume. “Espero muito que pelo menos Curitiba abrace o filme como ele merece”.