Entrevista

Arquitetura

“A arquitetura é mecanismo de transformação em qualquer classe social”, defende Giancarlo Mazzanti

Luan Galani
13/04/2022 21:19
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Coliseo Desportivo em Medellin. | Sergio Gomez/Divulgação

Uma das gratas surpresas da Semana Acadêmica de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Positivo 2022 foi a palestra digital, gratuita e aberta ao grande público do arquiteto colombiano Giancarlo Mazzanti, um dos profissionais mais admirados da América Latina. Fundador do escritório El Equipo Mazzanti, o arquiteto de sobrenome italiano coleciona prêmios internacionais e já lecionou nas universidades de Harvard, Columbia e Princeton, todas nos Estados Unidos, além de ser o primeiro arquiteto da terra de Gabriel García Márquez a expor obras na coleção permanente do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa) e do Centro Pompidou, na França.
O que diferencia Mazzanti são os valores sociais que estão no centro da arquitetura que pratica, com projetos voltados a facilitar transformações sociais, a construir comunidades e a melhorar o design ambiental e a igualdade entre as pessoas. Por meio de práticas experimentais, ousadas e até subversivas, o colombiano demonstra de forma muito clara que a boa arquitetura pode sim ajudar a levar novas identidades para cidades e seus habitantes, transcendendo qualquer reputação de pobreza e criminalidade. Ele concedeu uma entrevista exclusiva para HAUS, por chamada de vídeo, e conversou com a reportagem direto de sua casa, em Bogotá, na companhia de seus cachorros Bruno e Dante.
HAUS - O que te levou a se dedicar à arquitetura, design e pesquisas mais focadas nas mudanças e no bem-estar social?
Giancarlo Mazzanti - Creio que tem uma condição decisiva, que é muito estranha na Colômbia, mas que no Brasil é muito usual. Sou uma mistura de culturas: família italiana, família francesa, família colombiana, família caribenha. Essa condição multicultural, somada a muitas viagens em família, me fez conhecer a arquitetura, principalmente na Europa. E fui me conectando com a arquitetura dessa forma. Quem escolhe uma carreira, no fundo não sabe muito bem o que está fazendo. Eu era péssimo estudante e passei por muitos colégios. Mas quando cheguei na universidade, encontrei um espaço que me encheu de entusiasmo e felicidade. Virei estudioso e me emocionei com o que estava fazendo. Digamos que essa é uma parte importante do meu ofício: o entusiasmo. É um tema fundamental para sobreviver. Porque é difícil, um pouco frustrante, porque não se faz nada sozinho. E fui chegando ao tema social por casualidade. Como tudo na vida. Comecei a fazer colégios públicos e me dei conta que a arquitetura dos meus projetos era feita por meio de concursos públicos. Comecei a entender a relação do espaço como uma forma de educar e o que isso implicava em bairros muito pobres. Surge então o interesse específico sobre como podemos pensar outra arquitetura que não baseada na eficácia e funcionalidade. E assim acabo chegando na Biblioteca Espanha, um projeto que me conecta a um grupo de arquitetos de Medellín que tinha um trabalho fantástico de entender projetos urbanos integrados. A mim me parece esclarecedor que quando fazemos arquitetura, seja para ricos ou para pobres, estamos fazendo em uma condição social, independentemente do dinheiro, que é comunitária, comunal, e igualmente válida para um e para outro. Estigmatizam-nos muito, mas a arquitetura é mecanismo de transformação em qualquer classe social. A arquitetura tem condição de ativar relações, de gerar elementos comuns, de construir cultura e sociedade. Esse é o interesse final.
HAUS - O que muda no dia a dia dos arquitetos e das cidades quando o profissional começa a se centrar nessas questões sociais?
Giancarlo Mazzanti - Muda algo que acho que é fundamental. Entender que o valor da arquitetura não está só nela mesma, na coluna, na viga etc. Mas no que gera. E o que nos interessa é como fazer isso de uma maneira mais aberta e menos controlada, menos precisa. Então, começa-se a pensar em um desequilíbrio que é importante. As comunidades esperam por isso, e políticos e arquitetos podem fazer. É pensar num modelo de cocriação. É ouvir e entender o outro. Suas aspirações e suas ilusões. É entender que a arquitetura pode ser mais relacional e performativa, e não como algo para ser observada.
Parque Educativo Marinilla, na Colômbia.
Parque Educativo Marinilla, na Colômbia.
HAUS - Muitos arquitetos brasileiros e de outros países vizinhos tem extrema dificuldade de conciliar um projeto arquitetonicamente bom com boa segurança, visto os índices de violência nas grandes cidades. Como fazer isso?
Giancarlo Mazzanti - Primeiro, a arquitetura não resolve o problema de segurança. Mas pode gerar senso de apropriação nos entornos próximos. E quando há essa apropriação, esses setores tendem a ter menos violência. Penso que um bom exemplo é a Biblioteca de Medellín. Não é que acaba com a violência, mas reúne pessoas, atrai turismo. Isso ajuda a criar segurança, visibilidade, pertencimento, e ajuda a minimizar a violência.
HAUS - Como você caracterizaria a produção arquitetônica atual da Colômbia? Como pensam os arquitetos colombianos?
Giancarlo Mazzanti - Não é um problema da Colômbia, mas de uma sociedade e de um mundo fragmentado pela hiperinformação, o que leva à criação de microdiscursos na arquitetura. Há de todo tipo, mas perdeu-se a conexão de construir o comum, o comunitário, a comunidade. Há uma individualização exagerada da arquitetura. Um tema fundamental é a sobrevalorização ou pressão para ser autêntico. Há também um desaparecimento dos rituais. E essa produção para ser produtivo, eficaz, ganhar dinheiro. Temos mais um papel de produtores de dinheiro do que outra coisa. Com essa pressão para ser autêntico, os arquitetos viram uma figura diferente, gerando essa fragmentação. Precisamos de diversidade de cursos, regionalismos críticos, busca de identidade, e menos sobrevalorização da objetualização. No final, temos que fazer arquiteturas capazes de construir comunidade e cultura. Nós polarizamos muito as coisas. É branco ou preto, e assim somem as matizes. Viram extremistas. A sociedade perde a capacidade de entender os pontos intermediários que são válidos. O local e o global podem coexistir, é possível manter diferenças dentro de um projeto e de uma sociedade. Conviver juntos mesmo que se contradigam.
HAUS - Aqui no Brasil estamos muito apegados a projetos feitos por arquitetos das administrações públicas. Em geral com propostas ruins ou limitadas. O que fazer para convencer os governos de que os concursos públicos ou a contratação de outros profissionais é mais interessante?
Giancarlo Mazzanti - A arquitetura tem um papel importante na construção da sociedade. Mas perdemos a capacidade de propor e construir pensamento. Somos figuras de bom gosto. E quando o discurso se converte nisso, em algo tão autorreferencial, falando em códigos entre arquitetos, não conseguimos traduzir para as pessoas e os políticos. Só conseguimos dizer se é bonito ou feio. A frase vai soar estranha, e vão me criticar, mas no dia que deixarmos de fazer casas bonitas, vamos construir nosso papel. Isso é muito subversivo, mas temos que aprender a construir "habitats". E quando você chama um funcionário dentro da instituição pública para a arquitetura, está sendo desleal com os arquitetos, porque o papel do estado é dar a mesma oportunidade para os profissionais. Mas os concursos também têm problemas. O jurado é quem decide quem ganha e ele pode se equivocar, pode escolher algo superdesenhado, mas que não é o que o país necessita. Para isso tem que ter um bom júri. E é um tema complexo esse de como escolher jurados. Tem três maneiras de fazer a arquitetura: o arquiteto que desenha a mesa, o professor que educa e constrói formas de fazer, e os jurados que decidem quem ganha e quem vai fazer o projeto.
HAUS - Seu escritório usa muito o termo jogar. O que é o “We Play, You Play”? E como isso se traduz nos ­seus projetos?
Giancarlo Mazzanti - Poderia se traduzir mais, mas é difícil o cliente entender o que queremos fazer. Isso começa com a fundação que criei há seis anos, porque queria um estúdio de pesquisa constante, de relação direta com a comunidade. A planta de arquitetura seguimos produzindo com eficácia e produtividade. É um jeito de atender, um jeito clássico e funcional. Mas há outras maneiras de construir relações, de introduzir outras formas de usar os edifícios. Como o hospital com uma área de dança ou de jogos para crianças. Os clientes não entendem. Tem uma frase que traduz isso muito bem: jogo é toda atividade humana de criação e exploração de possibilidades não encaminhadas para o benefício econômico. Quando digo jogo, as pessoas pensam em brincar. Mas é uma forma de jogo de adultos, de explorar possibilidades não focadas no benefício econômico, nem na instrumentalização da sociedade com hipereficácia e produtividade da sociedade. Há projetos que permitem. Como os educativos. As crianças são pequenas e cabem em nichos. Mas um museu com local para brincar, as pessoas perguntam: para quê? A gente segue achando que é instrumento de eficácia. E as pessoas sempre dizem que querem apartamentos funcionais. Mas funcional para quem? Tudo muda de acordo com os hábitos. E esse nome nasceu de uma bienal que fizemos em Chicago, em que a pergunta era: qual é o estado da arquitetura? Fizemos uma exposição de forma relacional, em que o usuário criava um novo projeto sobre o projeto, o usuário assumia o papel da arquitetura.
HAUS - A presença de edifícios para educação é uma constante no seu portfólio. Por que esses projetos são importantes para você?
Giancarlo Mazzanti - Porque posso experimentar sobre o que falo de forma mais fácil do que em outros projetos. Na educação, o espaço é um mecanismo de aprendizado. O pedagogo entende isso. Mas no hospital, o médico, não, por exemplo. Prefere-se uma sala de espera convencional do que uma sala de exercícios ou uma área pública em que os doentes possam ver as crianças brincando. Isso poderia produzir novas relações, ativar outras. Mas o que vale é o mundo fragmentado, e não se comunicam. É o mesmo que a arquitetura moderna faz: toma a função e, quase como em um laboratório, tira todo o resto e usa como pilar para tudo. No fim, faço mais colégios porque é mais fácil de aplicar o que quero. Me emociona.

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