Opinião

Arquitetura

A importância do desenho a mão (que está desaparecendo) na arquitetura

André Prevedello*
24/06/2020 17:00
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Estudo para Centro Cultural na cidade de Curitiba, em frente ao Shopping Mueller, pela AP Arquitetos, de 2007.

Em uma típica tarde de inverno curitibano, no ano de 2002, frente a uma plateia de 300 estudantes, um senhor de 95 anos de idade traça linhas contínuas em folhas de papel branco penduradas em um quadro negro. O desenho é simples, com linha trêmula, fácil de compreender, chega a ser icônico. Cada traço revela e resume uma arquitetura mundialmente conhecida. Trata-se de Oscar Niemeyer, um dos mestres da arquitetura do século 20, que durante suas viagens de carro para a construção de Brasília costumava olhar as nuvens no céu procurando desenhos de catedrais e edifícios.
No exemplo, o desenho com toda sua pureza, é comunicação, expressão, fala e sentimento, poucas linhas traduzem toda a complexidade de cada obra arquitetônica. Estamos falando de edifícios icônicos como o Museu de Niterói (MAC), o Congresso Nacional e o próprio Museu Oscar Niemeyer (MON) que estava então, naquele dia, sendo inaugurado.
Apesar de toda a poesia envolvida junto aos traços de Niemeyer, o desenho à mão em arquitetura parece cada vez mais estar sendo esquecido e deixado de lado frente à concorrência desmensurada das tecnologias digitais. Perdemos, assim, a impressão digital do arquiteto e é aqui que reside a maior força do ato de desenhar. Esta força de expressão a qual necessita estar impressa no papel, com a linha trêmula, que percebe a variação de força, criando linhas ora mais espessas, ora mais finas, que se torna descontínua e com isso marca no papel um ato humano.
A evolução das técnicas de representação não pode e não deve ser justificativa para a decadência de uma arte tão nobre à profissão. No campo das artes a história deixou suas marcas em processos artísticos extintos e que agora buscam ser resgatados. Muito da história grega que se conhece hoje vem de uma arte há muito tempo já extinta. Trata-se da pintura em vasos a qual declinou fortemente no início do século 5 a.C. Amphora, Hydria e Kantharos eram alguns dos típicos vasos que, produzidos em diversos tamanhos, estavam associados a uma forma e uma função (transporte de líquidos).
Perto de 600 a.C., Atenas dominava o Mediterrâneo exportando os vasos e a arte de artistas locais. Esses procedimentos evoluíram de uma pintura preta sobre o fundo natural até pinturas com figuras vermelhas sobre fundo preto, representando figuras humanas, deuses e mitos gregos. Mesmo com a limitação das pinturas em duas dimensões, os desenhos eram representados com feições, ação, poses, gestos e emoções. Por volta de 320 a.C. a arte da pintura sobre vasos se tornaria uma arte morta.
Estudos concurso Pavilhão brasileiro Expo Dubai 2020. Projeto AP Arquitetos, de 2019.
Estudos concurso Pavilhão brasileiro Expo Dubai 2020. Projeto AP Arquitetos, de 2019.
A história grega relatada mostra como uma simples necessidade (carregar líquidos) foi além de sua mera função para conter em si também informação em forma de arte. Assim, forma e função atuaram de maneira conjunta para o desenvolvimento de uma técnica de desenho. Contudo, a forma foi uma das características que determinou a morte desta arte, afinal, a pintura, já evoluída, não poderia mais ser representada nos vasos, curvos, sendo as paredes planas das construções superfícies mais “adequadas”.
A forma não eliminou a função já que os vasos continuaram a ser utilizados, mas a forma aniquilou a arte da pintura em vasos e assim esta técnica de desenho se perdeu. Assim, cabe aos arquitetos, desde os mais novos, buscar valorizar e resgatar a fundo o desenho à mão como ato básico de comunicação e de intenção da nossa profissão, para que esta também não se perca. Costumo falar que o desenho à mão pode falar e expressar algo. Pode mostrar um juízo de valor, ou seja, pode revelar como é a pessoa que segura o lápis. Ao olharmos um quadro de Van Gogh é possível sentir o peso de cada pincelada. Estamos falando de um desenho denso, profundo, com sentimento, reflexo de uma época e de uma pessoa que estava em turbulência.
Também ao analisarmos o desenho de Tarsila do Amaral podemos sentir as linhas e as formas suaves, arredondadas, puras, como que demonstrando uma calma inerente ainda que tratando de temas profundos ao nosso país. Para a arquitetura o desenho é a ferramenta do projeto e assim mostra uma intenção, afinal, como disse Vilanova Artigas “ninguém desenha apenas pelo desenho”. Seja um projeto de
uma instalação artística, seja uma arquitetura, ou mesmo uma cidade, é a ação intelectual que está em jogo. Quando desenhamos, atacamos o imponderável, e a arquitetura de hoje, da época do espetáculo, necessita muito deste desenho com ‘’vida’’, que foge ao genérico, e que busca profundidade.
Não sejamos aqui simplistas, não falaremos de regras ou dogmas, contudo realmente acredito que o desenho verdadeiro, profundo, sem necessariamente representação com o mundo real, mas com o mundo imaginado pode ajudar a arquitetura a recuperar esta capacidade crítica que vem perdendo e com isso também ajudar a própria sociedade a melhorar o seu modo de viver coletivamente em nossas cidades. Afinal, lembrando o que disse Paulo Mendes da Rocha, ‘’a cidade não é fenômeno, é ação, projeto’’, e assim é desenho.
*André Prevedello é arquiteto, urbanista, músico e artista. Fundador e diretor do escritório AP Arquitetos, com projetos e prêmios no Brasil, América do Sul e Europa. Procura manter prática e pesquisa caminhando juntas compreendendo cada projeto como um estudo teórico e prático. Acredita profundamente na arte como uma crítica responsável por revelar a maneira como a sociedade se desenvolve.

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