Opinião

Arquitetura

Por que as cidades não deveriam continuar as mesmas depois do coronavírus?

Augusto Pereira*
03/04/2020 17:27
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Foto: Bigstock

As cidades no centro da pandemia: entre a causa e a solução
A sociedade contemporânea é essencialmente urbana. Isso quer dizer que não só a maioria das pessoas do mundo está vivendo em cidades como também o estilo de vida urbano se difunde para além dos seus limites. Com a expansão cada vez mais acelerada das tecnologias e dos objetos informacionais, a noção de onde começa e onde termina uma cidade deixou de existir. Com a pandemia do novo coronavírus, os limites impostos pelos seres humanos foram escancarados de uma vez por todas, provando que as fronteiras são meras demarcações virtuais. Assim como a cultura urbana, o coronavírus não segue as fronteiras humanas.
Essa semelhança não é mero acaso. Estamos falando de fenômenos de diferentes especialidades da ciência, mas que por estarem diretamente relacionado ao ser humano e ao seu comportamento, tendem a apresentar semelhanças. A pandemia que hoje nos prende a casa teve início na China, mais precisamente na cidade de Wuhan (11 milhões de habitantes) em um mercado que comercializava animais. Sem adentrar em aspectos de biologia, que não compete a mim e ao foco do texto, vamos manter a atenção ao mercado e ao contexto urbano.
Mercado em Hong Kong similar ao de Wuhan | Foto: Bigstock
Mercado em Hong Kong similar ao de Wuhan | Foto: Bigstock
A demanda por mercados é resultado da aglomeração dos seres humanos em cidades. As cidades não conseguem ser autossuficientes na produção de alimentos para toda sua população e, portanto, dependem da produção rural e de centros de distribuição para que esses alimentos cheguem a todos. Esses centros de distribuição assumem variadas formas nas culturas ao redor do mundo. Seja em forma de feiras, mercados ou supermercados. Porém, todos com o mesmo papel: oferecer comida de modo amplo à população. As condições e os procedimentos específicos de cada um acabam por ter influência cultural e econômica. Nos países do ocidente acontecem de um jeito. Em países do oriente, de outro. Países ricos podem oferecer condições sanitárias mais adequadas. Países mais pobres, nem tanto. E deixo claro, aqui, que meu argumento não se constrói sobre essas questões.
A questão chave é o nível de especialização das áreas em que o ser humano vive. Algumas áreas têm especialidade na produção de alimentos. Outras, na produção industrial. Outras, na produção científica e de conhecimento. Esses âmbitos de especialização estão relacionados, entre outros fatores, com a quantidade de espaço físico que tais atividades demandam. Por isso existe a incompatibilidade entre a urbanidade da congestão e do adensamento com a autossuficiência na produção de alimentos. E isso não necessariamente é algo ruim. Da mesma forma em que os grandes centros urbanos dependem das áreas rurais, elas também dependem das cidades. A produção do conhecimento, de ciência e tecnologia, é o que viabiliza métodos de produção mais eficientes – e isso se aplica desde a produção de transgênicos até manejos sustentáveis da terra como as produções agroflorestais. Assim, a cultura urbana atinge o meio rural através da difusão de informação e da aplicação do conhecimento.
Este, por sua vez, chega através das técnicas aplicadas ao cultivo de alimentos, de produtos científicos ou pela informação que trafega na rede invisível que conecta o planeta de forma ampla. Quem já viu uma colheitadeira hoje, forrada de dispositivos tecnológicos e conforto para seu operador, pode confirmar que a experimentação da cultura urbana, hoje, pode ser feita de qualquer lugar do globo terrestre.
Foto: Gazeta do Povo/Arquivo
Foto: Gazeta do Povo/Arquivo
E o que isso tudo tem a ver com a pandemia?
O novo coronavírus se propagou amplamente através de um mercado de alimentos. Adentrou os limites da cidade justamente em um de seus pontos de contatos com o meio rural. Pior, pegou o ser humano (metaforicamente falando) por onde ele mais sente: pelo estômago. Foi da necessidade de manter aglomerações humanas alimentadas que um organismo invisível aos olhos se espalhou. Não fosse em Wuhan, poderia ter sido em qualquer outro grande centro urbano. São as cidades que mais estão sentindo os impactos do vírus. É nas cidades que estão se concentrando a maioria dos óbitos. É por causa da aglomeração urbana que o vírus se espalha tão facilmente. É nas cidades, também, que estamos tratando nossos doentes. E é nas cidades que estamos pesquisando à exaustão tudo o que essa nova realidade que nos foi imposta exige, desde a cura para a doença até os impactos que serão gerados por essa condição atual.
A cidade participou ativamente no espalhamento da epidemia, e será também a fonte da sua solução.
A vida, o mundo e a sociedade não serão mais os mesmos após esse momento histórico que estamos vivenciando. Então por que deveriam continuar sendo as mesmas as nossas cidades?
Agora, além de olharmos para os gráficos, que esticam e achatam dia após dia nos noticiários, devemos parar para refletir sobre essa nossa cultura urbana. Cultura que eu já considero ultrapassada. A vida, o mundo e a sociedade não serão mais os mesmos após esse momento histórico que estamos vivenciando. Então por que deveriam continuar sendo as mesmas as nossas cidades? Chegou a hora de nos perguntarmos por que nossas cidades carecem tanto de espaços verdes? Por que não produzimos parte do que consumimos dentro dos nossos centros? Por que não cuidamos e tratamos dos nossos descartes? Por que nossas cidades alagam tanto? Por que insistimos em nos locomover de forma individual em uma caixa de metal como se isso fosse sinal de status? Por que a cidade é tão boa para alguns e tão ruim para outros? Por que nossos governantes não promovem política públicas efetivas com foco nessas questões?
Vista aérea de Recife | Foto: Gazeta do Povo/Arquivo
Vista aérea de Recife | Foto: Gazeta do Povo/Arquivo
A crise da pandemia nos deixou claro: status mesmo é ter liberdade, é poder se alimentar com qualidade, é poder ter saúde, é ter escolhas. E então porque nossas cidades só nos dão as soluções para esses problemas e não os meios para que eles não existam?
O momento é crítico. Dizem que são dos momentos difíceis que são construídos os bons. Então, que assim seja. Hora de refletir também sobre como fazer um futuro diferente para nossas cidades.
*Augusto Pereira é arquiteto e urbanista, sócio do escritório M4Mais, doutorando em gestão urbana pela PUCPR, professor da FAE Centro Universitário.

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