Brasília, 60 anos

Arquitetura

Brasília e seus contrastes: a cidade planejada sem desenho urbano

José Rodrigues Cavalcanti Neto e Maurício Goulart*
21/04/2020 20:36
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Brasília em 1964: cidade planejada, mas sem desenho urbano.

Brasília completa 60 anos, carregando
consigo algumas contradições. É certo que toda urbe tem seus
contrastes, e Brasília não foge à regra. Mas talvez pelo fato de
ser uma cidade planejada, os contrastes de Brasília tocam de uma
maneira diferente.
A primeira contradição diz respeito à
definição de Brasília. Pode parecer estranho mas... o que é
Brasília?
O que existe, de fato, é o Distrito
Federal, que tem a peculiaridade de não ter municípios, mas Regiões
Administrativas. Atualmente o DF conta com 33 delas, sendo que as
últimas foram criadas no ano passado. Via de regra, muitas são
tratadas na imprensa como cidades (antigamente, “cidades-satélites”),
outras são chamadas apenas RA, mas nenhuma delas possui autonomia
administrativa.
Tema de diversos debates, podemos dizer que temos dois extremos: alguns defendem que Brasília restringe-se à Região Administrativa I, composta pela Asa Sul, Asa Norte e pelo Parque Nacional, enquanto outros entendem que Brasília é sinônimo do Distrito Federal. Fato é que, dependendo da abordagem, o termo Brasília assume diferentes contornos, assim como faremos no decorrer do texto.
Mapa com as 33 regiões administrativas do DF. Brasília pode ser considerada a RA I, denominada no mapa como Plano Piloto, ou o conjunto de todas as RAs.
Mapa com as 33 regiões administrativas do DF. Brasília pode ser considerada a RA I, denominada no mapa como Plano Piloto, ou o conjunto de todas as RAs.
A cidade é planejada! E o desenho
urbano?
A estrutura administrativa voltada
muito mais a uma escala metropolitana, como mencionamos acima, tem
impacto direto, acreditamos, na capacidade do Governo do Distrito
Federal de “desenhar” a(s) cidade(s), algo fundamental para a
qualidade do espaço urbano na escala humana. A cidade planejada por
Lucio Costa - com suas quatro escalas (Monumental, Gregária,
Residencial e Bucólica), seu sistema hierárquico de arruamento,
suas superquadras e unidades de vizinhança (e que tem tudo nos seus
devidos setores) - sofre de uma enorme carência de desenho urbano.
Caso você resolva fazer um projeto
para um lote urbano não ocupado (sim, eles existem e são muitos)
observará que parecem faltar diretrizes urbanas que ditem com maior
precisão as regras a serem seguidas para garantir uma
compatibilização entre os diversos lotes - aquilo que define o
espaço urbano. Na regra geral de produção de espaço urbano no
Brasil, ditada pelos interesses econômicos, os empreendimentos
tendem a atender ao mínimo que é exigido: resolvido o lote, não se
aborda a articulação do empreendimento com os lotes vizinhos e as
vias de acesso, gerando verdadeiras ilhas, cujas calçadas não se
conectam para fora do seu limite e apresentam desníveis
intransponíveis, construindo paisagens urbanas totalmente
fragmentadas.
Como exemplo, podemos apontar o Complexo Brasil 21. Lançado em 2000 e localizado no Setor Hoteleiro Sul, ao lado do Eixo Monumental, apresenta múltiplos usos (como hotéis, centro de eventos, serviços e comércio). O empreendimento priorizou a solução de seus fluxos internos, mas sua relação com a cidade deixa muito a desejar, funcionando de uma forma ilhada dentro do contexto urbano no qual está inserido. Em que pese a óbvia responsabilidade dos projetistas, a falta de regras e de diretrizes públicas de ordenamento urbano permitiu que o projeto fosse elaborado e executado com essa deficiência.
O empreendimento não conta com fachadas ativas, criando pouca relação com o contexto urbano onde está inserido. E os acessos criam interrupções que obrigam o pedestre a fazer desvios indesejáveis.
O empreendimento não conta com fachadas ativas, criando pouca relação com o contexto urbano onde está inserido. E os acessos criam interrupções que obrigam o pedestre a fazer desvios indesejáveis.
Mesmo em casos em que a regra foi previamente estabelecida surgem problemas que decorreram da falta de acompanhamento e fiscalização do poder público. O Setor Bancário Norte foi tratado no projeto urbanístico original de Brasília, desenvolvido concomitantemente à construção, e suas normas de gabarito, consolidadas em 1966, tinham como objetivo “a criação de uma grande plataforma de piso contínuo - no nível do térreo e integrando os diversos edifícios -, ficando o subsolo destinado a estacionamento de veículos”¹ . O regramento², contudo, pecou por não esclarecer as responsabilidades pela implantação das estruturas de uso público, e o projeto restou incompleto, com graves deficiências de articulação e acessibilidade. Atualmente a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SEDUH) aponta que “a maior parte das ligações entre os edifícios, no nível térreo, não foi executada, ocasionando a descontinuidade e a grande dificuldade para a circulação de pedestres”³. Na minuta do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, a Secretaria propõe que sejam desenvolvidos projetos para a “estruturação e valorização dos caminhos de pedestres” e a “articulação dos espaços de uso público”, mas a estratégia de implantação segue sem definição.
A plataforma do Setor Bancário Norte, que deveria ser livre e integrar o térreo dos edifícios, é repleta de interrupções que dificultam a fluxo dos pedestres.
A plataforma do Setor Bancário Norte, que deveria ser livre e integrar o térreo dos edifícios, é repleta de interrupções que dificultam a fluxo dos pedestres.
Superquadras x Quadras 700
Nas áreas de moradia das asas norte e
sul podemos encontrar outro enorme contraste de Brasília: a
qualidade das superquadras, um dos símbolos da cidade, e o
desordenamento das quadras 700, em especial as da Asa Norte, marcadas
pela presença de edifícios comerciais com implantação
problemática.
As superquadras, com suas áreas arborizadas, seus pilotis e cobogós e seus espaços extremamente aprazíveis, são consideradas por muitos como a principal contribuição dada por Lucio Costa para o urbanismo mundial. Ademais, a proposta era a configuração das chamadas unidades de vizinhança, formadas pelo conjunto de 4 superquadras: “um sistema composto por unidades habitacionais, serviços e equipamentos públicos, de modo a criar um ambiente parecido com um pequeno bairro”4
SQS 308
SQS 308
Somente um conjunto ficou completo, o
formado pelas superquadras 107, 307. 108 e 308 sul. No centro desse
conjunto está a famosa Igrejinha (Igreja Nossa Senhora de Fátima),
primeiro templo em alvenaria erguido em Brasília.
Em contraste, a poucos metros dessa unidade de vizinhança temos a quadra 707 sul, com uma morfologia urbana significativamente deteriorada (desqualificada). Com localização privilegiada dentro do plano piloto, essas quadras, denominadas “700”, não estavam no projeto original de Brasília. Denominado na Asa Sul como Setor de Habitações Individuais Geminadas Sul, ele surgiu pela demanda por casas para moradia de engenheiros e arquitetos da Novacap, a companhia estatal que coordenou os trabalhos de construção a partir de 1956.
SHIGS - Fotos históricas
SHIGS - Fotos históricas
O gabarito de 2 pavimentos é
recorrentemente ultrapassado e, acompanhado de uma má arquitetura,
temos um amontoado de edificações geminadas que pouco lembram os
conjuntos homogêneos e extremamente disciplinados dos primórdios da
cidade, então comparáveis às vilas fabris de estilo modernista. Em
que pese a diversidade arquitetônica ser bem-vinda, problemas como
invasão de áreas públicas, desnivelamento de calçadas e
obstáculos de toda sorte ao livre caminhar dos pedestres
infelizmente são comuns, ao longo dessa faixa de quadras que se
estende da Asa Norte à Asa Sul.
Situação atual - 707 Sul
Situação atual - 707 Sul
Na Asa Norte a tipologia do setor foi
alterada, incorporando comércio próximo à via W3 e criando
edifícios múltiplos (comércio no térreo e moradia nos pavimentos
superiores) nas entrequadras. Embora os últimos (entrequadras)
representem uma experiência positiva de acomodação desse tipo de
edifício (de uso misto, tão raro no projeto de Lucio Costa) no
Plano Piloto, provendo apartamentos mais baratos que nas
superquadras, os primeiros (próximos à via W3) são apenas uma
solução arquitetônica pobre e problemática, que deixou espaços
residuais de difícil aproveitamento.
Situação atual, Asa Norte
Situação atual, Asa Norte
Algumas iniciativas recentes têm
buscado superar o problema que destacamos: a falta de desenho urbano
de Brasília, contraditória com sua condição de cidade planejada.
Os concursos para o Masterplan da Orla do Lago Paranoá e a
Requalificação do Complexo Esportivo e de Lazer Arena BSB
apresentam propostas que chegam à escala de desenho urbano.
Espera-se que o planejamento dos órgãos urbanísticos e ambientais
seja capaz de articular as ações necessárias à implantação
gradativa das propostas do Masterplan (no primeiro caso), assim como
que a gestão privada do complexo esportivo viabilize as
transformações propostas no concurso (no segundo).
Na mesma linha de atuação, porém
numa escala menor, a SEDUH elaborou, em 2017, um Guia de
Urbanização
que traz “diretrizes para o desenvolvimento de
projetos que aprimorem ruas e espaços públicos, indicando padrões
arquitetônicos e urbanísticos para todos os elementos que os
compõem”, visando suprir a lacuna de um código de posturas nunca
elaborado.
Na minuta de Plano de Preservação do
Conjunto Urbanístico, ainda em discussão, há diversas sugestões
de projetos necessários à solução dos problemas de qualidade dos
espaços públicos observados na escala do pedestre, como os que
discutimos aqui.
O próximo passo é necessário e
urgente: a partir das diretrizes estabelecidas nesses instrumentos, o
poder público deve coordenar esforços para que os projetos para os
diversos setores sejam elaborados e implementados, em parceria com os
empreendedores privados, a fim de superar os problemas atualmente
existentes.
*José Rodrigues Cavalcanti Neto é arquiteto e urbanista formado pela UFPR, com especialização e mestrado em conservação e restauro pela UFBA. Natural de Curitiba, mora em Brasília há 11 anos onde, desde 2018, é membro do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural do Distrito Federal. Atualmente é o responsável pela Restauração das fachadas do Palácio do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes.
*Maurício Goulart é arquiteto e urbanista formado pela UFMG, com mestrado na mesma área pela UnB. Mineiro, adotou Brasília como sua casa e seu objeto de trabalho desde 2005. Hoje atua na Superintendência do Iphan no Distrito Federal.

1 - LEITÃO, Francisco. Do risco à cidade: as plantas urbanísticas de Brasília, 1957-1964. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2003. p. 119

2 - Os limites dos lotes foram definidos em plantas datadas de 1959, que exibem os limites de construção em subsolo e no nível térreo (o nível da "grande plataforma de piso contínuo", onde há edifícios compostos de loja e sobreloja e edifícios em altura, em forma de "lâmina", bem ao gosto modernista). As alturas variáveis dessas "lâminas" foram consolidadas em "projetos de gabarito", identificados pelo código "CE" (referindo-se ao Código de Edificações vigente), em 1966. Há desenhos variados, cada qual para certa quantidade de lotes, exibindo cortes esquemáticos dos edifícios, com suas alturas estabelecidas.

3 - Governo do Distrito Federal. Minuta do Projeto de Lei Complementar do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília. Anexo X. Parâmetros Urbanísticos de Preservação. Setores Centrais. Brasília, 2017. Disponível aqui

4 - REIS, Carlos Madson; RIBEIRO, Sandra Bernardes; PINTO, Francisco Ricardo Costa (Orgs.). Superquadra de Brasília. Preservando um lugar de viver. Brasília, Iphan, 2015.

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